Para quem fala a Filosofia? Entrevista com Seyla Benhabib

Por George Yancy, via Opinionator, traduzido por Felipe Kantor

Seyla benhabib leciona Ciência Política e Filosofia em Yale, e é responsável pelo programa de Ética, Política e Economia da faculdade. O desenvolvimento do seu pensamento filosófico deriva de seus trabalhos que dialogam com a Escola de Frankfurt, especialmente com ênfase em seu trabalho com Hebert Marcuse e a Teoria Feminista. Uma de suas principais articulação teórica é a noção de “fronteiras porosas” que, inspirada na obra “Paz Perpétua” de Immanuel Kant, diz de uma visão cosmopolita que preza pelo princípio universal da hospitalidade. Segundo Kant, este princípio versa acerca do direito de ir e vir ser temer ser hostilizado. Traço esse que a pensadora se vale para pensar a situação de estados soberanos hoje enfraquecidos, em que seus cidadãos não mais possuem um sentimento de pertencimento e que, subsequentemente geram uma sensação de exclusão e perda de direitos – especialmente, quando a política atual de fronteiras dos estados modernos é destinada quase completamente, para barrar estrangeiros. Abaixo, entrevista realizada por George Yancy em outubro de 2015


George Yancy: Como você enxerga a importância da esfera pública como um lugar para discussão crítica de assuntos que dizem respeito a persistência e realidade da raça nos Estados unidos?

Seyla Benhabib: Estamos conduzindo esta conversa logo após os tiroteios na igreja na Carolina do Sul; os velórios tocantes e inspiradores das vítimas, e a remoção da bandeira confederada do terreno do capitólio estadual da Carolina do Sul. Estes são eventos que despertaram alguns dos mais significantes debates sobre simbolismo racial na esfera pública da América do Norte. Todos fomos lembrados da presença do passado, e para parafrasear William Faulkner, “O passado não está nunca morto. Não é nem ao menos passado”.

Eu não sabia, por exemplo, que a bandeira confederada foi revivida nos estados sulistas durante e após os movimentos de direitos civis em claro desafio à integração e a igualdade racial. Não era apenas uma bandeira a qual os soldados confederados defenderam e morreram por. Se tornou, como alguns representantes da Carolina do Sul nos disseram, um símbolo de desafio e ódio, e um lembrete de que a Guerra Civil pode ter sido vencida, mas a batalha pela superação do preconceito racial não acabou.

G.Y: Sim. Dentro de nosso mundo, ainda que não restrito aos sinais e símbolos de ódio, somos bombardeados por sinais e símbolos racistas.

S.B: Vivemos em sociedades televisuais que estão afogadas em mensagens, imagens e símbolos, que circulam no clique de um mouse. A internet cria imagens icônicas de forma imediata e estas podem ter uma força galvanizante – para o bem e para o mal. Pense na imagem de Neda, a jovem garota iraniana baleada em 2009 durante demonstrações contra o regime de Teerã, ou Mohamed Bouazizi, o vendedor de vegetais tunisiano que em 2011 se incendiou, e cuja morte incitou a chamada Primavera Árabe. Imagens como estas indicam o poder da comunicação eletrônica e televisual na cultura pública de grande escala.

As novas tecnologias da esfera pública também desafiam as sociedades democráticas de maneira que a velocidade de circulação de imagens frequentemente suprime os processos comunicativos e deliberativos, que precisam acontecer entre todos aqueles afetados, para desembrulharem e entenderem o que está sendo sugerido por estas imagens; se elas significam o mesmo a todos os envolvidos; e se não, como ou por que não? Em sociedades ainda fortemente divididas – mesmo não sendo legal e constitucionalmente – por linhas raciais e étnicas, esta conversa pública se torna ainda mais significante para a aprendizagem da convivência. Como vimos no caso do massacre da Carolina do Sul, por vezes a tristeza e o pesar, que rasgam o tecido do cotidiano, são professores poderosos. Eles podem trazer à tona empatia e solidariedade inesperadas.

G.Y: Com mais frequência do que deveríamos, falhamos em entender uns aos outros através das divisas raciais. Um discurso “pós-racial” pode até ocluir tal esforço. Como criamos espaços para o entendimento das condições dos outros, especialmente dentro do contexto de fronteiras raciais que nos dividem?

S.B: Deixe-me começar com uma memória pessoal: cheguei a este país de Istambul, Turquia, como uma bolsista estrangeira em 1970 para a Brandeis Univerisity. O programa que me patrocinou, o Larry Wien International Program, foi um grande sucesso de divulgação em países africanos e havia muitos estudantes africanos de Wien. Ainda assim, quando sentamos no refeitório dos alunos, os estudantes africanos sentavam-se na companhia de alunos afro-americanos, e efetivamente nos autossegregávamos em uma das instituições mais progressivas de sua época no país.

G.Y: E qual foi sua resposta?

