Política e Problema

Por Gabriel Tupinambá

Ouvindo todos aqui[2], eu pensei que esse nosso debate de hoje poderia acontecer sob dois títulos diferentes. Pois é diferente falar do problema da unidade da esquerda e falar da unidade problemática da esquerda. Em um caso, o problema que a gente quer resolver é saber como que vamos nos unir. No outro, a questão é mais os problemas que aparecem quando nós já estamos unidos – o que eu acho que também é interessante de ser debatido e é, na verdade, o que me interessa particularmente.


Dedicado ao pessoal da ocupação do departamento de Letras da UFF[1]

Eu sou psicanalista, e psicanalista basicamente é a pessoa que trata das coisas que deram errado depois que elas deram certo. Uma coisa é você estar solteiro sem ninguém – a vida é ruim né – mas você não sabe quão ruim pode ficar depois que você está com a pessoa que você realmente quer, como a vida é muito pior. Isso é uma unidade problemática, e quem está apaixonado sabe o quão horrível o amor pode ser. Mas por que que isso é importante? Por que levantar essa consideração é importante?

Na sua apresentação, o Fernando [Fagundes Ribeiro] colocou pra gente uma série de dicotomias da esquerda contemporânea – tensões, teses e antíteses – e depois a gente viu que não sabe muito bem como combinar esses vários lados. Mas tem um problema aí que não é só o de decidir o que vamos fazer, mas de perceber o que a gente tá fazendo enquanto a gente decide o que vai fazer. Para pagar de intelectual aqui pra vocês, cito o Descartes, lá naquela coisa dele sobre o método cartesiano, de sair duvidando de tudo. Ele bolou o conceito de uma “moral provisória”, que é o seguinte: por exemplo, para trazer um prédio abaixo e subir outro com novas fundações, a gente precisa de um lugar provisório para guardar as ferramentas, o material, etc. Como que vamos destruir um edifício e construir outro se não estamos considerando onde vamos deixar o cimento, onde o pessoal da obra vai comer, onde é o banheiro, etc? A moral provisória é uma espécie de casebre, pode até mesmo ser improvisado, que é uma condição necessária para lidar com os problemas materiais de destruir e construir alguma coisa, seja na teoria ou seja na prática

E não pensar nesses problemas, no campo da política de esquerda, significa principalmente não pensar no que seria uma organização igualitária que não tem consenso porque ainda tá debatendo posições diversas, onde as pessoas não concordam em absolutamente ou quase nada, mas tem que conviver de alguma maneira, até para discutir a “invenção estratégica” e a “sobrevivência tática” da qual falou agora pouco o Marco [Pestana]. Isso me lembra um pouco aquelas cenas de filmes de horror, onde as pessoas estão fugindo do monstro, aí entram em uma sala e trancam a porta, para se proteger do perigo externo, mas o monstro está do lado de dentro, trancado com elas – é um deles. Então essa coisa de que vamos nos juntar para sobreviver… às vezes é assim que o monstro vai e pega a gente.

Falando em humor de baixo nível, me lembrei de uma piada sobre o stalinismo que eu acho que expressa bem o perigo que a gente sofre quando fica preso nessas dicotomias que a gente não sabe como resolver, e sem saber como que a gente faz para se organizar durante essa suspensão de acordo. Tem essa piada famosa, onde a questão toda era: vai ter dinheiro ou não vai ter dinheiro no comunismo? Os revisionistas diziam que sim, vai ter dinheiro no comunismo, não tem como não ter, e os radicais diziam, não, não vai ter dinheiro. E então, perguntam ao camarada Stalin: ó, grande camarada, como você resolve essa questão? Camarada Stalin é certeiro: “É fácil, uma síntese dialética. Vai ter dinheiro pra uns, e não vai ter dinheiro pros outros.” E, de fato, quando a gente não pensa em estrutura organizacional e em lógica da organização nos momentos onde a gente tem uma contradição que a gente não sabe como resolve, essa falta de estrutura acaba repetindo as estruturas de poder que encaminham correntemente esse conflito. Eu tenho muita convivência com pessoas que ocupam espaços militantes, que tem interesse na luta militante, mas como não tem recurso financeiro, e para participar de uma ocupação tem que pagar transporte, alimentação, tem que deixar de estudar, trabalhar, ela não pode participar como uma outra pessoa que tem esses recursos garantidos. Então, esse espaço onde a gente vai se juntar para pensar o que vai fazer, se a gente não tem uma noção de estrutura, de organização, logística, básica, para sobreviver juntos nesse espaço com alguns critérios, com uma moral provisória, dentro desse espaço vai se repetir a estrutura de dominação que existe no resto do mundo. Um pouco como o Stalin que resolve o problema da contradição do dinheiro com uma solução estranhamente familiar.…

