Por Douglas Rodrigues Barros
Não é fenômeno raro que em momentos cruciais da história surjam preocupações e interesses em comum. Somos testemunhas de que algumas descobertas e teorias científicas vêm ao mundo simultaneamente, em diversos locais e nas mãos de diferentes pensadores.
Como explicar a simultaneidade de Leibniz e Isaac Newton ou de Santos Dummont e os irmãos Wright? Análises sérias seguem uma espécie de espírito do tempo. Este último agindo com liberdade universal, em suas veredas abertas, não é capaz, contudo, de dar um único passo adiante sem depender de mulheres e homens que o coloque nos ombros. O espírito do tempo necessita, dessa forma, ir da universalidade à particularidade e vice-versa.
O livro de Pablo Polese é um destes que apresentam o espírito do nosso tempo conseguindo, com muito esforço, abrir picada para uma próxima passada. Há dois momentos no interior da obra: um momento podado pela necessidade de se respeitar as limitações de uma dissertação, que vai de O Estado frente à crise estrutural do capital até a Política radical e transição socialista; e, outro momento, de liberdade teórica intitulado Notas sobre o fim da centralidade do trabalho em que, claramente, se vê uma transição teórica do autor[1]. Ambos, porém, são momentos complementares de uma meditação profunda sobre a obra do mais importante filósofo dos últimos dois séculos, ou para citar Sartre, da “filosofia insuperável de nosso tempo”.
Com fôlego e paciência, a sensação provocada pela leitura é a de uma lupa que se atém a cada substantivo da obra marxiana. Usando Mészaros como um Virgílio, Pablo Polese demonstra como o processo civilizatório do capital parece em algum momento do século XX ter se esgotado. A suposta missão histórica do capital parece atingir seu limite no momento em que o desenvolvimento das forças produtivas se concretiza de maneira radical. O autor, se esquivando das fórmulas fáceis de divisar nisso um fim do capital, demonstra com Marx que “a organização dos processos de trabalho sob o jugo do processo de valorização resultou, especialmente com o contexto da ativação da crise estrutural do capital, na restrição proposital do desenvolvimento de certas facetas da produtividade do trabalho” (POLESE, 2016, p. 13).
Polese não apenas compreende a crise do valor, como também, indo um pouco adiante, traduzirá como isso não significou um processo de emancipação do trabalho senão uma exploração ainda maior. Fica pressuposto, porém, que uma análise mais profunda dessas indicações está vedada dado os limites dessa mais-resenha, no entanto, isso não exclui meu esforço de fazer uma apreensão crítica de algumas dessas mesmas indicações, tal como: a demonstração de que a crise estrutural projetada no interior do desenvolvimento das forças produtivas levará a uma superexploração do trabalho.
Como sabemos, o progressivo desenvolvimento das forças produtivas acarretou a contenção/limitação proposital por parte do capital. Isso o fez adentrar uma zona de crise permanente e, nesse contexto, Polese nos apresenta um conceito importantíssimo de Mészáros que, por assim dizer, irá dar as coordenadas de toda sua crítica posterior no interior do livro, a saber: a linha de menor resistência. Se antes o desenvolvimento do capital se baseava em tendências progressivas de desenvolvimento; agora, o seu desdobramento histórico tornou-se predominantemente negativo.
É na linha de menor resistência que as “novas” formas de sociabilidade predatória do trabalho surgirão. A linha de menor resistência, grosso modo, significa a manutenção de relações postas, sem o “trabalho” da melhoria da produtividade, que implicam produção e circulação de mercadorias e capitais. Dito de melhor maneira, significa a conservação de relações já efetivadas mantendo o controle que já se exerce sem ter que expandir o círculo produtivo, ou seja, sem se investir numa maior produtividade e inovação técnica. A partir de então o capital deixa de ser progressivo e se torna conservador e, portanto, regressivo à força de trabalho. Por isso, “a tendência dominante da produção capitalista posterior aos anos 1960 seria não mais a destruição produtiva, mas a produção destrutiva”.
