Por Eli Friedman, via Jacobin Magazine, traduzido por Gabriel Landi Fazzio. Foto: Trabalhador em fábrica de Beijing. Raphael Olivier / Flickr
Realocações das fábricas e privatizações das terras colocam trabalhadores migrantes chineses na defensiva.
Os especialistas dizem que o milagre chinês acabou. O país provavelmente escapará a uma crise econômica plena, mas os alegres dias de 8-10 por cento de crescimento anual acabaram.
Como tem sido amplamente noticiado nas semanas recentes, há diversos fatores desacelerando o crescimento, e a queda da bolsa de valores é apenas um dos problemas. A crise está enraizada em questões mais profundas decorrentes do modelo chinês de crescimento, puxado pelas exportações e investimentos financiados por dívidas, em face da feroz competição global e da lucratividade em declínio.
Muito se fala, inclusive, sobre o impacto da queda da bolsa para os investidores chineses. Mas o que irá significar a desaceleração para os trabalhadores chineses e como as coisas serão diferentes da crise financeira global de 2008?
Apenas sete anos se passaram desde a Grande Recessão, que começou nos Estados Unidos mas imediatamente afetou muitos outros países, inclusive a China. Quando os pedidos dos compradores nos EUA e na Europa evaporaram ao fim de 2008, vinte milhões de trabalhadores migrantes perderam seus empregos. Isso conduziu a uma escalada massiva de insatisfação social, diante das reivindicações dos trabalhadores do pagamento dos salários atrasados pelas empresas falidas. Cidades dependentes das exportações foram atingidas por greves sem aviso prévio, ruas bloqueadas e tumultos, enquanto as cortes eram sobrecarregadas com disputas laborais.
Mas então todos voltaram para casa para o Ano Novo chinês. Embora trabalhadores migrantes fossem muitas vezes excluídos dos serviços sociais urbanos, a maior parte deles mantinha direitos sobre terras no interior do país, de forma que os trabalhadores desempregados voltaram para suas vilas e esperaram as coisas mudarem.
Antes da crise econômica, o governo central vinha considerando uma proposta para levar adiante a privatização das terras. Mas, confrontado com milhões de migrantes desempregados das cidades, o plano foi rapidamente adiado enquanto elementos “conservadores” (isto é, contrários às privatizações) do partido argumentaram que as reminiscências socialistas das terras rurais coletivas serviriam com um importante absorvedor dos choques do mercado.
Entre o fim e 2008 e o começo de 2009, o governo tomou sérios passos para encorajar a recuperação econômica nas áreas urbanas. Muitos governos locais suspenderam recém-aprovadas leis trabalhistas, enquanto o governo central estabeleceu fundos de auxílios para os exportadores angustiados.
A peça central da resposta à crise foi um enorme pacote de estímulos. Governos locais assumiram uma literalmente incalculável quantidade de dívidas para investir em infraestrutura e outros projetos para a criação de empregos. Uma vez que a capacidade dos governos locais para assumir dívidas é restringida pela lei, eles criaram companhias formalmente independentes e pegaram empréstimos em seus nomes. As bolhas de ativos subiram aos céus e o crescimento foi reestabelecido.
Com um setor de construção em rápida expansão, milhões de trabalhadores rurais puderam conseguir trabalho sem muitos problemas. A despeito da desorientação dos gerentes quanto aos crescentes custos comerciais, as exportações retomaram sua trajetória ascendente, auxiliadas em parte pelos investimentos e subsídios do governo para a infraestrutura.
Mas as táticas usadas para sufocar o dissenso e reiniciar o crescimento em 2008 – posse coletiva da terra no interior e expansão das dívidas nas cidades – são crescentemente inviáveis hoje. Desde 2008, a transformação capitalista da agriculturaocorreu em grande velocidade. Ainda que o governo mantenha um compromisso retórico com a posse coletiva das terras rurais, a agricultura está crescentemente sob o controle do capital.