Então eu acho que é essa a questão da “unidade problemática das esquerdas”: como é que a gente organiza no dissenso? E não é no dissenso no sentido simples, de “eu discordo de você, então vamos concordar em discordar”: é o dissenso que vem quando não é o teu julgamento que é contrário ao meu, é minha própria existência que está em conflito, que é dilacerada pela existência de uma outra coisa.

Uma coisa que acontece um pouco na tradição marxista, que é a minha, é que a gente traduziu “materialisticamente” a filosofia idealista, a do Hegel e de outros mais, trocando um termo muito importante. O Hegel falava em “identidade dos contrários”. Nós marxistas falamos em “unidade dos contrários”. Unidade dos contrários é muito mais fácil. Unidade dos contrários são pessoas, forças, que são interdependentes, e a gente quer pensar como a gente une ou separa duas coisas que se contradizem, que estão em conflito. Outra coisa é a identidade dos contrários, que é quando a minha existência é solapada pela existência de uma outra coisa da qual eu dependo. Não é que as duas existências existem e estão em conflito. É pior que isso. Esse problema da identidade dos contrários aparece muito quando a gente que se organiza em um nível de heterogeneidade, de composição social, das ideologias, que não são só diferentes, mas a existência de uma pode excluir a base de legitimidade da outra.

Por exemplo, quando o Ivan [Martins] estava falando aqui da “aliança dos dominados contra os dominantes”, e que a gente não pode se aliar com os dominadores – bem, aí a gente já vê um problema, porque na hora que a gente começa a ver os grupos de quem são os dominados e os dominantes pelas diversas perspectivas de lutas, eles se sobrepõem. Um dominado é um dominante do outro ponto de vista. Encontrar aquele grupo que é puramente dominado, a gente ainda tá para encontrar.

Lembrando de mais um clichê humorístico, aquela frase famosa do Groucho Marx de que “eu não quero fazer parte de um grupo que me aceite como membro” – acho que temos aí um bom exemplo do que seria uma identidade dos contrários. Eu pertenço a esse grupo, mas se ele me aceitou, eu não quero estar nele, isso é: a minha inclusão deslegitima o grupo que me incluiria. É um tipo de paradoxo que temos de levar muito a sério. Por exemplo, você se reconhecer parte dos processos de dominação, isso te coloca do lado dos dominados, ou você tem que ser olhado pelo ponto de vista do teu caráter institucionalmente ligado a dominação? Então nem sempre dá pra você separar os aspectos da contradição – é mais fácil separar os aspectos da contradição quando estamos falando de “unidade” de contrários, quando o problema é a convivência de dois elementos com duas posições distintas: outra coisa é quando o mesmo elemento ocupa dois lugares ao mesmo tempo. É o tipo de paradoxo que enfrentamos quando temos que analisar as contradições entre a base econômica e a ideologia de uma mesma classe social. Como é que a gente faz?

Ouvindo meu amigo [Edemílson] Paraná aqui, que concluiu a análise dele sobre a tragédia das esquerdas com essa proposta preliminar de que devemos buscar nos desvencilhar dos vícios de cada corrente da esquerda para ficar com as virtudes de cada uma, me veio uma outra piada terrível, também sobre o socialismo. É mais ou menos assim: “O que é o socialismo? Ele preserva o melhor de todos os regimes: do feudalismo ele pegou a servidão, do capitalismo ele pegou a exploração e do socialismo… ele pegou o nome”. Acho que essa piada captura um pouco o problema que a gente tem quando temos que fazer uma síntese acelerada demais das coisas, numa espécie de processo de seleção de aspectos bons e aspectos ruins de um processo concreto – na maior parte das vezes essa síntese é sintética mesmo só no nome.