S.B: Eu estava quase ofendida por isto. Vim de um país que estava dividido ao longo de todos os tipos de linhas étnicas e religiosas, mas não a de cor. Estando ativa nos movimentos estudantis de 68 e além, para mim era incompreensível que ao menos aqueles de nós que compartilhávamos visões políticas similares não poderiam ser amigos e colegas. Brandeis, como muito da América do Norte na época, estava passando por formas do separatismo negro. Angela Davis foi uma aluna de Herbert Marcuse em Brandeis, e eu vim estudar com Marcuse, não percebendo que ele já tinha partido para a Universidade da Califórnia em San Diego! Não foi até frequentar Yale e formar amizades com Lorenzo Simpson e Robert Gooding-Williams que comecei a perceber alguma coisa sobre a profundidade e a ferida da linha da cor neste país.

Compartilho esta história com você porque, como Iris Marion Young nos lembrou, para nos entendermos através das divisas de raça e muitas outras, temos que começar por “cumprimentar” e “contar histórias”. Uma das piores ofensas do racismo é que ele nos cega para quem o indivíduo é – a cor de sua pele se torna a máscara pela qual enxergo e, frequentemente, atrás da qual não quero enxergar a pessoa real. E como Du Bois, um aluno de Hegel, nos lembrou, aquele que está na posição dominada é consciente da perspectiva do mestre: ela é consciente dela mesmo como sendo vista pelo outro. É esta dupla-consciência que precisamos aprender a entender. Precisamos aprender a enxergar o outro – usando os termos que introduzi em “Situating the Self”, tanto como “os generalizados” e “o outro concreto”.

Como humanos, somos como os outros, igualmente merecedores de respeito e dignidade; mas também somos diferentes uns dos outros por causa de nossas concretas histórias psicológicas, habilidades, características de raça e gênero, etc. Ética e política são sobre negociar esta identidade-em-diferença através de todas as divisas. Vivemos em uma sociedade “pós-racial” apenas no sentido em que somos todos outros generalizados aos olhos da lei; mas como dolorosamente aprendemos, não nos olhos daqueles que administram a lei; o caixa do banco que decide sobre o empréstimo da hipoteca ou mesmo – para utilizar o famoso exemplo de Cornel West – o taxista de Nova Iorque que se recusa a atender o negro. A história da discriminação, dominação e disputas de poder entre os outros concretos triunfam do ponto de vista do outro generalizado.

S.B: Em “Feminist Contentions: A Philosophical Exchange” você observa, “Mas em suas mais profundas categorias a filosofia ocidental oblitera as diferenças de gênero na medida em que estas formam e estruturam as experiencias e a subjetividade da consciência”. É também verdade que a filosofia ocidental oblitera diferenças de raça e como esta categoria social forma as experiências dos não-brancos?

S.B: Filosofia ocidental, distinta do mito, da literatura, do drama e diversas outras formas de expressão humana, fala em nome do universal. A Filosofia emerge quando Sócrates e Platão mostram como temos que nos libertar dos “ídolos da cidade”, e quando os pré-socráticos perguntam sobre o que constitui a matéria e o universo, rejeitando as respostas fornecidas pelos mitos gregos politeístas. Há alguma coisa subversiva neste impulso filosófico e mesmo quando Platão reinscreve as diferenças do talento natural e habilidade dentro da ordem da cidade, ele o faz por subversão a ordem estabelecida da pólis grega, onde os homens livres chefes de família, quem também eram donos de escravos, eram cidadão livres. De acordo com “A República”, diferenças na cidade não serão baseadas em status social e econômico, mas nos talentos e capacidades demonstradas por crianças diferencialmente no nascimento: algumas são bronze, outras são prata e somente alguns poucos são ouro!

G.Y: Sim, esta é a “Nobre Mentira” de Platão.

S.B: Sim. É importante nos apegarmos a estes momentos no nascimento de nossa disciplina porque mais do que denunciar a tradição da filosofia ocidental como o cânone produzido por “homens brancos mortos”, precisamos lembrar aquele momento de abertura e fechamento, subversão e restauração, liberdade e dominação que estão presentes nestes textos que amamos: de “A República” até a “Filosofia do Direito” de Hegel. Da “Política” de Aristóteles até o “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil” de Locke e “Emílio” e “Do Contrato Social” de Rousseau, esta dinâmica de abertura e fechamento se mantém. E é no contexto desta dinâmica da liberdade para alguns e dominação para outros que precisamos entender tanto a diferença de gênero quanto de raça.

G.Y: Talvez possamos pensar aqui a afirmativa de Hegel de que negros não possuem geist (grosseiramente, espírito ou consciência), e o investimento de Locke no tráfico de escravos.

S.B: John Locke também era tutor e secretário do Conde de Shaftersbury, e escreveu que a Constituição das Carolinas para ele. Locke é um colonizador, que acredita que o trabalho do homem branco na apropriação e trabalho da terra criará a condição que será benéfica a todos. Mas quem exatamente está trabalhando na terra? Não o meste, mas o servo, e sabemos historicamente que não havia apenas servos aprendizes brancos durante a época de Locke nas colônias britânicas, mas também negros escravizados. Em vista da presença destes “outros”, que assombram o texto, o que fazemos da teoria de Locke do consentimento, igualdade e racionalidade? O quanto destes ideais são “poluídos” pela presença de outro cuja igual racionalidade nunca é presumida? É este o tipo de questão que a investigação crítica de raça nestes textos nos leva a questionar.

