Entrevista por Nicolas Truong, via Le Monde, traduzida por Daniel Alves Teixeira.
Entrevista concedida por Alain Badiou para o Le Monde em 14.08.2015, em que o filósofo fala de algumas de suas experiências pessoais que levaram ao seu interesse pelo teatro e pela filosofia e também sobre suas atuais incursões no tema da felicidade.
Le Monde: Quais foram os encontros determinantes para a orientação da sua vida?
Alain Badiou: Antes do teatro e da filosofia, teve uma frase de meu pai. De fato, durante a segunda guerra mundial se constituiu uma lembrança formadora, determinante para a sequência da minha existência. À época, eu tinha seis anos. Meu pai, que estava na Resistência – ele foi nomeado em função disso prefeito de Toulouse na Liberação – afixou sobre o muro um grande mapa das operações militares e principalmente da evolução do fronte russo. A linha desse fronte estava marcada sobre o mapa por uma corda fina mantida por percevejos. Eu havia por diversas vezes observado as mudanças dos percevejos e da corda, sem fazer muitas perguntas: homem da clandestinidade, meu pai permanecia evasivo, ante as crianças, em relação a tudo que concernia a situação política e da guerra.
Nós estávamos na primavera de 1944. Um dia, era o momento da ofensiva soviética sobre a Criméia, eu vejo meu pai mudar a corda em direção à esquerda, em um sentido que indicava nitidamente que os Alemães refluíam em direção ao Oeste. Não somente seu avanço conquistador tinha sido impedido, mas eram eles que agora perdiam largas porções de território. Em um raio de compreensão, eu lhe disse: “Mas então, nós vamos talvez ganhar a guerra?”, e, por uma vez, sua resposta foi de uma grande clareza: “Mas com certeza Alain! É suficiente querê-lo!”.
Le Monde: Essa frase se tornou sua máxima?
Alain Badiou: Essa resposta é uma verdadeira inscrição paternal. Eu herdei dela a convicção que quaisquer que sejam as circunstâncias, aquilo que nós queremos e decidimos tem uma importância capital. Desde então, eu quase sempre era rebelde às opiniões dominantes, porque elas são quase sempre conservadoras, e eu jamais renunciei a uma convicção unicamente porque ela não estava mais na moda.
Le Monde: Você dá grande importância à vontade. Ora, uma grande tradição filosófica, o estoicismo, aconselha aos homens de querer aquilo que acontece para ser feliz. Não há mais sabedoria em aceitar o mundo tal como ele é em vez do que querer mudá-lo?
Alain Badiou: Nosso destino, na década de 1940, era de ter perdido a guerra. Um estoico diria então que era razoável serem todos petonistas? Pétain fazia de suas visitas às províncias um grande triunfo, nós podíamos pensar que ela havia poupado o país do mais duro da guerra. Deveríamos aceitá-lo? Eu desconfio do estoicismo, de Sêneca que, rico e com ouro até o fundo de sua banheira, preconizava a aceitação do destino.
Existem também os materialistas rigorosos, os epicuristas, que consideram um absurdo se levantar contra as leis do mundo e assim arriscar inutilmente sua vida. Mas a o que resulta dessa doutrina? Aproveitar o dia que passa, o famoso Carpe Diem de Horácio? Não é algo extraordinário, existe entre as sabedorias antigas um elemento inato: o sujeito deve encontrar um lugar tranquilo no mundo tal como ele é, sem se preocupar que esse mundo possa arrasar a vida dos outros.
Le Monde: Qual é a origem dessas éticas egoístas?
Alain Badiou: Essas sabedorias prosperaram durante o Império Romano, onde a situação histórica parece bastante com a nossa: uma hegemonia mundial oferecendo pouca chance de definir e de praticar uma orientação absolutamente contrária aquela que exige o sistema econômico e político. Esse gênero de situação favorece em todos os lugares a ideia de que aquilo que precisamos é se adaptar a esse sistema para nele encontrar o melhor lugar possível.
Então, o filosofo realista deveria dizer: “Renunciemos a toda perspectiva de mudança do mundo: Nós instalemos”. Ou, na versão que Pascal Brunner dá desse conservadorismo inflexível: “ O modo de vida ocidental é não negociável”? Eu não me resolvo nisso. Eu quero outra coisa. É a minha fidelidade a máxima paternal.
Le Monde: Depois da guerra, houve um professor que o fez encontrar o teatro. Por que esse encontro foi determinante? Como o teatro se tornou um guia da vida?