Mas eu acho que essa tarefa de sobreviver às contradições de maneira organizada é um problema que tá se colocando para a gente agora e que talvez nunca tenha se colocado da mesma forma no passado. Por uma razão muito simples, que é que no passado a gente tinha futuro. Um futuro claro, em algum sentido. Então quanto a homogeneidade de um processo coletivo era abalada de maneira profunda ou violenta, eu podia projetar um outro momento onde essa discordância iria ser dissolvida – o futuro também é o tempo do acerto de contas né? Ou seja, o futuro garantia uma homogeneidade subjacente às nossas diferenças. Hoje em dia a gente tem que se organizar, tem que pensar em igualdade de condições, sem ter uma noção clara de como uma coisa que tá aqui vai dar no futuro – muito porque, como o Marco estava falando, há um déficit real, uma necessidade mesmo de reinventar alguma visão estratégica à luz das condições contemporâneas e futuras. Então começa a aparecer um problema que tem a seguinte cara: como é que a gente estrutura um processo de organização, ligado à igualdade, à crítica das opressões, à capacidade efetiva de acumulação de poder e transformação social, quando esse próprio processo produz e intensifica contradições e tensões?

Não é sempre o inimigo externo que traz o problema – ainda que os balanços de derrotas da esquerda foquem quase exclusivamente nisso – existem também os problemas que surgem quando a gente produz condições artificiais de se organizar de maneira igualitária. Isso é, existem tem contradições que são internas à igualdade. Como eu estava falando, às vezes a vida na disjunção, na diferença, na heterogeneidade, na desigualdade, ela não expõe a gente a uma série de problemas que, como a gente só viveu em desigualdade, são desconhecidos pra nós até a gente voluntariamente entrar num processo que produz uma condição localizada de igualdade. Não é à toa que todo mundo aqui é traumatizado com seu primeiro namoro: você nunca teve uma experiência, você é solteiro a vida inteira, aí a primeira vez que você tem que viver com alguém junto de você, você acaba tendo que experimentar problemas que você não conhecia e não podia antecipar. Ou seja, experiências igualitárias, experiências de doação real de si, não são essencialmente experiências de resolução dos nossos problemas, são, ao contrário, processos através dos quais a gente assume problemas que não precisávamos ter até então. Ora, para lidar com isso nós precisaríamos de uma teoria emancipatória dos problemas, onde você ter mais problemas do que você tinha antes é uma espécie de prazer ou conquista, e não o fim da linha ou o sinal de que tudo já foi por água abaixo. E eu não vejo isso em lugar nenhum.

Por que eu estou falando isso? Claro que é porque a minha pesquisa é sobre isso. As organizações, os espaços coletivos, criam um espaço artificial. É um lugar onde as coisas são diferentes do que elas são normalmente. E, em geral, criam um grau de igualdade, seja pela garantia de uma hierarquia, porque existe uma direção ou uma estrutura institucional que garante aquele espaço, seja pela própria força de vontade, o esforço voluntarioso das pessoas, de ocuparmos um espaço e forçar que as relações sociais ali sejam diferentes em algum sentido – enfim, a gente cria condições artificiais, onde os agentes sociais se encontram em uma condição em que elas não se encontrariam em praticamente nenhum outro lugar. Técnicos administrativos, professores e alunos – todos sentados numa mesma assembleia, por exemplo. Ora, tem uma série de campos diferentes – tanto nas ciências sociais quanto nas exatas – que estudam fenômenos onde, dadas condições iguais entre os elementos iniciais, ainda assim a interação entre eles produz singularidades, estabilidades normativas, que são irredutíveis às partes iniciais desse sistema, e que portanto fogem ao controle das partes, mesmo se tomadas em conjunto. O trânsito numa cidade, por exemplo, funciona mais ou menos assim. Em princípio você poderia fazer um planejamento racional, parece, com os carros indo para casa no melhor caminho para todo mundo. Mas a interação entre os carros na rua produz padrões que não estão contidos em nenhuma das cabeças dos motoristas, e que, como são no entanto fruto da interação entre essas mesmas cabeças, também não seriam antecipáveis por um controlador central. Então às vezes a gente cria condições iguais entre as pessoas mas essa própria a igualdade produz novos problemas. Problemas que não podem ser reduzidos à influência externa ou ao “dirigismo” – nesse caso, literalmente – de alguns motoristas. A igualdade é um campo que traz os seus próprios problemas. E que tipo de problema aparece aí? Que tipo de solução a gente vai dar para problemas criados por nosso próprio desejo de igualdade?

