Por Gabriel Tupinambá
Para compreender as apostas do “materialismo transcendental”, projeto filosófico de Adrian Johnston, devemos, antes de mais nada, ser capazes de captar a inflexão singular de seu hegelianismo. Para isso, é preciso dividir a elaboração do materialismo transcendental de Johnston em duas fases subsequentes.
Duas fases do materialismo transcendental
Num primeiro momento, Johnston utilizou a expressão “materialism transcendental” para nomear uma abordagem particularmente clara e sistemática da complexa articulação entre filosofia, política e psicanálise no pensamento de Slavoj Zizek. O segundo livro de Johnston, Zizek’s Ontology (2008) tem como subtítulo “uma teoria materialista transcendental da subjetividade” e permanece até hoje uma das mais acessíveis e coerentes reconstruções do pensamento zizekiano. Limitando seu escopo especulativo à própria trajetória conceitual de Zizek, Johnston usa a perspectiva materialista transcendental como uma chave de leitura que lhe permite retraçar o passo fundacional do filósofo esloveno, passando da psicanálise de volta ao idealismo alemão, da teoria freudo-lacaniana do sujeito aos seus fundamentos ontológicos. É este movimento preliminar – de Lacan a Hegel – que o próprio Zizek caracteriza como condição de seu segundo e definitivo passo, que o leva desse Hegelianismo renovado à Marx e ao materialismo dialético. Seguindo esta trilha – de Lacan, de volta a Hegel, depois a Marx – Johnston conclui sua exposição do projeto filosófico de Zizek com uma reviravolta: “materialismo transcendental” não é apenas o nome de um operador que nos permite retraçar os passos de Zizek, mas também daquilo que aparece como resultado da trajetória de Zizek, como um suplemento que uma leitura lacaniana-hegeliana de Marx nos obriga a incluir no próprio materialismo dialético:
“O materialismo transcendental poderia ser representado como uma seta que se move de um ponto de partida sob o título de” ser-em-si” e atravessando para a área sob o título “pensamento”. Mas ao invés de voltar ao “ser-em-si” (como no materialismo dialético), essa trajetória partindo do chão do Real material imanente e entrando no espaço do Ideal transcendente mais-do-que material não retorna ao domínio em que se situa seu ponto de partida. Não há retorno.“ (Johnston, 2008: 275)
O materialismo transcendental constitui, portanto, um “axioma adicional” ao espaço teórico do materialismo dialético – o axioma da alienação constitutiva e irreversível da subjetividade, que afirma que “não há retorno” ao ser-em-si – assim como um conjunto de investigações sobre as consequências deste gesto aditivo. É aqui, de fato, que o projeto de Johnston excede a função meramente exegética ou reconstrutiva.
Para posicionar o materialismo transcendental como um programa de pesquisa autônomo, é importante antes considerarmos a diferença entre o espaço teórico geral fundado pelo trabalho de Zizek e a trajetória conceitual particular do filósofo dentro desse mapa mais geral. O espaço teórico zizekiano, tal como apresentado nas primeiras páginas de For they know not what they do, é composto pelo “nó borreano” da psicanálise lacaniana, da filosofia hegeliana e do pensamento político marxista – a propriedade borromeana restringindo a interação entre dois desses “componentes” à mediação negativa do terceiro: Hegel com Lacan, mas não sem Marx, Lacan com Marx, mas não sem Hegel, e assim por diante (Zizek, 2002: 2). Por outro lado, a trajetória da obra particular de Zizek, como mencionamos anteriormente, concerne (principalmente) dois movimentos específicos dentro desse espaço mais amplo: o primeiro, uma leitura da teoria da negatividade de Hegel do ponto de vista da teoria lacaniana da pulsão de morte, a segunda, uma reconceitualização do pensamento político marxista do ponto de vista desse renovado hegelianismo (Zizek, 1989: 7).
Nós sugerimos que o materialismo transcendental aparece primeiro como o resultado dessa trajetória, como capitulado na exegese criativa de Johnston da filosofia de Zizek. O produto do trabalho de Zizek seria a afirmação de que um princípio adicional deve ser acrescentado ao materialismo dialético, o princípio do “não retorno”: o que o sujeito perde para se tornar um sujeito somente é constituído como um ser consistente através dessa própria perda. Este princípio poderia também ser concebido como uma correção da antropologia filosófica marxista encontrada nos Manuscritos Econômico–Filosóficos: o trabalho não é um processo de exteriorização e constituição da essência humana, que então é transformado em um estranhamento irredutível entre o homem e si mesmo através da intervenção da propriedade privada – os homens são “genéricos” no sentido muito mais assustador de que somos sempre já estranhos à nossa própria substância, incapazes de controlar o que criamos – ao ponto de produzirmos formas que ganham autonomia sobre nós. O que a lógica da expropriação do trabalho por meio da propriedade privada efetivamente realiza, alienando-nos desse estranhamento mais fundamental, é o estabelecimento de um laço social baseado na fantasia ideológica de que aquilo que perdemos de nós mesmos sempre pode e deve ser recuperado – seja através de acumulação adicional ou através da abolição da forma propriedade. Em suma, a lógica do trabalho como exteriorização (Entäusserung) é retroativamente postulada pela lógica do estranhamento (Entfremdung), que é a aquela está realmente em jogo na relação entre o homem e a natureza.
Mas se este novo princípio já está operativo na teoria do sujeito de Zizek, o esforço conceitual de Johnston foi o de utilizá-lo não como resultado, mas como ponto de partida de sua investigação. Essa perspectiva abre um caminho no espaço teórico zizekiano que não foi percorrido pelo próprio Zizek: após o deslocamento de Lacan para Hegel, e então para Marx, ainda há a questão da abordagem marxista de Lacan e a psicanálise. E enquanto o retorno lacaniano ao idealismo alemão – como examinado no Zizek’s Ontology – se apresenta como uma investigação da ontologia sob a perspectiva de um compromisso pressuposto com a dimensão irredutível da subjetividade, um “retorno a Lacan” do ponto de vista do marxismo-zizekiano constitui uma investigação sobre a teoria analítica das pulsões a partir de um compromisso com a mencionada lógica do estranhamento, encapsulada no princípio do “não retorno”. A maior parte das polêmicas em torno do projeto de Johnston diz respeito à formulação desse compromisso subjacente: em uma polêmica com o próprio Zizek, Johnston propõe que somente um engajamento rigoroso com as ciências naturais pode realmente situar uma abordagem materialista da alienação constitutiva própria da subjetividade. O estranhamento que caracteriza a relação do homem com a natureza precisa ser condicionado por uma filosofia da natureza que pense o estranhamento da natureza em relação a si mesma.
A filosofia da natureza fraca de Hegel
Isso nos leva, finalmente, a Hegel. Como vimos, tanto Zizek como Johnston partem da mesma questão – “a liberdade implica qual ontologia?” (Zizek, 2009, p.82) – uma questão que ressoa diretamente com a afirmação do próprio Hegel, que já em 1796, dizia que “a questão é essa: como deve ser constituído o mundo para uma entidade moral? “(Hegel, 2002, p.110).
Mas há duas maneiras de abordar essa questão, privilegiando o aspecto síncrono ou diacrônico do problema. Abordar Hegel (e, a partir daí, Marx) do ponto de vista da teoria lacaniana do sujeito é enquadrar esse problema, acima de tudo, através de uma teoria de estruturas simbólicas já postas e então investigar a base material do mundo da linguagem e as consequências de tal materialidade na constituição da subjetividade. Abordar esta mesma teoria do sujeito do ponto de vista de um marxismo hegeliano (de inspiração psicanalítica) é privilegiar o aspecto histórico, enquadrando a questão diacronicamente e questionando como é que essas estruturas poderiam ter emergido para começo de conversa. Enquanto Zizek toma o famoso “não apenas como substância, mas também como sujeito” de Hegel como estandarte de uma ontologia que inclui a força inquietante do negativo, Johnston encontra aí um convite para investigar o surgimento da divisão entre substância e sujeito a partir da própria substância – e de uma tal maneira que, permanecendo fiel ao próprio projeto de Zizek, essa divisão permanece, de certo modo, “incluída” naquilo de onde emergiu.
Seguindo a paciente reconstrução de Johnston do tema nas próprias obras filosóficas de Hegel, destaquemos algumas passagens importantes que ajudam a fundamentar este polêmico projeto.
Já no fragmento de 1796, intitulado O Primeiro Sistema-Programa do Idealismo Alemão, Hegel relaciona a questão de uma ontologia da liberdade às ciências naturais:
“Como um mundo deve ser constituído para uma entidade moral? Eu gostaria de dar asas mais uma vez à nossa atrasada física, que avança laboriosamente através de experimentos. […] Assim, se a filosofia fornece as ideias, e a experiência os dados, podemos chegar a antecipar, nos seus elementos básicos, a física que espero que tenhamos no futuro. Não parece que a nossa física atual possa satisfazer um espírito criativo como o nosso é ou deveria ser. “(Hegel, 2002, p.110-111)
É fundamental notar que a filosofia é, portanto, não apenas condicionada por uma teoria da subjetividade – a qual, para Hegel, era política em sua origem: a tarefa de produzir uma ontologia geral compatível com uma tal “entidade moral” é igualmente condicionada por práticas não-filosóficas, como a física. Além disso, essas observações de Hegel sobre a ciência elucidam aspectos importantes de sua posição em relação às ciências matematizadas – geralmente tida como uma rejeição categórica (e grosseira) do formalismo e do conhecimento científico. Em vez de opor ciência e filosofia, equiparando a primeira a alguma forma de conhecimento sem vida, Hegel afirma que a ciência atual – ou seja, a mecânica newtoniana e seu específico aparelho matemático – é incapaz de nos fornecer “os dados” que poderiam condicionar nossa ontologia da mesma forma que a Revolução Francesa havia nos fornecido uma nova ideia da liberdade. Esta não é a posição de alguém que é contra o pensamento científico, é antes a expectativa bastante entusiasmada com uma ciência ainda por vir.
E, de fato, se considerarmos o tratamento posterior que Hegel faz da “razão observadora” na Fenomenologia do Espírito, aproximadamente dez anos depois, encontramos novamente essa mesma crítica imanente à visão de mundo científica. Em uma crítica aos pressupostos “finitos” da razão observadora – que equivale a dizer que a ciência hipostasiou o tratamento newtoniano da mecânica como a forma e o tratamento geral de todos os fenômenos naturais – Hegel afirma que:
“mesmo que a Razão penetre nas próprias entranhas das coisas e abra cada uma de suas veias para que estas possam jorrar e assim encontrar-se, ela não vai atingir esta alegria; ela deve completar-se internamente antes de poder experimentar a consumação de si mesma “(Hegel, 1977, p.146).
Esta necessidade de “completar-se internamente” diz respeito ao imperativo de que “toda ciência sistemática, como perfeita e completa, precisa incluir um relato científico do sujeito da ciência, da consciência observadora responsável pelo conteúdo de suas observações” (Johnston, p.121). A aparente hubris de tal crítica é atenuada quando consideramos que os próprios cientistas estão enfrentando hoje exatamente essa pergunta:
“A ciência avançou até o ponto onde nós podemos de forma precisa organizar átomos individuais em uma superfície metálica ou identificar os continentes ancestrais das pessoas analisando o DNA contido em seus cabelos. E no entanto, ironicamente, falta-nos uma compreensão científica de como as frases de um livro se referem a átomos, DNA ou qualquer coisa. Esse é um problema sério. Basicamente, isso significa que nossa melhor ciência – aquela coleção de teorias que presumivelmente se aproxima mais de explicar tudo – não inclui essa definição mais fundamental caracterizando o ser você e eu. Com efeito, nossa atual “Teoria de Tudo” implica que nós não existimos, exceto como coleções de átomos.
Então o que está faltando? Ironicamente e enigmaticamente, algo faltando está faltando “(Deacon, 2012, p.1)
O que está em jogo no tratamento que Hegel dá à ciência experimental não é, portanto, uma avaliação geral do conhecimento inerentemente sem vida do mundo, mas antes um confronto entusiasmado com as limitações do desenvolvimento atual da ciência e a espera ansiosa por uma ciência capaz de pensar a vida em seus próprios termos. Em vez de prover uma ontologia que não precisaria mais ser informada pela ciência, ele passa a antecipar algumas das condições críticas que qualquer ontologia terá que responder: por exemplo, o status da negatividade na liberdade, como a política moderna tem tornado pensável, ou a limitação da “metáfora da máquina” ao tentar pensar a lógica das formas orgânicas (Marques, 2009).
Além disso – e concluiremos neste ponto – Hegel não se limitou à crítica dos limites das ciências naturais de seu tempo, ainda (e com razão) enfeitiçadas pelo alcance desconcertante das realizações de Galileu e Newton, expondo o compromisso idealista em jogo na generalização do tratamento formal da mecânica clássica para a compreensão de fenômenos inerentemente circulares como os organismos vivos. Ele também estende essa crítica à ideia de natureza que nasceu como contrapartida dessa postura subjetiva. Em outras palavras, criticar o idealismo da ciência natural é também criticar um certo ideal da natureza, pois não é apenas o sujeito da ciência que deve ser incluído na ciência, um movimento que torna incompleta a visão científica atual, mas também a ciência que deve ser incluída em seu objeto, (in)completando a própria natureza.
No final do segundo volume da Enciclopédia, em um longo comentário adicionado ao parágrafo §370 (“Gênero e Espécies”), Hegel (de maneira não muito diferente de Chesterton em sua Introdução ao Livro de Jó) sugere que a inadequação da classificação das espécies não é tanto um sinal de deficiência do sistema classificatório mas sim uma qualidade da própria vida, que aparece “nas formas mais inadequadas” (Hegel, 1970, p.416). A razão para isso, acrescenta Hegel, “reside na impotência da Natureza em permanecer fiel à Noção e de aderir às determinações de pensamento em sua pureza” (ibid., p.423).
É esta impotência ou fraqueza que Johnston vai destacar como um elemento fundamental na investigação materialista sobre que tipo de natureza poderia dar à luz ao “mais-que-natural”. O ponto crucial aqui é que Hegel não está definindo a Natureza como estruturalmente negativa, no sentido em que o Ser, na Ciência da Lógica, aparece como já dividido em não-Ser – em vez disso, essa impotência é uma negatividade histórica, uma incapacidade de impedir que aquilo que carece de forma ganhe forma e que aquilo que tem forma se deforme ou transforme a si mesmo:
“Esta impotência da Noção na Natureza geralmente submete não só o desenvolvimento dos indivíduos a contingências externas – o animal desenvolvido (e especialmente o homem) pode exibir monstruosidades – mas mesmo os gêneros estão completamente sujeitos às mudanças da vida externa, universal, da Natureza “(Hegel, 1970, p.416).
Tal definição da Natureza permanece completamente materialista na medida em que não pressupõe na Natureza uma qualidade mais-que-natural que pudesse servir silenciosamente como fator causal relevante para explicar os efeitos mais-que-naturais que podem emergir dali. A teoria hegeliana da “natureza fraca” é a resposta de Johnston ao problema de como pensar o surgimento de uma ordem irredutível e parcialmente autônoma, tal como o sujeito pensante a partir do mundo sem sujeito, sem ter que colocar a intervenção de uma força proporcionalmente anormal como sua causa. Uma maneira de dar conta da emergência do mais-que-material como um efeito histórico sem silenciosamente pressupô-lo em uma causa mais-que-material implícita em nosso conceito de natureza.
A recuperação moderna da ontologia tem assumido a desafiadora tarefa de dar um passo atrás da física sem cair na metafísica clássica. Por exemplo, a decisão de Alain Badiou de equiparar matemática e ontologia toma precisamente essa forma: a matemática, concebida como a teoria da estruturação de estruturas em geral, emerge como uma região do pensamento capaz de apreender o ser enquanto indeterminado, ao mesmo tempo permanecendo compossível com formas específicas e determinadas do ser-aí em jogo nas ciências matemáticas. A interpretação especulativa de Zizek acerca da mecânica quântica, embora deslocando o acento da apresentação formal da física e do conceito de physis que ela parece implicar, também procura retornar da física para um campo quase-metafísico do nada incompleto ou conflituoso. Do ponto de vista do projeto de Johnston, este “passo atrás” sempre carrega pressupostos idealistas na medida em que confere à infra-estrutura do ser enquanto tal a própria qualidade que, em última instância, caracteriza o pensamento: ao pensar a matéria como sendo indeterminada ou vazia acabamos pressupondo a comensurabilidade entre o sujeito pensante e o lugar de onde veio. Contra este passo atrás da física para uma ontologia geral, Johnston propõe um passo em outra direção, da física à biologia, um movimento que tem o benefício adicional de ser uma passagem imanentemente científica, que interessa tanto a físicos quanto a biólogos, na medida em que tematiza o problema “histórico” do surgimento de um espaço formal heterogêneo a partir da homogeneidade do que lhe antecedeu.
Bibliografia
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