Por Daniel Alves Teixeira
“É o que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão.”[1] Foram essas palavras aparentemente conservadoras que Jacques Lacan direcionou aos estudantes que participavam das célebres agitações de Maio de 68 na França, quando movimentos grevistas e revoltas estudantis se alastraram pelo país. E, mutatis mutandis, a mesma afirmação não poderia ser dirigida aqueles que participaram, em solo brasileiro, das jornadas de Junho de 2013, quando em situação parecida milhares de estudantes e “inconformados” de todo tipo tomaram as ruas em todo o Brasil? E se revolucionários aspiram a um novo mestre, como estamos agora, dois anos após?
Curioso notar que uma divisão que já se encenava entre “nacionais” e “vermelhos” no próprio seio das Jornadas de Junho de 2013 adquiriu agora contornos definitivos, com a realização de atos próprios, um da “direita” em 16 de Agosto de 2015 e sua “resposta” da “esquerda” em 20 de Agosto de 2015. Todas as semelhanças com o período pré-golpe de 64 não é mera coincidência. O que essa estranha repetição pode nos dizer sobre o modo como estamos lidando com o impasse aberto pelas “revoltas” de Junho de 2013?
Antes de adentrar a questão, vejamos uma das definições que Slavoj Zizek confere à ideia de Significante-Mestre em Lacan: “ Então, então o que é o Significante-Mestre? Vamos imaginar uma situação confusa de desintegração social em que o poder de coesão da ideologia perde sua eficiência: numa situação assim, o Mestre é aquele que inventa um significante novo, o famoso “ponto de basta” (point de capiton), que estabiliza a situação e a torna legível; (…). O Mestre não acrescenta nenhum conteúdo positivo, apenas acrescenta um significante que, de repente, transforma desordem em ordem, em “nova harmonia”, como diria Rimbaud.”[2]
E dois anos após as desordens de Junho de 2013, temos o surgimento de uma propagada “crise” (não me lembro de ninguém ter chamado os movimentos de Junho de 2013 de “crise”) com a qual vem junto, no mesmo pacote, todas as velhas “razões” e “explicações” que nos dão de antemão as causas da dita “crise”. O desrespeito às inexoráveis leis do mercado com o “intervencionismo” da ideologia “esquerdista” do governo, somados a corrupção endêmica do aparelho estatal e seus parentes privados mais próximos, só poderiam levar ao “assustador decrescimento econômico” que vivemos. E, como a grande mídia faz questão de sempre nos lembrar, somos todos vítimas nesse processo nefasto, mas quem mais sofre são as classes mais baixas, consumidores e trabalhadores, pobres vítimas dos “juros altos” e do necessário “desemprego” que acompanha as recessões.
Tudo isto para apontar como, passada a “confusão” e o “quebra-quebra” de Junho de 2013, temos, pelo menos para a direita, uma narrativa coerente, um “mapeamento cognitivo” que dá todas as explicações para a coisa “dar no que deu”, nessa “crise” pavorosa. Para eles, existe uma explicação absolutamente “racional”, “técnica” e “realista” para o que chama de “péssimo momento” do país.
Ou seja, para este lado da história os movimentos de Junho de 2013 não foram mais do que as eventuais “agitações” que ocorrem em meio ao caminho triunfante do mercado, e o vazio aberto pelas demandas das ruas foi rapidamente soterrado pela enxurrada de especialistas e suas análises mais do que lugar-comum.
Contra tudo isto, devemos afirmar que tais leituras, eivadas dos vícios próprios da visão “liberal” de sempre, chafurdam na mais profunda fantasia ideológica. Isso porque, como explica Zizek: “Como tal, o Significante-Mestre é o local privilegiado de intervenção da fantasia, já que a função da fantasia é exatamente preencher o vazio do significante-sem-sentido, ou seja, a fantasia, em última analise, em seu aspecto mais elementar, é o material que preenche o vácuo do Significante-Mestre (…)”[3]. Assim, não é só que com essa narrativa “racional” eles enganem o povo com explicações supostamente claras e objetivas sobre nossa situação política e econômica, mas é também é o modo como eles enganam a si próprios sobre o mal-estar que surgiu nos movimentos de Junho de 2013, após quase duas décadas de relativa solidez da social-democracia surgida em 1988, ora mais a “direita”, ora mais a “esquerda”.
Todas as atenciosas preocupações humanistas sobre os perigos generalizados da “crise” e as intermináveis denúncias da “corrupção” só servem para que eles possam continuar sonhando o belo sonho do neoliberalismo, que, devemos estar atentos, não é necessariamente um inimigo do Estado de bem-estar social.