Tem um aspecto diferente pelo qual poderíamos olhar essa questão, e acho quem tem alguma experiência na militância conhece as questões ligadas à autoridade, e formalização dos processos organizacionais. Estou pensando aqui naquele momento em que gente começa a acumular algum poder, isso é, aquele momento quando você já não pode reduzir a organização aos organizados – por exemplo, quando a gente percebe que, se não colocar as coisas no papel, fica impossível seguir em frente, pois nem todo mundo no coletivo tem laços pessoais fortes e portanto é preciso mediar a coordenação de ações. Ou seja, é aquela hora em que a organização se descola um pouco dos organizados. Bem, se vocês olharem a tradição de esquerda, nós só temos nomes negativos para esse tipo de fenômeno coletivo: não temos uma expressão tipo “essa organização decolou”, “alçou voo”, algo assim. É sempre ela “descolou da base”, ela “burocratizou”, ela “traiu o movimento”.

A gente não tem disponível hoje formas de nomear, pensar e mesmo celebrar a maneira pela qual uma organização se autonomiza dos seus organizados. Ou bem a gente está participando de alguma coisa que já era relativamente autônoma – como o Estado: então não foi a gente que se autonomizou da sociedade civil, o Estado veio assim de fábrica! – ou bem essa autonomia não é nossa responsabilidade – é a história com H maiúsculo que está levando o processo dessa forma: nós não saímos de nós mesmos, nós nunca estivemos em nós mesmos, nós somos herdeiros de uma missão maior que nós. Ou então, o que é cada vez mais comum, a gente luta, faz um esforço concreto, para que a organização nunca cresça mais do que nós mesmos. Então na hora que a organização começa a ganhar esse caráter inflado a gente “poda” ela por nós mesmos, “corta suas asinhas”, a gente se divide, para garantir que ela se mantenha abaixo de uma certa massa crítica. Não é à toa que a gente tem uma desconfiança quase imediata de qualquer tipo de procedimento coletivo que estimule ou contribua para esse tipo de processo de autonomização. A uniformização, a disciplina – todas essas palavras-chave que tem a ver com acumulação de poder, de modo que os processos coletivos se descolem daqueles que ali se organizam, produzem na gente uma desconfiança quase imediata. Então essa é uma questão que pertence a esse campo de problemas da igualdade, que é bem conhecida da lógica da organização coletiva de esquerda, e que não se deve necessariamente aos fatores externos.

É engraçado, quase todo texto de teoria da organização de esquerda que eu conheço trata da organização como sujeito, como um ator político. Nunca trata como substância. Ou seja, como uma coisa que impõe obstáculos e perrengues, que tem determinações internas. Então, parafraseando o Hegel que citei no começo, nós não temos uma teoria da organização “como sujeito e também como substância”. Quem tem uma teoria da organização como substância são os conservadores e os liberais, que tem uma teoria mais ou menos sofisticada das coisas que acontecem de maneira natural com as organizações, com os processos complexos, etc e tal.

Mas eu queria deixar isso um pouco de lado para tentar demonstrar, pelo menos nomear, um problema concreto, que certamente vocês têm aqui na ocupação também, como eu sei que tem. Eu enfrento também no meu coletivo e fracasso com todos os meus companheiros em dar conta desse problema, mas que serve para exemplificar o que é essa tal identidade dos contrários, e como as contradições, às vezes, aparecem como fruto da igualdade, e não como uma coisa que vem e corrói ela de fora. Estou falando da “identidade dos contrários” entre o trabalho e a militância.

A militância é o contrário do trabalho: a gente está aqui nessa ocupação em protesto contra a mercantilização do ensino, e essa mercantilização está intimamente ligada ao trabalho. Seja porque vocês estão sendo preparados para entrar no mercado de trabalho, seja porque os professores estão aqui trabalhando, seja porque a mesma lógica que homogeneíza os conhecimentos num sistema de créditos também homogeneíza as atividades laborais. Em diversos sentidos, a militância existe em oposição ao trabalho, então. A própria forma como a gente se relaciona aqui pode ser avaliada por esse critério: celebramos um outro tipo de relação social aqui justamente porque não queremos que a universidade vire uma empresa, que os alunos sejam tratados como clientes ou pura e simplesmente como trabalhadores em formação. E não queremos nos relacionar entre nós como competidores, como pessoas apenas preocupadas com suas próprias subsistências e ganhos individuais. O trabalho, nesse sentido, estaria de um lado do espectro, e a gente mede os nossos ganhos organizacionais aqui tentando ficar do outro lado desse termômetro. Mas, por outro lado, a militância toma tempo, custa às vezes muito caro. E ela só tem dois lugares de onde tirar esse tempo: ela pode usar nosso tempo de trabalho ou o nosso tempo de repouso. Acontece que o tempo de repouso também é tempo de trabalho, porque o salário paga justamente a reprodução da força de trabalho, ou seja, paga a quantidade e qualidade de tempo necessário para podermos retornar à labuta. Ou seja, ao mesmo tempo que a militância é o contrário do trabalho, ela existe como trabalho, pois mesmo se a gente se organiza fora do tempo de trabalho ou formação para o trabalho, ainda assim esse tempo faz parte da forma da mercadoria.