O mercado de locação de terras expandiu, o que permite ao agronegócio consolidar a posse da terra e empregar trabalhadores assalariados para trabalhar nos campos. Ainda que camponeses possam tirar alguma receita da locação dos direitos de uso da terra para tais companhias, isso significa que não poderão retornar à agricultura de subsistência se a economia de mercado falhar em gerar empregos.
O crescimento via urbanização significou inclusive a desapropriação massiva da população rural. Na medida em que os governos locais passaram a depender de bens imóveis para gerar receitas fiscais, as autoridades municipais desenvolveram fortes incentivos à disposição de terras rurais dos arredores para usos mais rentáveis.
Projetos de infraestrutura como os trens de alta velocidade, rodovias e aeroportos se expandiram rapidamente desde 2008, resultado em milhões sendo tirados de suas terras. Ainda que a resistência tenha sido muitas vezes intensa, os camponeses são geralmente despojados de suas propriedades com parcas compensações. E se muitos camponeses (e trabalhadores migrantes) mantêm direitos de propriedade sobre as terras, esse recurso é debilitado a fim de facilitar acumulação futura. Uma crescente parcela da população tem se tornado verdadeiramente proletária, sem qualquer meio de sobrevivência fora do mercado.
Para lidar com a presente crise e aumentar a confiança tanto doméstica quanto nos mercados globais, o estado chinês deve, em curto prazo, realizar outra expansão de crédito.
Mas um estímulo na escala daquele de 2008 parece altamente improvável – a dívida total da China quadruplicou desde 2007, atingindo agora 282% do PIB. Ainda que as opiniões difiram sobre se essa dívida de empréstimos resultarão em uma crise financeira, a China não pode continuar alavancando desta forma seu crescimento indefinidamente. Ademais, ainda que a recente desvalorização do câmbio possa estimular a exportação de certos bens, as taxas de câmbio caíram em muitos países do sul global, e no corrente clima econômico desvalorizações cambiais tem conduzido no mais das vezes à queda das importações sem nenhum aumento concomitante das exportações.
Ao mesmo tempo, outros países do sul global têm emergido como sérios competidores nas fabricações. A Samsung agora produz mais telefones no Vietnã que na China, e a Foxconn anunciou planos para empregar um milhão de pessoas na Índia até 2020.
Alguns alegam que o setor de serviços irá absorver o trabalho em excesso – como os EUA, os serviços na China contam com mais empregados do que qualquer outro setor – mas a competição crescente pela produção ira provavelmente custar à China muitos empregos.
Tudo isso poderia dificultar a vida da casse trabalhadora chinesa. Os aumentos salarias dos anos recentes já foram em sua maior parte anulados pelo aumento do custo de vida. Pesquisas recentes demonstram que a muito elogiada Lei do Contrato de Trabalho, de 2008, tem em sua maior parte beneficiado os trabalhadores alocados nos melhores postos de trabalho.
Os 270 milhões de migrantes que formam o núcleo da classe trabalhadora permanecem majoritariamente excluídos dos serviços públicos urbanos e da seguridade social – o que significa que quando estão nas cidades, dependem absolutamente do mercado para ter acesso à moradia, à saúde e à educação. E alguns poucos trabalhadores têm robustos seguros contra o desemprego, algo que agora parecer ser uma preocupação crescente.
Essa prensagem dos trabalhadores chineses levará a mais conflitos. De fato, a maior parte dos sinais aponta para um recente aumento das lutas de classes conforme a ainda embrionária classe trabalhadora resiste à seu eminente destruição. Ainda assim, enquanto os trabalhadores estavam em ofensiva há apenas alguns anos, agora as greves são crescentemente focadas em salários não pagos, realocações das fábricas e falências.
Algumas greves recentes no centro industrial de Guandong ilustram essa dinâmica. Um
notável exemplo é a série de lutas operárias no começo deste ano na fábrica de sapatos Lide, na cidade de Guangzhou, que chamou a atenção para o alto grau de organizações dos trabalhadores e repetidas ações grevistas.
Mas a demanda central dos trabalhadores era assegurar o recebimento dos pagamentos de seus benefícios legalmente requeridos e compensação pela perda do emprego antes da realocação da fábrica.