Diferente de Locke, que é um teórico do direito natural, Hegel possui um profundo sentido de história e é um grande realista social. Eu nunca soube corretamente o que fazer das  “Lições sobre a Filosofia da História”, onde ele discute África e afirma que negros não possuem geist. Claramente, ele era ignorante. Estas eram lições populares e popularizantes, simplistas ao extremo. Diferente de Locke, que era familiar com as realidades do colonialismo e do tráfico de escravos, Hegel de fato discute “Senhor e Escravo” na forma mais sublimada e abstrata na “Fenomenologia do Espírito”, sem muita referência à colonização do Novo Mundo. Ainda assim, possui muito a ser dito sobre o fato de que pessoas não podem ser propriedades, e que a escravidão é contra a liberdade humana e a razão na “Filosofia do Direito”.

Tudo isto complica a questão de como ler Hegel, e ainda mais importante, como se apropriar dele para filosofia crítica e teoria de raças. Obviamente, Du Bois o fez tão brilhantemente ao separar o poder das categorias hegelianas do próprio conhecimento limitado de Hegel sobre conhecimento histórico e preconceito pessoal. Du Bois, em “As Almas da Gente Negra”, ainda implantou o conceito de “Volksgeist” para negros, para que se investigasse suas próprias realizações e espírito coletivo.

G.Y: Acho que é importante mencionar que dentro da tradição da filosofia ocidental, a mente, codificada como branca e masculina, é privilegiada sobre o corpo, codificado como feminino ou uma significação da negritude, criando uma falsa prática desencarnada.

S.B: Claro, concordo com você. O mestre também demonstra “maestria” sobre seus próprios sentimentos e emoções, onde a dominação sobre os outros significa dominação sobre a alteridade interna. Assim como Adorno e Horkheimer defenderam brilhantemente em “Dialética do Esclarecimento”, na filosofia ocidental a razão é entendida como “ratio”, como razão instrumental, a qual as famosas palavras de Descartes pretendem nos tornar “mestres e possuidores da Natureza”. Tal ratio é um instrumento para a dominação social de outros. E o escravo, negro ou não, está sempre representado como parte da ordem da natureza que necessita ser dominada e subjugada. Tal entendimento da racionalidade traz consigo o dualismo mente/corpo.

Ainda assim, também devemos lembrar que há uma visão diferente da relação da razão para com as emoções, e de corpo para alma, a qual é mais uma de educação e formação e formatação – não dominação. Posso defender que de Aristóteles para Hume, para Smith e até mesmo o jovem Hegel, precisamos encontrar outro modelo de racionalidade como uma “inteligência encarnada”, como a formatação da emoção pela razão mais do que sua dominação. John Dewey é filósofo mais articulado deste entendimento alternativo de racionalidade.

G.Y: Como uma teórica política, você acha que a democracia é realmente capaz de entregar igualdade para os negros, de traduzir completamente os direitos humanos universalistas em uma verdadeira mudança para eles, já que foram especialmente, por centenas de anos, tidos como sub-pessoas?

S.B: Não acho que é a democracia que está falhando com os negros nos Estados Unidos, mas o assalto à própria democracia através de forças de um capitalismo global corporativo enlouquecido e o surgimento de um movimento conservador racista e vingativo que está se desenredando o compacto cívico. Democracia é impossível sem alguma forma de igualdade socioeconômica entre os cidadãos. Ao invés disso, nas últimas duas décadas nos Estados Unidos, a distância entre o 1% do topo e o restante aumentou, os direitos de voto e os sindicais foram ameados. Há uma negligência criminosa rampante dos bens comuns tais como autoestradas, ferrovias e pontes – sem mencionar a investida descarada do grande capital para a compra de eleições desde a decisão “Citizen’s United” da Suprema Corte[1]. Nos tornamos uma democracia de massa que está produzindo impasse nas instituições representativas exatamente porque é do interesse do capitalismo global corporativo torná-las ineficientes.

Receio pelo futuro da democracia nos Estados Unidos, e sou grata por, diferentemente de outros países, possuirmos militares que acreditam na democracia e não são inclinados a realizarem um golpe. Mas há outras forças que estão minando as instituições democráticas. Democracia só consegue sobreviver como democracia social, e é isto que está em falta nos Estados Unidos. Sob condições de igualdade crescente e ataques plutocráticos à democracia, são as populações mais vulneráveis como as comunidades negras urbanas ou rurais que são as mais afetadas.


[1] (Nota do tradutor) Determinação de 2010 da Suprema Corte norte-americana sobre a regulamentação de gastos de organizações com campanhas. Foi decidido que, segundo a Primeira Emenda da Constituição, o governo não poderia restringir os gastos com política, sejam eles oriundos de empresas, organizações ou até mesmo indivíduos. 

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

1 comentário em “Para quem fala a Filosofia? Entrevista com Seyla Benhabib”

Deixe um comentário