Ora, você está se organizando no seu movimento tendo em vistas o bem-estar da classe trabalhadora, mas não seria você também um trabalhador, enquanto você se organiza? A coisa que você quer produzir para a classe trabalhadora, você não tem obrigação de oferecer para a sua própria organização? O sacrifício que é demandado de uma pessoa na militância se inscreve, simultaneamente, em duas lógicas, em dois lugares, e um não existe sem o outro, mas um é a morte do outro. O militante milita contra o trabalho, mas a militância é ela mesma um uso do tempo de trabalho. E olha um efeito disso: o militante pode ser visto como alguém que não é solidário com os trabalhadores, apesar de lutar por eles, justamente por fazer um uso do seu tempo que é impossível para a maioria dos trabalhadores, e um trabalhador pode ser visto como alguém que não é simpático aos movimentos políticos, ainda que concorde com suas pautas, justamente por considerar que não pode arriscar consumir seu tempo e dinheiro na militância. Está aí uma cisão possível entre um movimento e a base que ele mesmo pertence, criado não por uma influência externa, mas pela “identidade contraditória” entre os “aspectos da contradição”.

E a coisa vai mais longe, pois a identidade contraditória aparece também do ponto de vista inverso. Afinal, um bom jeito de definir o que faz uma pessoa que sobrevive no Brasil, na situação que a maior parte da população sobrevive, é dizer que ela é um militante. Porque eu não sei outra maneira de justificar por que essa a pessoa não desiste da vida, porque, convenhamos, a vida é uma merda. Não consigo deixar de ver esse cara – que não quer saber nada sobre política, partido, organização, mas que também organiza a família dele, mantém uma mínima ordem na vida, serve de exemplo pros filhos – como um verdadeiro militante. Por outro lado, quem trabalha em partido sabe que o  “tarefismo” muitas vezes é a cópia idêntica do trabalho funcional, clássico, baseado na medição de algum tipo de critério de comparação entre diferentes militantes – por exemplo, o famoso “militômetro”, que inclusive, como o próprio capitalismo, não conta apenas horas de trabalho, conta a sua motivação espontânea, se você é “pró-ativo”, que nem nas empresas, que esperam que você entenda que a sua meta não tá ali pra ser cumprida, mas pra ser superada. Então, às vezes na militância a gente parece muito mais um trabalhador comum.

Vemos aí uma identidade maluca, onde era para você ser uma coisa ou ser outra, mas você é as duas, e, nessa síntese, nada para em pé. Enfim, eu não vou me demorar mais nesse assunto, até porque esse tema mereceria um tratado de “crítica da economia política da militância”, que eu não tenho condições de fazer. Se vocês tivessem condições de me ajudar, seria, inclusive, muito bom. Eu estou querendo só colocar na roda esse outro tipo de problema, porque isso sim é um problema nosso, imediato e bastante concreto.

É essencial a gente entender como a formalização de um problema é uma verdadeira vitória. Na ciência, por exemplo. Ninguém tinha pensado em se perguntar se a luz curvava quando passava perto de uma estrela. Não era um problema importante, até aparecer uma teoria que permite a gente formular essa questão. Isso é a prova da validade de uma teoria. É claro que a previsão de que haveria mesmo uma curvatura da luz – coisa que se confirmou – é mais que isso, é prova da profundidade da teoria da relatividade do Einstein, e não só da validade ou legitimidade da teoria, mas aqui eu estou tentando focar no primeiro passo, que é que a teoria da relatividade inovou, antes de mais nada, no tipo de problema que ela nos permitiu formular.