A greve do último ano de mais de 40 mil trabalhadores na fábrica de sapatos Yue Yuen de Dongguan, apesar de um avanço significativo na capacidade organizativa dos trabalhadores, foi uma ação defensiva – o patrão requeria que os empregados compensassem a empresa pelos anos não pagos de contribuição previdenciária. E, durante o curso da greve, a Adidas anunciou que mudaria alguns de seus pedidos para outro lugar.
A maioria dos trabalhadores chineses pouco se importa com a queda da bolsa. Comparado a outros países, os índices chineses são uma pequena parte da economia total, e os trabalhadores geralmente não investem em ações. Mas no corrente clima econômico, se as pessoas forem tiradas de seus empregos, não haverá nem de longe a mesma quantidade de projetos de infraestrutura e empregos industriais esperando por eles como outrora, e cada vez menos pessoas terão direitos sobre a terra em suas vilas de origem.
Esses são elementos de uma situação desesperadora.
Para piorar a questão, o líder chinês Xi Jinping introduziu o clima político mais repressivo desde 1989. É desnecessário dizer que a auto-organização dos trabalhadores ainda é vista como uma ameaça mortal ao poder estatal. Mas mesmos defensores decididamente moderados dos trabalhadores no mundo das ONGs e na academia têm se deparado com dura repressão do estado chinês ao longo dos últimos dois anos.
Se parece provável que lutas de classes aumentadas se materializarão nos próximos meses, parece igualmente certo que a resistência dos trabalhadores se deparará com a violência estatal.
A situação pode mesmo piorar ainda mais para os trabalhadores se o Partido seguir a orientação aparentemente unânime da sabedoria liberal ocidental: mais mercantilização. Liberais pró-mercado pensam que menos intervenção governamental na economia ajudará a China a avançar num “reajuste”, isto é, dívidas e dependência na exportação decrescentes e expansão de serviços e consumo domésticos.
O Banco Mundial e outros têm reclamado que bancos controlados pelo estado alocam capital demais em setores ineficientes do estado, o que fere o crescimento e a criação de empregos. “Liberar” mercados de capitais e privatizar as empresas estatais remanescentes, eles insistem, irá superar esse impasse.
No momento, agricultores em muitas regiões podem arrendar suas terras, mas os partidários do mercado como o Economist dizem que isso não é suficiente. Eles alegam que direitos de propriedade plenos e legalmente executáveis permitiriam aos agricultores se desafogarem de suas terras e buscar suas fortunas da cidade com algum capital inicial em seus bolsos.
A privatização da terra inclusive criaria uma melhor economia de escala na agricultura, o que levaria a uma mais eficiente alocação do trabalho nacionalmente. A eficiência aumentaria, os salários aumentariam e o consumo doméstico aumentaria.
Mas as privatizações têm um péssimo histórico em assegurar uma distribuição de recursos mais equitativa na sociedade – o que será, é evidente, necessário para aumentar o consumo doméstico. Ao invés disso, nós temos todas as razões para acreditar que mais privatizações resultariam em corrupção e perda da propriedade coletiva massiva, da mesma forma como ocorreu na China ao fim da década de 90 e no começo dos anos 2000. Foi precisamente o controle estatal sobre as finanças que permitiu à China evitar os efeitos mais devastadores das crises financeiras de 1997 e 2008.
Setores industriais e de construção reduzidos e crescimento desacelerado são inegáveis no futuro da China. Ainda que os trabalhadores da indústria e da construção tenham sido cada vez mais militantes nos anos recentes, as perspectivas de longo prazo para a consolidação de seu poder político e econômico não são boas.
É relativamente fácil para os trabalhadores industriais partirem para a ofensiva quando a economia está em crescimento e os postos de trabalho estão plenamente preenchidos – vantagens que provavelmente não desfrutarão nos próximos períodos. Enquanto seu poder no mercado de trabalho diminuiu e cada vez menos trabalhadores migrantes têm terras para as quais retornarem no interior, é chegado o tempo das demandas pela extensão da assistência social e proteção dos trabalhadores contra as devastações do mercado.
1 comentário em “Quem pagará a conta da crise na China?”