E do outro lado, como ficamos? Do entusiasmo inicial provocado pelas agitações populares passamos gradualmente para uma política de “resistência”, na mesma proporção em que aumentavam gradualmente as pautas conservadoras. Flexibilização das leis do trabalho, diminuição da maioridade penal, impeachement, pouco a pouco a esquerda vai se limitando a heroicamente resistir a pautas cada vez mais retrogradas. Neste ponto, precisamos ser absolutamente sinceros. Se os movimentos de Junho de 2013 revelaram as ânsias conservadoras que repousavam em partes da população brasileira, também demonstrou o absoluto esgotamento das formas tradicionais de organização coletiva na esquerda no país.
Se a direita rapidamente se “recompôs” do trauma da revolta com as mesmas explicações técnico-econômicas de sempre, a esquerda se limitou a ser o Outro dessa crença, através das conhecidas pautas de resistência, sejam sexuais, ecológicas e qualquer coisa de “libertária”. E se há uma crise do capital, esse que se vire com sua “queda nos lucros”, os direitos e “programas sociais” devem permanecer intactos, custe o que custar, mesmo que ninguém se pergunte o porquê de tais programas somente prosperarem se o capital também prosperar.
Em resumo, a esquerda continua querendo chupar cana (mais direitos e benesses sociais, mais democracia) e assoviar ao mesmo tempo (sem contestar com rigor os fundamentos da ordem capitalista que supostamente detesta, mas que é indispensável para a própria alimentação da caridade pública, e, além disso, como explica Badiou [4], é absolutamente compatível com suas aspirações “libertárias”).
Isto quer dizer que devemos abandonar essas lutas como “falsas”, que devemos assistir passivamente o avanço conservador, a aprovação de leis retrógradas? É claro que não, estas são verdadeiras pautas políticas (da direita) que como tal devem ser combatidas, mas isso de forma alguma torna a nossa própria posição mais coerente ou sólida, nossa atuação não pode ser reduzida a simples resistência a essas pautas ou a demanda por mais “liberdades”. O questionamento radical do avanço conservador e suas pautas deve ser acompanhada de uma autocritica ainda mais radical, sem o que ficaremos fadados a impotência da posição histérica e a repetição negativa do discurso ideológico dominante.
Nas palavras de Zizek, “A passagem com que estamos tentando lidar aqui – a mais difícil de aprender para uma “dialética negativa” apaixonada por todas as formas imagináveis de “resistência” e “subversão”, mas incapaz de superar seu próprio parasitar na ordem positiva precedente – é a principal passagem dialética da dança selvagem da libertação do Sistema (opressivo) para o (que os idealistas alemães chamam de) Sistema da Liberdade.”[5]
E, nesse mesmo sentido, a crítica também deve ser estendida às análises que gostam de ressaltar, em tom quase apocalíptico, a “ascensão do fascismo” ou da “ameaça totalitarista” em toda parte. Além de tais analises servirem mais para promover um medo incipiente (normalmente ligados a figuras que encarnariam uma espécie de “mal absoluto”), devemos afirmar que o núcleo traumático que elas temem e procuram evitar a qualquer custo não é algo intrinsecamente “fascista”, mas sim algo inerente a qualquer movimento social transformador. Nos palavras de Robespierre, eles desejam uma revolução sem revolução, sem sua excessividade inerente. Tudo depende de sua articulação específica.
Devemos ter em mente que a luta nunca é somente pela situação em si, mas sempre também pelos nomes da situação, pelo modo (ideológico) com que um certo mal-estar, um excesso incomodo no seio da própria sociedade, é traduzido e estruturado em torno de certos significantes, que dão um novo sentido ao imponderável de um evento.
Portanto, como lidar com o espaço aberto pelas Jornadas de Junho de 2013 sem cair nem na rápida racionalização direitista e ao mesmo tempo evitar a não menos duvidosa política de resistência da esquerda? Talvez um primeiro passo possa ser demonstrado pela resposta que Daniel Bensaid e Alain Krivine deram a Nicolas Sarkozy acerca da herança ideológica de Maio de 68: “Há o maio de 68 deles e o nosso”. Existe a “crise” deles, mas também existe a nossa.
“Aqui aguardo sentado, rodeado de antigas tábuas quebradas e também de novas tábuas meio-escritas.”
Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra – Das antigas e das novas tábuas
[1] Lacan, Jacques. O seminário, livro 17: O avesso da psicanalise, 1969-1970. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1992, p. 218.
[2] Zizek, Slavoj A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, págs. 56-57
[3] Zizek, Slavoj A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, pág. 406
[4] Badiou, Alain, Saint Paul: La foundation de l’universalisme. Paris, Ed. PUF, 2015.
[5] Zizek, Slavoj Menos que nada. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, pág. 486
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