Alain Badiou: Quando eu fiz meus estudos, qualquer um que chegasse à faculdade começava imediatamente por Racine, Corneille e Molière. Que isso nos agradasse ou não, nós devíamos estudá-los, até o fim, a razão de uma peça de cada um deles por ano: esse era o programa. Mas nós nos encontramos mais facilmente com uma pessoa do que com um programa. E foi isso que me aconteceu: no 4º ano, eu encontrei um professor de francês que tratou o teatro como uma maravilha da qual nós podíamos a tomar parte, pois o essencial não era estudá-lo, mas atuá-lo.
Ele criou uma companhia na qual cada voluntário podia encontrar seu lugar. E foi então que, progressivamente, eu e os outros nos tornamos atores. Que encontro! Foi um tipo de interrupção nas nossas vidas ordinárias de estudantes. Nós montávamos em cena, frente a um público, únicos responsáveis do que então acontecia. Isso também, como dizia meu pai, bastava querê-lo! Eu interpretei o papel principal de Fourberies de Scapin, o que me preparou para a astúcia e para réplicas. Eu me lembro da tremenda emoção no momento que me joguei na luz da cena, de minha primeira réplica: “O que é, senhor Octave, o que você tem, o que ele tem, que desordem é está?” que, pulando sobre a cena, eu devia projetar para uma plateia de desconhecidos. Sim, para fazer teatro, é preciso querê-lo e passar além da extrema dificuldade de estar lá, sozinho em plena luz em frente de todos, com o nervosismo, que é em você essa qualquer coisa que se revolta contra o risco.
Le Monde: Existe aí um conservadorismo subjetivo, uma disposição humana a conservação de si e do mundo tal como ele vai?
Alain Badiou: Sim, existe qualquer coisa no espírito humano de profundamente conservador e que vem da vida ela mesma. Antes de qualquer coisa, é preciso continuar a viver. É preciso se proteger, a fim, como escreve Spinoza, de “perseverar no seu ser”. Quando meu pai me explicou que a vontade pode bastar, ele deu a entender que é preciso prestar atenção nessa disposição em si mesmo.
O teatro, ele é também esse momento onde o corpo vivente serve uma ficção. Alguma coisa entre então em contradição com o puro e simples instinto de sobrevivência. No ato do cômico, existe a decisão miraculosa de assumir o risco de uma exposição integral de si mesmo. Graças ao meu professor do 4º ano, eu encontrei tudo isso. O teatro foi minha primeira vocação. E ele volta sempre.
Le Monde: No teatro, você encontrou então o encontro como a decisão….
Alain Badiou: Eu me encontrei, com efeito, antes de tudo, com alguém: meu professor de francês. Ele foi a mediação viva do encontro com o teatro. É exatamente isso o que explica Platão no Banquete, onde ele expõe que a filosofia ela mesma depende sempre do encontro com alguém. Esse é o sentido do maravilhoso conto que Alcebíades faz de seu encontro com Sócrates. Através desse encontro com alguém são colocadas as questões do querer, da decisão, da exposição e da relação com o outro. Tudo isso coloca você em uma situação de vida magnifica e perigosa.
Le Monde: Seu outro encontro foi com a filosofia e a leitura de Jean-Paul Sartre. Porque escolher a filosofia como orientação para a vida?
Alain Badiou: A filosofia, tal como eu a encontrei pela mediação de Sartre, prolonga ela também a máxima paternal. Eu continuo fiel a Sartre em um ponto essencial: nós não podemos argumentar através da situação para não fazer nada. É um ponto central de sua filosofia. A situação nunca é tal que seja justo parar de querer, de decidir, de agir. Para Sartre, é a consciência livre e ela somente que dá sentido a situação, e, por conseguinte, não se pode desembaraçar-se da responsabilidade própria, quaisquer que sejam as circunstâncias. Se a situação mesma parece tornar impossível aquilo que a nossa vontade quer, será preciso querer a mudança radical dessa situação. Eis a lição sartriana.
Le Monde: Em que a filosofia poderia nos ajudar a ser feliz?
Alain Badiou: A felicidade, é quando nós descobrimos que somos capazes de alguma coisa que nós não sabíamos capazes. Por exemplo, em um encontro amoroso, você descobre qualquer coisa que vai colocar em maus lençóis seu egoísmo conservador fundamental: você vai aceitar que sua existência depende inteiramente de uma outra pessoa. Antes de experimentá-lo, você não tinha a menor ideia disso.
Você aceita repentinamente que sua própria existência esteja na dependência de outra. E as precauções que você toma habitualmente para se proteger são minadas por esse outro que se instalou em sua existência. Em seguida, será preciso procurar tirar as consequências dessa felicidade, tentar mantê-la em seu apogeu, ou tentar reencontrá-la, reconstituí-la, para viver sobre o sinal dessa novidade primordial. É preciso aceitar que essa felicidade trabalha às vezes contra a satisfação.