Ante a crise operada no interior da produção com problemas na valorização do valor “o modo capitalista de produção (tornou-se) inimigo da durabilidade das mercadorias e, portanto, no decorrer de seu desdobramento histórico, deve minar de toda maneira as práticas produtivas orientadas para a durabilidade” (POLESE, 2016, p.21). Juntamente com Mészáros, Polese pontua que o século XX marcou o esgotamento dos potenciais civilizatórios do capital.
Ao usar o arsenal conceitual de Mészáros, o autor esclarece que uma crise estrutural não significa uma crise final – como muitas vezes fora repetida pelo marxismo tradicional – mas, implica sim, uma reestruturação produtiva que levará fatalmente para uma nova forma regressiva de sociabilidade e de relações intercapitalistas. Nesse sentido, duas tendências se entrecruzam: de um lado, a obsolescência programada das mercadorias fornecerá uma contínua extorsão da mais-valia absoluta em vista de ampliar o círculo de consumo, sendo pois um dos resultados da linha de menor resistência; de outro, por intermédio do monopólio, a taxa de lucro decrescente é deslocada para outros países e a ela se une o mecanismo brutal de exploração do trabalho.
“Em agudo contraste com a articulação social predominantemente produtiva do capital, que vigorava na época de Marx, o capitalismo contemporâneo se caracteriza pela disjunção radical entre produção genuína e autorreprodução destrutiva” (POLESE, 2016, p. 44). Em linhas sucintas: o caráter positivo de desenvolvimento da produção produtiva é sabotado conscientemente para salvaguardar as relações capitalistas.
Atenção hipotético leitor: todo esse caminho feito pelo autor é para preparar uma reflexão sobre o campo da ação política, ou ainda, para refletir numa ação que esteja para além da “política”. Tendo em vista que o desenvolvimento das forças produtivas sob égide do capital servirá sempre à manutenção de seu sociometabolismo, diante de uma crise que se mostra estrutural, tudo será feito para salvar a ordem sistêmica. Ou seja, o sistema não colapsará sozinho. Isso tem duplo significado: por um lado, o sistema ao colapsar potencialmente levará o colapso do planeta; por outro lado, é necessária uma luta organizada que se apresente como alternativa ao capital.
Tendo em vista, todavia, que o capital pressupõe relações totalizadas e totalizantes, seu modo de sociabilidade, ou como chama Mészáros, seu metabolismo, englobará diversas facetas da vida social, sendo o campo político algo central para sua dinâmica. Indo à centralidade da política, Polese nos demonstra que o modo de produção e reprodução social efetivado pelo capital opera cisões em diversos campos para fazer correr sua dinâmica, e uma das separações mais importantes que opera é entre política e economia. E aqui o Estado aparece como uma complementaridade fundamental – e, talvez, fundante/fundada – das relações intercapitalistas. Por isso:
“Uma das mais importantes consequências dessas determinações objetivas do sistema do capital, referentes à separação entre política e economia, é que a disputa pelo poder político entre capital e trabalho dentro da estrutura política parlamentar nunca foi e nunca poderá ser “justa” e “igual”. A despeito de seus interesses serem adequadamente representados no Parlamento, o capital, enquanto tal, não é uma força meramente política ou parlamentar. Por isso, nas lutas de classes restritas ao âmbito político do Parlamento o que “sempre decidirá antecipadamente contra o trabalho” é o inescapável fato de que o capital social total é uma “força extraparlamentar par excellence”, de modo que a pluralidade de capitais em disputa sempre verão defendidos e confirmados os interesses do sistema como um todo, a despeito, portanto, de suas lutas particulares entre si…” (POLESE, 2016, p.51).
Com essa constatação, pertinente aos dias atuais, cai de antemão uma miríade de ilusões no campo da esquerda democrático-popular e identitária, sem contar a extrema-esquerda partidária. E isso não é uma questão de opinião e sim de análise e demonstração dos pressupostos político-econômicos que erigem a totalidade capitalista e que foram amplamente demonstradas por Marx. O que opera nas relações sociais dominadas pelo capital é a total subordinação da política aos imperativos econômicos. “Ao limitar a esfera legítima de contestação ao âmbito exclusivamente político”, diz Polese (2016, p.58), “o capital castra a política socialista”.
