O “irrealismo” capitalista de Mark Fisher

Por André Márcio Neves Soares, mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL, e integrante do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos (NEDH). 

O escritor Mark Fisher nos deixou prematuramente. Seu primeiro livro, do qual retirei o trocadilho para o título deste texto, é um raio de sol na escuridão intelectual nas últimas décadas (1). Escrito no final da primeira década do século XXI, é possível que ele continue atual ainda por muito tempo. Entretanto, temos o péssimo hábito de enaltecer a obra do pensador que soube ser atento e perspicaz sobre o mundo em que vivemos, mas que não está mais entre nós, sem a devida crítica do seu pensamento. Penso não ser desleal para com o pensador, se essa crítica vier de forma transparente, fundada no que entendemos ser correto ou não sobre o que ele produziu. Até porque, como ele, também estamos sujeitos a críticas sobre o que dissermos.


Então vamos ser diretos: Fisher acertou no principal, a saber, a impotência reflexiva da profecia autorrealizável do capitalismo, de que não existe alternativa a ele, nos moldes do que professou Margaret Thatcher, enquanto primeira-ministra da Grã-Bretanha, na década de 1980 (i). Contudo, escapa-lhe a resposta do porquê a esquerda não foi capaz de criar uma atmosfera favorável a ela, especialmente depois da crise financeira de 2008. De fato, é possível verificar ao longo do livro diversos momentos em que Fisher faz essa pergunta.

A impressão que fica é de que ele sabia, no seu íntimo, a resposta, só não se deu conta. E nem teve tempo para isso, infelizmente. Pois se ele ainda estivesse vivo, é possível, e até provável, que acabasse bebendo da fonte de alguns outros pensadores, que tiveram o mesmo “insight” que ele, mas que foram além e encontraram a resposta. Estou falando de pensadores como Robert Kurz e Jacques Rancière, entre outros. Mas vamos com calma! Coloquemos na mesa as principais ideias de Fisher.

A primeira contribuição de Fisher foi afirmar que o capitalismo deixou o modo concreto de colonização no passado recente para colonizar o inconsciente da humanidade. É verdade que ainda existe muita disputa por recursos materiais ao redor do planeta. A escalada consumista do capitalismo-fetiche não terá fim antes dos recursos se esgotarem, salvo uma mudança na mentalidade da nossa espécie em relação aos recursos finitos que a natureza nos oferece de graça. Sucede que privatizar a natureza requereu ao longo do tempo a privatização da consciência coletiva em prol de uma minoria inescrupulosa. Com o planeta dando sinais de esgotamento dos seus recursos e saturação da sua espoliação privada inclemente, é mais do que natural a percepção da maioria das pessoas de que algo anda muito errado. Por isso se faz premente para esse capital, que Fisher chamou de “zumbi”, interferir no inconsciente coletivo dos desejos mais imediatos dessas mesmas pessoas.

Esse paradoxo, muito bem captado por Fisher, resulta no atual estado permanente de ansiedade, angústia e insegurança por parte de todos nós. Pois a saída da iminente catástrofe de uma crise climática requer a participação de todos, coletivamente falando, sem a qual não haverá futuro. O tempo da resignação melancólica e da atomização social precisa ficar para trás. Caso contrário, o fim da história já pode estar perto, com a ascensão de um populismo que chamou de “niiliberal” (ii), como os recentes casos nos Estados Unidos e Brasil, assim também na Hungria, Polônia e Rússia, entre outros. A força do capital neste século estará muito mais focada em promover fantasias libidinais numa cultura sem identidade de pertencimento a nada – terra, família, classe, trabalho e religião -, do que em se apropriar do petróleo alheio “per si”, para citar um exemplo.

A segunda contribuição de Fisher foi o conceito de “hiperstição”, um neologismo cunhado por ele para dizer que, ao fim e ao cabo, as profecias autorrealizáveis pelo capital só podem ganhar corpo através dos circuitos cibernéticos de retroalimentação de uma vida superposta à realidade dos fatos. Em outras palavras, a chantagem ideológica do capital contou com a colaboração do animal humano para estruturar uma sociedade chamada por ele de “indivíduos caridosos”, onde a carne viva dos seres humanos é transformada em trabalho morto, em nome de uma suposta emergência ética. Emergência essa para além da política cotidiana, miúda mesmo, entre os seres humanos, criada pelo próprio capital sob o disfarce de servir à sociedade. Diz Fisher:

“O objetivo era apenas garantir que parte dos lucros de transações específicas fossem destinados a boas causas. A fantasia era que o consumismo, longe de estar intrinsecamente implicado na desigualdade global sistêmica, poderia, ao contrário, resolvê-lo. Tudo o que precisávamos fazer era comprar os produtos certos”. (ob. cit., pág. 29)  

A terceira contribuição de Fisher foi o que chamou de “ontologia empresarial” e sua consequência “estalinista de mercado”. Para ele, a onda liberal inaugurada pela dupla Thatcher-Reagan, e depois reforçada pelo Novo Trabalhismo de Tony Blair, derrubou as ilusões sobre um retorno a um passado mais idílico para a humanidade. Como não havia mais alternativa, e não existe sociedade (iii), o mundo, na verdade, é uma corrida de cada um contra todos pela sobrevivência individual. Para tal desidério, todas as instâncias e instituições da vida humana devem ser tratadas como empresas. Daí a inevitável ascensão dos procedimentos burocráticos também no capitalismo, os quais eram tão demonizados no socialismo de mercado técnico-científico. Explica Fisher:

“Em sua forma idealizada, o mercado supostamente deveria garantir trocas ‘sem atrito’, por meio das quais os desejos dos consumidores seriam diretamente saciados sem a necessidade de intervenção ou mediação de agências reguladoras. No entanto, a insistência em avaliar o desempenho dos trabalhadores, e mensurar formas de trabalho que são por natureza refratárias à quantificação, inevitavelmente acabou por gerar novas camadas de burocracia e gerenciamento … o trabalho passa a ser orientado para a geração (e manipulação) das representações mais do que para os objetivos oficiais do próprio trabalho. Começa a gerar, mais do que o trabalho em si, todo um sistema de criação e manipulação de representações”. (ob. cit., pág. 75)

É nesse sentido que o “estalinismo de mercado” opera, a saber, invertendo prioridades no que chamou de capitalismo tardio (iv), com a valorização dos símbolos do resultado, ao invés de enaltecer o resultado prático. O neoliberalismo impõe aos trabalhadores uma constante performance de autocrítica de fazer inveja aos áureos tempos do período estalinista de autovigilância permanente.

Por conseguinte, Fisher entende que o “estalinismo de mercado” não é um desvio ao verdadeiro espírito do capitalismo. A onipresença do mercado nas percepções e expectativas dos consumidores fazem as empresas serem muito mais bem-sucedidas pelo que representam na sociedade fetichista do capital do que realmente elas são. É por isso que ele diz, parafraseando a obra de Marx & Engels (2), que no capitalismo “tudo que é sólido se desmancha em relações públicas” (ob. cit., págs. 77/78). Nesse ponto, Fisher entende seu “realismo capitalista como o “grande Outro” lacaniano consumidor de todas as relações públicas e propaganda. É a ficção coletiva, a estrutura simbólica pressuposta em todo campo social. Como o grande outro nunca é encontrado diretamente, mas apenas seus representantes, é requerido ao atual consumidor virtual que acredite no que nenhum indivíduo “in person” poderia acreditar.

Todavia, Fisher é lúcido o suficiente para saber que o capitalismo realista não é, por assim dizer, deveras popular nas regiões do globo em que opera. Portanto, o grande feito desse modelo nunca foi ter conquistado a simpatia do seu público, mas incutir no inconsciente coletivo que não existe alternativa a ele. Em outras palavras, na medida em que as expectativas de melhoria de vida tornam-se decrescentes, e as ilusões são frustradas, ocorre a perda da dimensão de um futuro melhor, mais fértil e menos exausto. É aqui que Fisher toma de empréstimo a expressão de um “lento cancelamento do futuro” de Bifo Berardi, para anunciar a situação apocalíptica da infertilidade imaginativa da cultura em todos os níveis. Apesar da vida ter aumentado sua velocidade num mundo hiperconectado, os sujeitos passam a repetir uma cultura estagnada, infértil e morosa como verdadeiros zumbis (v).

Por último, mas não menos importante, é imperioso resgatar o inconformismo de Fisher diante da falta de imaginação da esquerda mundial para se aproveitar da debacle capitalista após a crise financeira de 2008. Realmente, é dessa angústia pessoal que ele vai tirar seu conceito de “decomposição social”. Esta nada mais é do que o “resultado da fragmentação da classe como sujeito político coletivo, e da desintegração das formas de consciência e solidariedade ligadas à participação na classe. Fundamentalmente, o próprio neoliberalismo deve ser visto como um projeto orientado a essa finalidade política específica: decompor” (ob. cit., pág. 189).

No entendimento de Fisher, se a classe operária aceitou a social-democracia como uma conciliação de classe, a globalização, com sua sistemática de produção e consumo globais, acabou com essa pacificação. A partir da década de 1980 o que se viu foi o acirramento da batalha entre classes em cada país, com o resultado momentâneo da vitória do neoliberalismo. Fisher ilustra muito bem esse entendimento relacionando o ano de 1984, emblemático por ser o ano da distopia de George Orwell e da viragem feroz do paradigma capitalista com o atentado thatcherista contra os mineiros em nome de uma suposta liberdade.

Com coerência, cita David Harvey (vi) para dizer que a contraofensiva neoliberal nada mais foi do que uma estratégia de tomar o poder definitivamente, como um projeto de classe. Ora, se esse projeto se apoia no desmantelamento das relações do trabalho, a implicar dramaticamente nas relações econômicas e sociais existentes no período fordista, Fisher está dizendo que o neoliberalismo buscou decompor o que ainda restava de solidariedade e união na classe trabalhadora. A pá de cal dessa decomposição veio com a capacidade da nova classe dirigente de seduzir as pessoas no que elas mais têm como ponto fraco: o desejo libidinal do consumo-fetiche. De fato, a grande jogada do capitalismo neoliberal foi estabelecer uma narrativa de autonomia, liberdade, flexibilidade e experimentação aos indivíduos, sujeitos ainda solventes e ciosos de suas responsabilidades sociais e até familiares, para transformá-los em predicados consumidores/empreendedores liberados das restrições e regulações de um Estado longínquo, debilitado e enfadonho.

Mas Fisher não caiu na armadilha do discurso neoliberal do eterno desenvolvimento humano. Sabe ele que o capitalismo nunca propôs a autonomia do mercado em relação ao Estado. Pelo contrário, a incessante busca do progresso tecnológico pelo capital está em sintonia com a captura do Estado “demonizado” por esse mesmo capital. Pois se a “atomização” generalizada das pessoas é o anseio do capital, não o é por desejar a verdadeira emancipação da espécie humana. O objetivo do capital sempre foi tornar as pessoas uma mercadoria qualquer. E ele tem conseguido. Hoje em dia somos menos que uma mercadoria. Somos lixos descartáveis para o capital. Ele, o capital, só não sabe ainda o que fazer com tanto lixo (vii).

É realmente lamentável que Fisher não tenha tido tempo para responder às perguntas surgidas. Ao se deparar com a burocracia acelerada pelo neoliberalismo, buscou, atônito, uma resposta que propusesse uma alternativa para tal modelo. Não sabia por onde começar. Sabia sim que ainda estamos longe do fim da história, nos moldes proposto por Fukuyama (viii). Todavia, ficou preso nos arquétipos do “mainstream” neoliberal, a saber, nos conceitos clássicos de hegemonia, utopia, pragmatismo e liberdade, além da velha disputa de classes.

Talvez pela forma debilitante da depressão que o assolou (ix), foi incapaz de perceber que a ontologia humana, pelo viés do “heideggerianismo”, fornece múltiplas existências para o ser, e não apenas as marcações sociais. Ele mesmo foi um exemplo disso, visto sua condição social não ser tão faltosa assim. O mundo pós-moderno está para além da mera ressubordinação das classes menos favorecidas. Mesmo ciente da depressão coletiva que aflige boa parte do mundo civilizado, Fisher não soube, ele mesmo, propor soluções para novas formas de envolvimento político. Simplesmente atestou sua incapacidade de canalizar o que chamou de “raiva politizada” no devir da espécie humana. É aqui que os pensadores citados no início desse texto devem aparecer.

Antes, porém, para que possamos introduzir algumas ideias pertinentes desses pensadores, é preciso ter clareza quanto às limitações do pensamento de Fisher.