Le Monde: Porque opor felicidade e satisfação?
Alain Badiou: Primeiramente, a felicidade é fundamentalmente igualitária, ela integra a questão do outro, enquanto que a satisfação, ligada ao egoísmo da sobrevivência, ignora a igualdade. Depois, a satisfação não é dependente do encontro ou da decisão. Ela ocorre quando nós encontramos um bom lugar no mundo, um bom trabalho, um carro bonito e belas férias no estrangeiro. A satisfação é o consumo das coisas pelas quais lutamos para obter. Afinal, é para gozar desses bens que nós tentamos ocupar um lugar adequado no mundo tal como ele é. Portanto a satisfação é, em relação à felicidade, uma figura restrita de subjetividade, a figura do sucesso segundo as normas do mundo.
O estoico pode dizer “Esteja satisfeito de estar satisfeito”. É uma posição ordinária que tudo mundo, eu inclusive, compartilha mais ou menos. No entanto, como filósofo, sou convocado a dizer que há algo de diferente que eu chamo de felicidade. E a filosofia sempre procurou orientar a humanidade do lado dessa felicidade real, aqui inclusive que essa não se obtém senão em detrimento da satisfação.
Le Monde: Se a felicidade consiste gozar a existência potente e criadora de uma coisa que parecia impossível, é preciso mudar o mundo para ser feliz?
Alain Badiou: A relação normal com o mundo é regida pela dialética entre satisfação e insatisfação. No fundo, é uma dialética de reivindicação, nós poderíamos chama-la de “visão sindical do mundo”. Mas a felicidade real não é uma categoria normal da vida social. Quando você faz uma demanda de felicidade e obtém um não como resposta, você tem duas possibilidades. A primeira consiste em mudar você mesmo e cessar de demandar essa coisa impossível. A felicidade lhe é interditada e é recomendado que você se contente com a satisfação. Você obedece. Tal é a raiz subjetiva do conservadorismo.
A segunda possibilidade é, como diz Lacan, de não ceder em seu desejo, ou como dizia meu pai, de não parar de querer aquilo que você quer. Então, existe um momento em que é preciso desejar mudar o mundo, para salvar a figura da humanidade que há em você, ao invés de ceder à proibição do impossível.
Le Monde: Então é sendo feliz que nós podemos mudar o mundo?
Alain Badiou: Sim! Sendo fiéis à ideia de ser feliz, e defendendo o fato que a felicidade não é idêntica à satisfação. Os mestres do mundo não gostam da mudança, então se você escolher manter contra os ventos e marés que qualquer coisa de outra é possível, eles vão fazer você saber de todos os meios que isso é falso. É exatamente o problema da Grécia hoje: o povo grego disse: “Nós não queremos mais sua tirania financeira. Nós queremos viver de outra forma.” As instituições europeias lhe responderam: “É preciso querer isso que nós queremos, mesmo contra seu próprio querer, e se vocês continuarem a não querer isso que vocês não querem, vocês vão ver o que lhes vai acontecer!”
Quando as pessoas recusam a servidão voluntária, eles as ameaçam. Então, os Gregos não estão pedindo-nos para continuar na dialética satisfação/insatisfação. Eles explicam que eles gostariam de poder decidir que alguma outra coisa é possível do que aquilo que lhe é imposto. Em especial, nós não estamos no registro da utopia: muitos economistas perfeitamente conservadores, explicam que nós podemos reestruturar a dívida grega, o que equivale a suprimi-la sem o dizer. Na realidade, o que os dirigentes europeus consideram como impossível, é deixar um povo decidir sobre esse ponto. Não é então uma sanção econômica racional, mas uma punição política. É um castigo ao desejo de felicidade, em nome da satisfação insatisfeita.
Le Monde: “Nós não vivemos nunca, mas nós esperamos viver, e nós temos sempre de ser felizes, é inevitável que não o sejamos nunca”, escreve Pascal. Uma felicidade verdadeira deve ser desesperada?
Alain Badiou: É uma frase sinistra. Mas se Pascal a escreve, é precisamente porque ele pensa que uma salvação no outro mundo o espera. Todos aqueles que argumentam a impossibilidade da felicidade na filosofia prometem uma outra, eles sabem que não podem entusiasmar o leitor expondo a ele a impossibilidade da felicidade. Eles tiram então de seu chapéu uma felicidade transcendente.
Eu sou absolutamente contra essa tese da felicidade sempre sonhada a qual não acedemos jamais. É falso, a felicidade é absolutamente possível, mas não na forma de uma satisfação conservadora. Ela é possível sobre a condição dos riscos assumidos nos encontros e decisões, os quais são colocados, em definitivo, em um momento ou outro, a toda vida humana.