No amor é a mesma coisa: se você está solteiro, você tem os problemas que todo mundo tem – só quando você está com outra pessoa é que você tem problemas que só vocês têm. A pessoa está estudando não-sei-aonde, mas você mora longe. Aí vocês querem morar juntos, mas pra isso você vai ter que trocar de trabalho, para morar junto não dá para estar no trabalho que você tinha. De repente vocês tem um problemão na mão, que vocês escolheram ter, ninguém mandou vocês arranjarem essa confusão, e é um problema de vocês, não é de mais ninguém – nem dos amigos, nem da família. Há uma vitória aí, em um casal criar um problema que é formulado em termos inseparáveis da vida concreta deles e de mais alguém. Em algum sentido a gente poderia dizer que o casal é “dono dos meios de produção” daquele problema. Acho que essa é talvez uma expressão bacana que a gente poderia usar.

E a mesma coisa vale na arte, aí a gente encontra essa mesma relação entre novidade e problema. Os artistas inventam problemas que ninguém precisa –  de onde vem a vida tortuosa do artista? A gente vira pro cara e fala “a vida é tão boa, por que você está sofrendo tanto?” O sofrimento que vem de se impor problemas estéticos, formais, é um sofrimento para chamar de seu, não é um sofrimento que alguém impôs em você. Pelo contrário, você vive comprando briga com ninguém sabe bem o quê. Você inventa umas questões: “como é que eu vou compor uma música que não respeite o sistema tonal nem seja um modalismo tradicionalista?”. Ninguém pediu para você fazer isso – é você que quer ter aquele problema.

Mas na política, a gente não tem uma teoria da criação dos problemas, não não nos reconhecemos nos problemas que enfrentamos. O que que é um problema político que eu escolhi ter? Não sei. Eu sei que o comunismo, o socialismo e a esquerda existem para resolver os problemas dos outros, resolver os problemas do capitalismo, resolver os problemas da desigualdade que supostamente pre-existem à militância política. Mas a militância não é entendida como algo que produz os seus próprios problemas. E as análises de esquerda – isso é, aquelas que não buscam deslegitimar de saída a ideia do comunismo – raramente são capazes de pensar a derrocada do socialismo real a partir dos impasses criados pelos próprios avanços e alternativas experimentadas nesses regimes.

Ora, se você vai se medir pela sua capacidade de resolver os problemas dos outros, sinto lhe dizer mas, quanto mais você resolver as coisas, mais o outro vai ficar bem. É claro que não estou dizendo aqui que já que nós não inventamos a desigualdade, deixemos esse impasse na mão dos nossos adversários, ou deixemos de lado qualquer luta política. Pelo contrário, estou dizendo que é preciso não apenas tomar as rédeas do processo de solução de um impasse, mas também do processo de formulação de que impasse é esse. Agora, isso implicaria, talvez, numa reformulação do nosso modo de ver o mundo, que é muito dependente da ideia de que as categorias que usamos para analisar criticamente a realidade não são aquelas que usamos para analisar construtivamente nossos movimentos – de um lado, um mundo de trabalhadores, do outro, coletivos de militantes. O que seria uma maneira de ver o mundo em que esses dois lados pudessem ser colocados – pra terminar com o Hegel, que vocês já viram que eu adoro – em uma identidade especulativa?

É importante a gente se indagar sobre se na nossa maneira de ver o mundo, nos nossos princípios básicos de atuação política, cabem problemas novos, se esses princípios permitem a gente admitir que estamos criando novos problemas – e se cabe nessa visão de mundo o fato de que nós somos talvez nossos os piores inimigos. Ou se nossa visão de mundo desmorona com essa realização. Talvez seja estruturalmente impossível uma aliança só de amigos – e isso mesmo no caso utópico de que só existissem amigos no mundo.

Tem um teólogo chamado Chesterton, um dia mandaram ele responder para uma revista: “O que você acha que tem de errado no mundo?” e ele respondeu: “Eu”. Talvez a aliança da gente precise buscar é a de todos aqueles que acham que eles mesmos são o problema. Talvez fosse uma aliança mais interessante. Certamente seria mais popular.


[1]  Meus agradecimentos ao pessoal da ocupação, aos organizadores dessa atividade e aos camaradas Daniel Alves, Anna Savistkaia e Dana Savitskii por transcreverem essa bagunça!

[2]  Transcrição revisada da apresentação realizada na mesa de debates “A unidade problemática das esquerdas”, no dia 1 de Dezembro, na UFF, como parte das atividades da ocupação do Dep. de Letras. O audio completo do evento pode ser encontrado aqui: https://soundcloud.com/ideiaeideologia/a-unidade-problematica-das-esquerdas-uff-1122016

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