Fisher afirma que a esquerda mundial precisa denunciar o neoliberalismo por ter falhado na promessa de “redução massiva da burocracia”. Prossegue dizendo que “o que se faz necessário é travar uma nova batalha em torno do trabalho e de seu controle” (ob. cit., pág. 131). A crença explícita dele é no sentido de que o trabalhador ainda pode ter autonomia contra certos tipos de trabalho, ao passo que “Novas formas de ação industrial devem ser instituídas contra o gerencialismo” (idem). Todavia, nem mesmo ele soube dizer qual tipo de sujeito político precisará ser composto para tal intento. Esse autoengano que se impôs ilustra bem a dificuldade que todos nós temos, e tivemos, sempre que uma velha estrutura mundial eclipsou em favor de outra.

De fato, para um homem acostumado a lidar com a cultura cibernética, é até surpreendente que ele não tenha chegado a teorizar um novo mundo do trabalho (quase) sem trabalhadores formais e presenciais. A Skynet dos filmes estrelados por Arnold Schwarzenegger já estava sendo gestada bem antes do advento da internet das coisas. A trilogia Matrix apenas corroborou com o inconsciente mundial, para ficarmos apenas na seara de Fisher, de que algo bem maior estava por trás de tantas mudanças trazidas pelo progresso tecnológico. Se pudéssemos resumir em uma cena a mensagem que essa trilogia passou, talvez a cena fosse a de que a “Matrix” nos transformou em pilhas (x). Nessa toada, o trabalho humano será cada vez menos necessário nas “novas formas de ação industrial”, simplesmente porque não haverá trabalho humano no chão de fábrica em algumas décadas.

A outra limitação do pensamento de Fisher é a questão da etérea reconquista do Estado, nos moldes do que já foi discutido nos últimos dois séculos. Com efeito, ainda que ele questione a rigidez do pensamento da esquerda tradicional, que sempre busca tomar o Estado para si, a verdade é que Fisher permanece fixado numa postura que considera mais maleável de retomada do Estado visando o que denominou de “ressuscitar o próprio conceito de vontade geral” (ob. cit., pág. 128). Ora, se a filósofa Wendy Brown, citada por ele no seu livro, diz que a democracia não logra êxito no Estado (xi), é no mínimo incoerente que Fisher permaneça com a crença numa entidade abstrata – o Estado – como subordinada dessa vontade geral que possa reavivar, e modernizar, nas palavras dele, “a ideia de um espaço público que não é redutível a um agregado de indivíduos e seus interesses” (idem, pág. 128).

No início dos anos 1990, o ensaísta alemão Robert Kurz (1943 – 2012) produziu um texto que se tornaria peça-chave para entender a derrocada do bloco soviético (3). Em linhas gerais, Kurz prevê um final infeliz para a sociedade humana, caso esta insista em permanecer com o atual sistema produtor de mercadorias perpétuo. Com os regimes socialistas se desfazendo pela vitória parcial, momentânea mesmo, da economia de mercado, cantada em verso e prosa pelos ideólogos do liberalismo, ninguém se deu conta, salvo Marx, que a “debacle” mencionada acima representaria o início da ruína do próprio sistema capitalista. Assim, para Kurz, os dois sistemas, a saber, o estatismo e o (neo)liberalismo, nada mais eram do que partes do mesmo sistema global de produção de mercadorias. Logo, a queda de um afetaria, necessariamente, o outro.

Esse entendimento de Kurz, que reputamos correto, e que se revela claramente no atual esgotamento do sistema vencedor trinta anos depois, pode não ser a única explicação para as limitações do pensamento de Fisher, mas, com certeza, é uma delas. Realmente, buscar um novo trabalhador autônomo no atual “gerencialismo” ultra-tecnológico não faz sentido, na medida em que o capital busca, ele próprio, desesperadamente, se desfazer desses mesmos trabalhadores pela via do aumento exponencial do progresso tecnológico. Nesse sentido, o sujeito político que Fisher não soube definir não poderá jamais vir do outrora modelo de vida oriundo do fordismo. E mais: como a esfera econômica avançou para cima da arena política da sociedade humana, cooptando-a e depois capturando-a, para Kurz o equívoco de todos da esquerda tradicional, Fisher inclusive no seu momento tardio, característico do chamado “socialismo real”, foi considerar a categoria trabalho como a essência supra-histórica do homem moderno.

Mas ainda resta, mesmo com a quase eliminação do “homo faber”, a figura do Estado, esse ente abstrato, sobre o qual Hobbes falou em seu famoso livro (4). Diz ele:

“E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a qual se chama REPÚBLICA, ou Estado (em latim CIVITAS), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro”. (ob. cit., pág. 11)

Ora, que tipo de Estado realmente sobreviverá em uma sociedade sem a categoria trabalho como símbolo primeiro da contemporaneidade capitalista? Fisher não quis abandonar o Estado, mas capturá-lo. Todavia, um Estado sem trabalhadores de carne e osso é o mesmo que uma máquina sem software. O homem artificial de Hobbes é a sociedade punjante, deliberativa e produtiva, que denominou de República ou Estado. Sua alma artificial, entendida por ele como a soberania, é a capacidade dos sujeitos de estarem integrados dentro de uma comunidade específica que os acolhe e os significa num determinado espaço e tempo. Quando essa mesma sociedade, ou Estado/República, perde uma dessas características, a saber, a capacidade produtiva dos seus cidadãos, ela corre o sério risco de se desmantelar num conjunto de seres vivos amorfos, irrelevantes e descartáveis.

É bom esclarecer. Não se trata de enaltecer o trabalho por ele mesmo. O animal humano sempre precisou ser produtivo para sobreviver. Desde os tempos idos de caçadores-coletores nós, seres humanos, sempre precisamos formar grupos diversificados de trabalho para otimizar os recursos naturais à nossa disposição. Apenas recentemente, com o advento da nossa sedentarização e o avanço do progresso tecnológico, nos demos ao desplante do desperdício. Mas o desperdício voltou-se contra nós, na forma fetiche do consumo desbragado. Assim, ao mesmo tempo que fomos perdendo o sentido original da produtividade humana, caímos na armadilha do excesso. O trabalho que outrora nos guiava ontologicamente como uma espécie criativa, agregadora e socialmente acolhedora, cedeu espaço para uma sociedade individualista, egoísta e niilista.

Por conseguinte, o Estado capitalista não pode mais ser capturado por uma sociedade que perdeu sua alma. Fisher acerta ao dizer que, apesar do neoliberalismo ter perdido seu febril impulso, especialmente depois da crise financeira de 2008, ele “segue cambaleante como um zumbi” (ob. cit., pág. 142). Mas esse zumbi faz mais do que apenas cambalear. De fato, ele continua influenciando uma sociedade global que só enxerga esse sistema híbrido de economia e política como a única alternativa. O “irrealismo” capitalista de Fisher é achar que existem políticas disponíveis para resgatar o zumbi neoliberal e torná-lo humano de novo. Ele deveria saber, pelas suas preferências culturais, que zumbis não podem ser reavivados, mas apenas exterminados. Assim como o híbrido neoliberalismo precisará ser aniquilado dos corações e mentes das pessoas se quisermos reverter nossa futura extinção como espécie. Não existe a menor possibilidade de que um sistema híbrido mutante como o neoliberalismo – nos moldes da personagem cyborg de Arnold Schwarzenegger nos filmes de ficção científica “O Exterminador do Futuro” – seja transformado em um sistema novo de integração social planetário. Ele – o neoliberalismo –  sempre dirá o mesmo que o citado ator na referida série: “I will be back” (xii).

Vou finalizar esse artigo com o filósofo argelino-francês Jacques Rancière e sua importante obra sobre o ódio à democracia (5). Penso ser oportuno discorrer brevemente sobre o que escreveu, não para falar desse regime de governo tão cantado em verso e prosa ao longo dos séculos, porém pouco efetivo na prática, mas para apontar como o Fisher tardio ficou limitado no seu pensamento, consoante estamos a demonstrar nesse texto.

Em vista disso, se para Fisher ainda é possível uma reconstrução da consciência de classe através da invenção de novas formas de envolvimento político que revitalizem instituições já decadentes, como ele mesmo diz: “convertendo o descontentamento privatizado em raiva politizada” (ob. cit., pág. 141); para Rancière o que está posto pelo sistema híbrido-mutante do neoliberalismo é um sentimento antidemocrático, pois, segundo ele mesmo: “só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática” (ob. cit., pág. 11).

Consequentemente, o que foi entronizado subliminarmente no inconsciente coletivo não foi a prática democrática do voto pelos cidadãos positivos para tal fim, posto que o próprio capital conseguiu driblar as armadilhas das eleições periódicas que pudessem colocá-lo em apuros. Segundo Rancière, os arautos do neoliberalismo se fizeram relatores da “crise da democracia”, pois ela “significa o aumento irresistível de demandas que pressiona os governos, acarreta o declínio da autoridade e torna os indivíduos e os grupos rebeldes à disciplina e aos sacrifícios exigidos pelo interesse comum” (ob. cit., pág. 15). Portanto, a democracia em si nunca chegou a preocupar os governos mundo a fora, mas a “intensidade da vida democrática”. É por isso que o remédio para aplacar essa intensidade democrática conseguiu surtir efeito no capitalismo, ao desviá-la para a vida material privada dos laços sociais entre iguais. A felicidade individual foi potencializada para que os/as novos/as cidadãos/ãs dos últimos dois séculos se tornassem indiferentes ao bem público, e minasse a autoridade governamental pela espiral de demandas vindas da sociedade.

Fisher foi brilhante muito mais pelas suas preocupações do que pelas soluções que propôs. Mas não podemos deixar de creditá-lo, apenas por não ter avançado nas suas elaborações sobre os infortúnios da vida contemporânea. Ele não era um cientista social, mas um trabalhador que ousou enxergar para além do que a nossa Matrix nos oferece. Nesse aspecto, não conseguiu perceber o paradoxo democrático que se apresentava aos especialistas conservadores desde os turbulentos anos da Revolução Francesa, a saber, o excesso de democracia como ruína do governo democrático. Tem sido justamente esse excesso de participação popular, que é visto pelas elites do plantão histórico como a forma de governo – a democracia – de “ingovernáveis”, que deve ser coibido pelo governo para que este não seja corrompido. Como diz Rancière:

“Em primeiro lugar, substituamos ‘indivíduos egoístas’ por ‘consumidores ávidos’, o que não deverá causar estranheza. Identifiquemos esses consumidores ávidos a uma espécie social histórica, ‘o homem democrático”. Lembremos por fim que a democracia é o regime da igualdade e podemos concluir: os indivíduos egoístas são os homens democráticos. E a generalização das relações mercantis, cujo emblema são os direitos do homem, não é nada mais que a realização da exigência febril de igualdade que atormenta os indivíduos democráticos e arruína a busca do bem comum encarnada no Estado” (idem, pág. 28).

 REFERÊNCIA

1 – FISHER, Mark. realismo capitalista. São Paulo. Autonomia Literária. 2020;

2 – MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. MANIFESTO COMUNISTA. São Paulo. Boitempo. 2017;

3 – KURZ, Robert. O COLAPSO DA MODERNIZAÇÃO. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1992;

4 – HOBBES, Thomas. LEVIATÃ. São Paulo. Martins Fontes. 2019;

5 – RANCIÈRE, Jacques. O ÓDIO À DEMOCRACIA. São Paulo. Boitempo. 2014.

NOTAS

i – There is no alternative (TINA);

ii – Um misto de niilismo e neoliberalismo;

iii – “There is no such thing as society”. Outra expressão cunhada pela ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher;

iv – Na verdade Fisher pegou essa expressão emprestado de Fredric Jameson, nos escritos deste sobre pós-modernismo;

v- Ao comentar a crise financeira de 2008, Fisher afirma que o neoliberalismo foi desacreditado em todos os sentidos. Porém, como a ideologia neoliberal não possui um rival à altura ainda, permanece na ofensiva, inercialmente, como um “desmorto”, ou seja, um morto-vivo (living-dead);

vi – Especificamente o livro de HARVEY, David. Neoliberalismo. São Paulo. Edições Loyola. 2008;

vii – Na verdade, o capital já sabe muito bem sua rota de fuga. O incremento de viagens e pesquisas espaciais denotam que a saída vislumbrada por ele como a mais viável é exploração cósmica. Mas esse tópico será desenvolvido em outro artigo;

viii – FUKUYAMA, Francis. O último homem e o fim da história. Rio de Janeiro. Editora Rocco. 1992;

ix – Consoante o apêndice do livro em questão, páginas 137-141;

x – No Filme “Matrix” de 1999, dos irmãos (hoje irmãs) Wachowski, a humanidade foi escravizada por um maquinário onipresente e onisciente num mundo virtual da qual ela não tem consciência, além de servir como produto principal de produção energia, nos campos cultivados de recém-nascidos;

xi – BROWN, Wendy. AS ruínas do neoliberalismo. São Paulo. Editora Filosófica Politeia. 2019, pág. 36;

xii – “Eu voltarei”

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