Nesse sentido, a rearticulação das esferas política e econômica, cindida pelo capital, são os pressupostos centrais de uma ação revolucionária. E nesse ponto, Polese começa a tatear as possibilidades de uma ofensiva socialista a partir da ampliação do horizonte da classe trabalhadora que necessita se pôr para além da permissão burguesa de agir no interior do Parlamento. Ou seja, precisa desenvolver forças extraparlamentares capazes de rearticular as formas de sociabilidade em bases inteiramente diferentes.
Para tanto a classe trabalhadora precisa vencer a estratégia reformista que grassou no mundo como um todo. Tendo em vista que na crise estrutural mesmo o reformismo mais radical tende ao conformismo – posto que a acomodação à disjunção estrutural causada pela cisão entre política e economia não é mais capaz de responder positivamente à política –, a apatia de um eleitorado formado pela classe trabalhadora só pode coincidir com regressão política e social.
Seguindo as veredas abertas por Mészáros, Polese demonstra como a constituição dos partidos políticos aprofundaram ainda mais as formas defensivas da classe trabalhadora. Isso porque “se deu a separação entre “o braço industrial” do movimento operário (os sindicatos) e seu “braço político” (os partidos socialdemocratas e de vanguarda)” (POLESE, 2016, p. 75). Ao invés de levar a uma alternativa anticapitalista, tais formas de organização da classe trabalhadora levaram a uma disputa intra-classe de toda vexatória e insignificante que tem guiado a vida de milhares de ovelhas até agora.
Com a regressão das formas de sociabilidade capitalista, ou melhor dito, com a crise estrutural que se apresenta no interior de sua dinâmica produtiva, com o enfraquecimento da valorização do valor, houve também o esgotamento da forma política. E é nesse ponto que surge para Polese, seguindo Mészáros, a atualidade da ofensiva contra o capital.
E aqui o autor de A ofensiva contra o capital começará a apontar os possíveis caminhos à construção de uma alternativa socialista. Embora, afirme a necessidade de sair do âmbito negativo, a verdade é que Polese de maneira mais acurada demonstra melhor o que não fazer, do que o que fazer. Seu pressuposto afirmativo não consegue passar de pequenos e tímidos apontamentos.
Isso, contudo, não é um problema de insuficiência teórica, mas sim devido ao fato de que uma ação alternativa ao capital só é passível de ser compreendida e efetiva em sua construção, como bem sabe o autor de A ofensiva. Para citar Antonio Machado: “Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais; caminhante, não há caminho se faz caminho ao andar”. “Em outras palavras, a maioria se conquista durante a revolução, quando a alternativa à ordem vai sendo posta em prática e a classe trabalhadora passa a ter maior confiança e clareza da sua posição frente ao mundo burguês” (POLESE, 2016, p.95).
Nesse ponto da análise, Polese passa então a se debater no que há de político em Marx. Se contrapondo as estéreis críticas de Bobbio, o autor inicia um trabalho digno de Atlas, pois vai fazer uma análise acurada das obras do jovem Marx referenciando-as às obras magnas do velho Marx, em especial o Capital e seus inquietantes rascunhos dos Grundrisse.
Dentro dos limites postos, tecerei apenas um pequeno comentário acerca das reflexões de Polese sobre a Comuna de Paris, pois apesar do corte arbitrário que faço é o autor quem demonstra haver na Comuna um grande segredo. Ademais, a maneira instigante de como pensar uma ação ofensiva que vise uma sociabilidade para além do capital é demonstrada por Polese a partir da aventura dos “já-mortos-camaradas” que muito indicam em seus acertos e erros. Só que isso é tarefa do leitor buscar na obra aqui referenciada.
O grande segredo da Comuna, não obstante, foi uma forma política criada a partir da horizontalidade de relações e autogovernos produtores “no qual as funções públicas – militares, administrativas, políticas – tornaram-se funções de trabalhadores reais, ao invés de atributos de uma casta treinada” (POLESE, 2016, p. 183-84). Como sabemos, e Polese insiste nisso, Marx irá tentar compreender a Comuna partindo de características que foram adotadas pelos próprios revolucionários como uma forma organizativa até então inexistente.