Le Monde: Mas o que você faz das aflições: a doença, os acidentes da vida, os dramas, as rupturas e as separações conflituosas?
Alain Badiou: O fato de que há uma diferença entre felicidade e satisfação causa uma divisão da palavra aflição. Existem as aflições que se contentam em ser insatisfações profundas. Mas, mesmo nas situações de abismo mais profundo, a pista da felicidade raramente é integralmente fechada, pois a zona e a importância do possível são mudadas. Para alguém que tem duas pernas em bom estado, fazer uma terceira não é nada; para um paralisado em reeducação, é uma felicidade imensa.
Portanto, é preciso jamais declarar que a felicidade está suprimida: ela existe se modificando, em uma situação determinada, o limite entre o possível e o impossível. Ela consiste em não se deixar impor as impossibilidades abstratas e gerais.
Le Monde: O que é a aflição, então?
Alain Badiou: Nós poderíamos dar como primeira definição da aflição um estado de insatisfação grave e de extensão extrema da impossibilidade. Mas a aflição pode ser igualmente um fracasso da felicidade. A norma da fidelidade que eu introduzi, e que é sempre ligada a um encontro, e portanto a felicidade, propõe como imperativo a permanência dessa procura da felicidade. A fidelidade é o único imperativo ético, mas esse imperativo não é uma segurança de todo risco.
É preciso reconhecer que existem as catástrofes da felicidade. Essas últimas são de diferentes ordens: certas sobrevém por cansaço, por abandono, outras por infidelidade ou por traição. Na minha filosofia, o mal, é o fato de ser subjetivamente responsável por uma catástrofe da felicidade. Eu chamo isso de desastre. É uma experiência tão terrível quanto aquela da felicidade é intensa. Os conservadores gostam bastante dos desastres, pois disso eles tiram seu argumento principal para chamarem a se contentar com a satisfação.
Le Monde: No entanto, você diz que “mais vale um desastre que um desser”…
Alain Badiou: Ah sim. Mais vale correr o risco de um desastre, mas então também da felicidade real, que se proibir de imediato. Eu chamo de “desser” essa disposição conservadora do sujeito humano que o leva se reduzir à sobrevivência animal, a sua própria satisfação e seu lugar social. O “desser” é isso que interdita o sujeito de experimentar aquilo a que ele é verdadeiramente capaz.
Le Monde: As ligações de amizade de amor e amizade são alteradas por esse reino da satisfação das necessidades imediatas?
Alain Badiou: O mundo de hoje tem um modelo fundamental de alteridade e de troca, que é o paradigma comercial. Nós somos tentados a levar todas as relações com o outro como uma dimensão contratual de interesse recíprocos bem compreendidos. É a razão pela qual a separação é hoje muito mais ameaçadora do que era antes. Nós temos muito rapidamente o sentimento prematuro da obsolescência de qualquer coisa, sobre o modelo da obsolescência dos produtos. O conservadorismo de hoje é atormentado pela questão da mercadoria, que exige que você compre sempre o novo modelo e supõe então essa obsolescência rápida dos produtos.
O consumidor é a figura objetiva dominante, aquela que faz o mundo girar. Nossos mestres seguem com angustia o nível de compras de mercadoria pelas pessoas. Se, repentinamente, mais pessoas não compram, o sistema entraria em colapso como um castelo de cartas. Por isso nós estamos acorrentados a necessidade de comprar as coisas em seu surgimento, sua novidade, sua inutilidade funcional ou sua feiura criminal. Ora eu penso que isso não é sem contaminar a figura genérica das relações entre os homens, relações que agora valorizam oficialmente a concorrência.
Le Monde: Você faz um elogio da fidelidade?
Alain Badiou: De certo modo, porque essa obsessão da novidade mercantil, muitas vezes de modo disfarçado, é um fenômeno que prejudica a felicidade: a fidelidade sobre todas as suas formas é agora um valor ameaçado. Nós não temos o direito de ser indefinidamente fiel a seu velho carro, é preciso comprar outro, senão o sistema econômico está ameaçado!
Esse imperativo penetra o universo coletivo e pessoal e cria muitas separações. A essa lógica, é preciso opor a máxima herdada de meu pai: “Você pode querer continuar isso que você desejou, isso que você quis, e isso que então você é capaz. Você pode, então você deve.”
2 comentários em “A lição de felicidade de Alain Badiou”
Compartilho dessas apreensões de Badiou e em grande parte com SUS análise sobre a necessidade permanente de estarmos ao mesmo tempo abertos mantendo o nosso senso crítico sempre alerta, procurando nos pautar pela coerência de nossos pensamentos conjugando-os com a nossa “práxis”…