De tal modo, para entendermos melhor a crítica marxiana, devemos também entender alguns pontos que foram adotados pela Comuna. É preciso salientar que a característica democrática no interior da Comuna era de tal modo horizontal que não exímia dos revolucionários o poder de qualquer decisão. Tal forma democrática era inédita na história – e salvo engano meu – ainda não encontrou parâmetros em lugar nenhum do globo. Destarte a estrutura estatal entrou em evanescência. O proletariado francês não se limitou apenas a se apossar de sua máquina, mas passou a transformá-la completamente destituindo imediatamente órgãos que eram claramente burgueses.
Entretanto, se a Comuna fez realizações prodigiosas para todos os revolucionários do mundo, por outro lado, suas limitações trarão lições importantíssimas e são estas que Polese faz questão de demonstrar. “Por maior vitalidade política revolucionária que uma Comuna isolada tenha, por mais que inicie revolucionamentos orgânicos na estrutura econômica da sociedade […] enfim, por mais que seja operante e ativa numa série de aspectos imprescindíveis à superação do Capital, ao não superar os profundos fundamentos materiais do capital […] mesmo esses inquestionáveis avanços acabam condenados ao processo de reposição das antigas bases alienadas inerente ao status quo (POLESE, 2016, p.188). Em linhas gerais, na linha de Mészáros, Polese chega à conclusão de que ao se derrotar apenas o capitalismo – forma política – sem se derrotar o capital – como forma econômica – toda e qualquer revolução está fadada a recolocar o capitalismo como base.
Desse modo, não escapam à aguda crítica os grandes modelos triunfantes da vulgata tradicional. Crítica que coloca o Estado como complementar ao capital, mas que – não negando a profunda orientação da limitação do trabalho enquanto categoria que pode inclusive salvaguardar as mesmas relações capitalistas ao se adequar a linha de menor resistência – coloca o trabalho como possibilidade/impossibilidade de transformação efetiva.
Possibilidade se acaso transcender as pautas correntes e defensivas lutando não só pela tomada dos meios de produção, mas pela aguda transformação dos modos de produção desses meios. Por isso, afirma o autor: “ao longo da história o sistema do capital produz e reproduz diferentes tipos de personificações necessárias à manutenção do domínio do sociometabolismo pelo capital e, sendo assim, uma política radical não pode se limitar a eliminar ou abolir politicamente tais personificações, posto que elas são substituíveis” (POLESE, 2016, p.243).
Assim a trinca Capital, Trabalho e Estado aparecem como configurações necessárias ao sociometabolismo do capital, ou ainda, como relação complementar na instauração das relações fetichizadas pelo capital. O que só pode significar que a transformação efetiva só pode se concretizar com a abolição das relações de classes e com o evanescimento das relações no interior do Estado. Processo comumente conhecido como transição. Processo que leva, no entanto, a uma cautela na análise de Polese, pois sai dos lugares comuns e da repetição das velhas cartilhas. Isso é feito com sucesso porque o autor tem clareza de que “devido à inseparabilidade das três dimensões do sistema do capital plenamente articulado, é inconcebível emancipar o trabalho sem simultaneamente superar o capital e o Estado, justamente porque o pilar material fundamental de suporte do capital não é o Estado, mas o trabalho em sua contínua dependência estrutural do capital” (POLESE, 2016, p.237).
A ofensiva contra o capital de Polese é um livro que acaba de sair do forno e fornece grandes contribuições ao pensamento crítico. Por isso, repetindo o que Mészáros aponta na contracapa, este livro “deve ser lido por todos aqueles que se preocupam com as perspectivas de mudança em nosso tempo crítico e estão empenhados em fazer algo a respeito da crise estrutural…”. E isso se dá porque em sua análise, os velhos pressupostos ortodoxos caem e o pensamento marxiano parece ganhar um novo oxigênio que, para nossa sorte, parece ser algo do espírito do nosso tempo.
Polese ainda tece uma crítica radical à centralidade do trabalho, mas isso… isso será tema de uma outra crítica…
Bibliografia
POLESE, P. A ofensiva contra o capital: política radical e definhamento do Estado na transição socialista. Rio de Janeiro. Gramma, 2016.
[1] Esse, entretanto, será tema de outro artigo…
*Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutorando em Filosofia e membro do CEII – Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia.