Por Richard Seymour, via Leninology, traduzido por Elaine Pinto
O jardim das delícias virtuais que chamamos de internet é uma fábrica ampliada no espaço e no tempo. Olhar é trabalhoso, e o valor do que quer que seja visto é apenas a forma fetichizada de todos os olhares, ou inspeções persistentes, que a imagem atrai. O capital postula que a observação é trabalho e transforma a busca por tempo em tempo cibernético socialmente necessário. Ele liga a percepção à produção, orquestrando a extração do trabalho sensual.
Deus criou Adão e imediatamente – antes do que pensamos – Ele fala com ele. Esta primeira interpelação, de acordo com o midrash, é uma sedução:
“E o Senhor Deus levou o homem e colocou-o no Jardim do Éden” (Gn 2: 15):
Ele o levou com belas palavras e o seduziu para entrar no Jardim.
É a sedução que é constitutiva da entrada humana na na linguagem. Movido, cativado por mensagens divinas que escapam de seu pleno entendimento, Adão vive com essas transmissões inconscientes implantadas dentro dele. O primeiro ato de comunicação, então, leva o ser humano a um lugar além da escolha consciente. 10 O psicanalista francês Jean Laplanche descreve em termos semelhantes a primeira relação entre pai e filho. A mãe inconscientemente transmite ao filho mensagens sedutoras, cujos aspectos íntimos da sua vida ele é incapaz de entender. A criança recebe o impacto do outro em toda a sua beleza; ele é ofuscado por uma luz além de sua compreensão. A alienação do outro é registrada; sua mensagem inassimilável e estimulante está encerrada. A partir de agora, a criança será assombrada, descentrada por sua vida inconsciente. Nas palavras de Freud, “o ego não é mestre em sua própria casa”.
– Aviva Gottlieb Zornberg, The Murmuring Deep.
I.
A linguagem nos seduz em um domínio imaginário, uma ordem de imagens. Mas é uma imagem – como a do logotipo da Apple, que indica o conhecimento proibido – que precipita nossa queda. Uma vez que podemos ver, podemos olhar. E uma vez que podemos olhar, podemos trabalhar.
O jardim das delícias virtuais que chamamos de internet é, segundo Jonathan Beller, uma fábrica ampliada no espaço e no tempo. Olhar é trabalhoso, e o valor do que quer que seja visto é apenas a forma fetichizada de todos os olhares, ou inspeções persistentes, que a imagem atrai. O capital postula que a observação é trabalho e transforma a busca por tempo em tempo cibernético socialmente necessário. Ele liga a percepção à produção, orquestrando a extração do trabalho sensual.
O capital define como refazer a imagem em sua própria imagem. As regras de verossimilhança e legibilidade são modeladas na estrutura social, de modo que uma imagem que não codifique de alguma maneira as normas e protocolos dessa estrutura é um questionamento. Os caminhos culturais de raça, sexo, nacionalidade, e assim por diante, são convertidos em imagens que podem cativar o olhar e capturar o trabalho de olhar.
A imagem também exclui, assim como os fetiches. Assim como o olhar do fetichista de sapatos é sempre desenhado para além do ponto em que as pernas se encontram, a imagem é definida pela sua escotomização da realidade. Enquanto nossa atenção estiver voltada para a circulação de imagens-enquanto-mercadorias, ela não estará nas realidades sociais que sustentam o espetáculo.
Esse estranhamento da ordem visual, essa conversão da atenção em trabalho alienado é o que Beller chama de “modo cinematográfico de produção”. Fiel à estrutura paranoica e psicótica da teoria, ele não pode fazer outra coisa além de nos oferecer uma imagem cinematográfica a título de explicação. Estamos na Matrix , a energia vital que colocamos no mundo é convertida em energia para administrar o mundo da imagem, “aprisionada em uma atmosfera maléfica, intuindo nossa situação apenas através de falhas no programa”.
II.
Foi um erro ser seduzido para o jardim? E quão distante nós caímos?
O trabalho intenso, provocante e sedutor de Beller é celebrado com justiça. E sua estranha plausibilidade não é apenas um produto do fato de que se adapta com a verossimilhança capitalista. A participação nas mídias sociais como um usuário – ou “produtor”, como se diz insuportavelmente – pode ser criativa e gratificante de alguma maneira. Mas também é um trabalho cansativo e fatigoso. É emocionalmente, mentalmente e fisicamente desgastante. Para manter a circulação de imagens – para alimentar o feed – temos que sacrificar horas de tempo que poderíamos investir em outra coisa.
No entanto, se olhar é trabalhar isto é apenas uma metonímia. Beller – não o capital – postula que é um trabalho. Mas isso só funciona porque olhar substitui todas as outras atividades que fazemos online, o que ajuda a gerar lucros para empresas de plataformas de tecnologia. Olhar é uma condição para o trabalho, parte do processo; não é o trabalho em si. A Netflix não se importa se você assiste, se importa o quanto você fala sobre seus programas para maximizar sua base de assinantes. Em última análise, os anunciantes só se preocupam com os seus desejos na medida em que demonstram uma propensão para comprar. É por isso que a extração, análise, embalagem e venda de dados está se tornando uma indústria tão lucrativa.
Se olhar fosse literalmente trabalho – não no sentido ontológico de que tudo o que fazemos é trabalho, mas no sentido econômico específico de ser uma fonte de valor – seríamos confrontados com um enigma poderoso. Aqui, supostamente, é uma nova fronteira na exploração capitalista, o aproveitamento da percepção para a produção. Porém, pode-se perguntar, quando a percepção não foi subordinada à produção? Quando o trabalho não foi sensual? E se a percepção é em si uma nova forma de produção de valor, como se mede o tempo de percepção socialmente necessário? Como calibrar os instrumentos? E onde, como Nick Srnicek pergunta, é o boom capitalista global enquanto esta nova camada de valor é extraída? Onde está a expansão dinâmica de novos significados de produção óptica?
Um Rembrandt, diz Beller, só tem o valor que tem enquanto a expressão fetichizada dos olhares que desenhou: “todo aquele que olha se fixa na tela e aumenta seu valor”. Qual é o produto desse trabalho de olhar? Como se embalaria e venderia? Evidentemente, não é a própria pintura, pois ela é produto de um processo de trabalho anterior. A implicação aqui é que há algum produto excedente intangível que ficou invisível ao visual. Como alguém andaria por aí avaliando essa afirmação?
Se procurar aumentar o valor de um objeto visual, enfrentaremos um paradoxo interessante. Talvez, na maioria dos casos, acumular mais aparências não melhore o valor de mercado – o valor realizável – de um objeto visual. É preciso pensar apenas na imensa proliferação de itens visuais na internet cujo valor comercial não aumenta como resultado da exposição (como os memes, por exemplo). E então, assim como um objeto visual está acumulando mais e mais valor (como tempo de observação socialmente necessário), está se tornando cada vez menos possível que esse valor seja realizado. Isso seria motivo para a economia da visualidade parar, não para se tornar a base de um novo e espetacular modo de produção.
Mas isso implica em disfunção e colapso que, serviço de bordo à parte, não tem lugar no “espaço social totalitário” descrito na tese de Beller, em que a linguagem do capital foi introjetada no “sensório”.
III.
Nos termos lacanianos de que Beller se utiliza, o sujeito totalmente preso às ordens das imagens é psicótico.
Na falta de uma estrutura simbólica para dar estrutura ao mundo imaginário o psicótico depende de um nó do delírio para mantê-lo unido. Se isso fosse desvendado, o sujeito seria exposto a um aterrorizante caos da experiência. E um delírio não é na ordem da crença sobre a qual se pode duvidar: ela é experimentada como certeza, como uma realidade intrusiva e objetiva. Por essa razão, o delírio psicótico é, freqüentemente, discernível não por sua incoerência, mas por sua coerência espúria e muitas vezes elaborada.
Ainda na ousada tentativa de Beller de retrabalhar a psicanálise em termos históricos materialistas, o próprio inconsciente é colocado como um produto do capitalismo industrial e de sua ordem de visualidade. O inconsciente aparece pela primeira vez através de uma lacuna, um lugar onde a ordem simbólica se decompõe, onde a fala escapa, e nessa lacuna – como afirma Beller – em torno da qual todos os significantes flutuam e circulam, é uma imagem, um pequeno objeto, o objeto causa do desejo. De fato, causa estranheza que a causa-objeto seja definida como uma imagem quando o que a define é, precisamente, que ela não é capturada pelos registros simbólicos e imaginários.
No entanto, o passo crítico aqui é vincular o marxismo e a psicanálise através do fetiche. A imagem-mercadoria, como todos os fetiches, atua como uma tela que exclui: neste caso, é a totalidade do processo social que é filtrado. O próprio capital, portanto, age como uma tela na qual o “socius” é tanto processado como reprimido, uma tendência que é elevada a um novo nível com o regime da visualidade. Um regime em que as tecnologias da produção ótica abrem e preenchem nossas linhas de visão com o fetichizado, o impressionante da experiência social.
O fetichismo, então, faz todo o trabalho pesado no “modo de produção cinematográfico” resgatando-o de uma estrutura de delírio psicótico. Mas esse movimento depende de uma tendência comum e questionável na escrita cultural da esquerda, em que termos como “fetichismo” e “reificação” são extraídos da complexa série de operações epistemológicas em que estão inseridos e generalizados para seu empobrecimento geral. Por exemplo, com o devido cuidado, o conceito psicanalítico de fetichismo poderia ser empregado na crítica da ideologia, mas tratá-lo como coextensivo com o fetichismo em seu sentido político-econômico me parece esticar ambos os conceitos além do conserto.
As bases para sua congruência são claras. Em ambos os casos, o fetichismo surge como uma consequência de uma forma da “alienação” a qual encobre. Em ambos os casos, o fetiche opera como uma espécie de imperialista trazendo toda a realidade sob seu comando, mobilizando todos os investimentos em torno de sua própria munificação. Se o fetiche sexual é experimentado como uma espécie de força multiplicadora, prometendo orgasmos mais intensos do que poderiam ser alcançados fora de sua sombra isto é devido à sua tendência de monopolizar todos os investimentos possíveis da libido. Se representa uma garantia de satisfação, o fetiche é também uma redução do repertório, um estreitamento do campo de atenção. Da mesma forma, o produto fetichizado do processo de trabalho capitalista adquire uma magia estranha porque veio a incorporar a força de trabalho humana despendida em fazê-lo, ao mesmo tempo em que escotomiza o campo mais amplo das relações sociais.
Estas são, contudo, correspondências extremamente superficiais. Em sentido psicanalítico, um fetiche é construído em torno de uma castração. Em um caso clássico de fetichismo, um homem só podia ser despertado por uma mulher usando fileiras de botões. O significante ‘botão’ desempenhou um papel importante e sobredeterminado nesse fetiche ligado a muitas memórias nas quais, por exemplo, os órgãos sexuais dele e de sua mãe haviam sido descritos como um botão. Sua mãe o usava essencialmente como um adereço narcísico, um pênis pequeno, até que por fim, e tardiamente, uma forma de separação foi alcançada e ele adquiriu sua própria existência subjetiva. Mas ele continuou a ser atormentado pela ideia de que sua mãe poderia não ter um pênis, poderia precisar dele para ser o dela, e, assim, poderia comê-lo, engolir todo o seu ser como uma baleia (ou como uma batisfera malévola, como se Beller e os MRAs pudessem convergir com a ideia de que “a Matrix é uma mãe voraz e castrada”). O fetiche era uma solução de compromisso que lhe permitia negar a sua própria castração e a de sua mãe.
Portanto, uma questão óbvia é se a “alienação” alcançada no processo de trabalho capitalista pode, em qualquer sentido significativo, ser descrita como uma castração – mesmo que imperfeita e parcialmente alcançada. É um lugar comum que, nos termos de Marx, a alienação se refere a várias idéias discretas. Há a alienação das capacidades de trabalho sob o controle do capital. Há a alienação dos produtos do trabalho que se encontram como encarnações fetichizadas da força de trabalho “no mercado”. E há, no início de Marx, a ideia de uma alienação do “ser-espécie” de alguém, a essência do trabalho de alguém. É somente no último sentido que se pode falar de uma alienação que produz um luto por uma “totalidade perdida” fantasiada, pela qual um fetiche poderia cobrir e compensar. Mas em que sentido isso produziria um inconsciente? Segundo Beller, apenas no sentido de que o inconsciente é um reino de produção, e a produção é aquela com o reprimido. O inconsciente, portanto, não é um ponto de fracasso da subjetivação capitalista, mas um componente de um espaço social totalitário totalmente integrado. Aqui temos um assunto dividido trabalhando de forma perfeita e produtiva para o capitalismo. Beller rejeita a conclusão de Adorno de que a interioridade humana foi “liquidada” e substituída pela indústria cultural e, a princípio, deixa espaço para a “criatividade extra-econômica” por parte das massas – mas essa concessão não está de modo algum integrada ao seu aparato teórico.
E isto levanta a questão de saber se Beller está usando o fetichismo como conceito, ou, em um sentido ideológico, praticando o fetichismo. Se, na verdade, o nível mais alto de articulação e abstração que ele atribui ao capitalismo sob o reino da visualidade é, de fato, uma reificação teórica e, portanto, uma produção fetichizada de seu próprio estilo paranoico.
IV.
Mas se isso é paranoia, então está longe de ser a única. A análise de Shoshana Zuboff do “capitalismo de vigilância” é, nos termos de sua própria teoria e poética, outro relato magistral da internet como espaço totalitário.
A figura central da análise de Zuboff não é a fábrica desterritorializada, mas a corporação como um novo soberano – que ela chama, sem qualquer referência explícita lacaniana, de o Grande Outro. De acordo com essa visão o que as grandes empresas de dados alcançam, como Google, não é a exploração de uma nova e potencialmente ilimitada camada de valor, mas a redistribuição dos direitos de cidadania. Eles monopolizam a privacidade, agindo com o sigilo do estado, enquanto anulam os direitos de privacidade de seus usuários. Por meio de ações unilaterais, com as cartas na mesa, eles extraem uma nova mercadoria chamada de dados, sem necessidade de um ciclo de feedback com as populações que nem são seus clientes reais.
O caso de Zuboff é que o “capitalismo de vigilância” é uma “lógica de acumulação” distinta que seguiu a partir do fordismo e à financeirização. As ramificações da tecnologia da informação podem ser tão drásticas por causa do que a distingue da maquinaria comum: “reflete suas atividades e o sistema de atividades com as quais está relacionada”, tornando visível uma série de novos objetos pela primeira vez. Houve “uma textualização abrangente do ambiente de trabalho”. “O mundo renasce como dados e o texto eletrônico é universal em escala e escopo”.
Enquanto o neoliberalismo postulava um mercado que era intrinsecamente inefável e irreconhecível, todo ator se engajando com base na estupidez e cegueira ideais quanto à lógica total e majestosa do mercado, agora o mercado é conhecido e moldado por meio da extração de dados. Quanto mais transações econômicas forem mediadas pela computação, mais fluxos de objetos, bens, corpos e serviços podem ser rastreados por sensores e chips, mais câmeras de vigilância e registros corporativos e governamentais produzirão conhecimento digital, e mais de cada experiência diária será registrada e acumulada como dado (como o Google Street View), mais mercados podem ser proativamente antecipados, produzidos e moldados. A própria realidade é monopolizada e mercantilizada: tornando-se, nos termos de Polanyi, uma mercadoria fictícia.
Plataformas online, assim, estruturam seus protocolos de modo tal a envolver os usuários na produção de dados exploráveis: curtidas, buscas, textos, fotos, e-mails, palavras mal escritas, cliques, tudo que possa ser analisado, agregado e vendido. Os dados são extraídos indiscriminadamente, sem o consentimento informado: uma oferta é feita, um gancho balançou, vícios são solicitados, mas com o princípio básico de que ao usuário nunca é dito como o serviço é pago. Não é um contrato, mas uma sedução.
A rede cada vez maior de coleta de dados permite que as empresas não só prevejam quais clientes comprarão ou investirão com base nos perfis criados pelo Facebook ou pelo Google, mas também irão rastrear quais compraram, com base em seus cliques na Amazon e em outros serviços. As empresas podem ajustar, modificar e alterar os contratos que oferecem em resposta ao crescente conhecimento sobre os clientes. E, claro, graças a Snowden, sabemos um pouco de como os Big data se relacionam com os aparatos de segurança dos estados nacionais.
Zuboff argumenta que esses processos não são apenas censuráveis porque os Big data violam nossa privacidade. Esses processos estão reconfigurando o poder, produzindo “efeitos terríveis da conformidade antecipatória”, de modo que a aquiescência não é mais extraída por medo da força ou compulsão ideológica, mas “desaparece na ordem mecânica das coisas e corpos”. A autoridade é substituída pela técnica, e o behaviorismo se torna, não uma teoria social, mas uma realidade social em potencial.
Como Beller, Zuboff tenta rejeitar a lógica paranoica da teoria declarando que há um espaço para a resistência, e que a principal força que conspira para assegurar o consentimento para esse novo modo de soberania é a ignorância. Mas, é claro, a ignorância não pode ser considerada inocente, mais do que a ignorância que permite às pessoas confiar nos tabloides para obter informações, ou que permite que as pessoas se divirtam em crenças grotescamente racistas. Isso está saturado de gozo, um não saber.
E isso levanta a questão de onde o ‘usuário’ ou ‘produtor’ se encaixa. Em algum lugar entre o “capitalismo de vigilância” de Zuboff e a “fábrica desterritorializada” de Beller temos um tópico.
V.
A relação entre repulsa e atração se parece com aquela entre as duas bordas da faixa de Moebius.
De um lado, existe uma poderosa força repulsiva que chamamos de fobia; por outro, a intensa atração libidinizada, que chamamos de fetiche. Como Fanon disse sobre o corpo racializado, o mesmo objeto aparecendo em diferentes formas e contextos pode ser tanto fóbico quanto fetichista. O homem com o fetiche por botões tinha que olhar vários deles em fila para ficar excitado; um único botão era abominável para ele.
Nesse sentido, tecnofobia e tecnofilia são combinações diferentes da mesma orientação fetichista. Culpar a internet e impulsioná-la estão ambas, potencialmente, na posição de atribuir a ela características que pertencem propriamente às comunidades humanas. Está claro o suficiente que a mídia online constitui novos tipos de relacionamento social, caracterizada pelos “laços fracos” – alguém pode “gostar” de você, ou de uma fotografia sua ou do seu humor ou situação atual, sem que isso signifique muito. E é igualmente claro que parte da “mágica” das novas tecnologias, dos tablets ao Twitter, é nos manter falando sobre as coisas fenomenais que elas permitem sem pensar muito sobre as restrições que elas impõem. Afinal, ‘curtidas’ e ‘reações’ são apenas métricas objetivadas, reduzidas a quantificáveis, de interações qualitativamente complexas. E, como sabemos desde Zuboff e Srnicek, a razão pela qual nos é oferecida a possibilidade de interações desse tipo é para que elas possam ser rastreadas, analisadas, empacotadas e vendidas.
Portanto, há um conjunto de tecnologias, instituições e usuários, mas todos são formatados pela lógica da acumulação competitiva. Nada acontece no Facebook, Twitter ou Google, a menos que possa dar origem a uma mercadoria vendável. Longe de ser o caso de que apenas olhar é trabalho, descobrimos que temos que nos engajar em um conjunto de atividades mensuráveis e graváveis que são úteis para os anunciantes.
Mas a relação entre capital e seus mercados e entre plataformas e suas populações de usuários é uma relação social. E como toda relação social elas estão sujeitas ao antagonismo, disfunção e, às vezes, resistência. Onde apenas as empresas introduzem novos avisos de proteção e copyright, outros encontram maneiras de contornar isso. Onde a Apple tenta limitar suas escolhas, sempre haverá um software de “jailbreak” e outras alternativas. Onde as empresas coletam, acumulam e monetizam seus dados na medida em que eles podem conhecê-lo melhor do que você mesmo, os usuários usam cada vez mais proxies, bloqueadores de anúncios e software anti- rastreamento. Cada vez mais, movimentos sociais e partidos políticos estão prestando atenção a essas questões. A idealização de novos senhores da economia foi quebrada, e os oligarcas do silício estão sendo cada vez mais minuciosamente examinados tanto como colecionadores de dinheiro quanto colecionadores de dados.
A eficácia de qualquer movimento para colocar as regras democráticas em plataformas capitalistas pós-democráticas depende, em parte, de como eles e seus oponentes entendem a maneira como os usuários se relacionam com as tecnologias. Devemos supor que o Facebook e o Twitter, tendo acumulado tantos dados, compreendam bem seus usuários. Eles entendem não apenas o que os usuários realmente querem do serviço, mas o que eles acreditam que querem. Suas estratégias de marketing, assim como o modo como formatam suas plataformas nos dizem o que vêem.
Pense na maneira como serviços como o Periscope ou o Facebook Live permitem que todos saibam o que você está assistindo, de modo que é como se você fosse um participante os eventos. Pense na maneira como o Twitter comercializou ele próprio como um lugar para ver “o que está acontecendo”, onde o mundo e todo o seu drama e novidade serão fornecidos a você em mordidas comestíveis. Pense em como o Facebook se anuncia como o lugar onde os encontros reais acontecem, onde amores remotos ou perdidos há muito tempo podem ser virtualmente abraçados através de oceanos.
A ideologia das mídias sociais é como ter um criado ou um mordomo, democratizando assim o luxo. A ideologia da mídia social é que ela amplia e estende nossa agência, oferecendo-nos uma expansão mágica e ciborgue dos nossos poderes terrestres. A ideologia é que, de alguma forma, ela faz coisas para nós nos permitindo viver e agir sofregamente, e nos permite fazer mais no mundo, estar em mais lugares, agir a uma distância maior e em um número maior de pessoas. A ideologia é que não há limites online, longe do mundo trágico da escassez offline, basta entrar: é abundante e é grátis. A ideologia é que a tecnologia e seus protocolos podem alcançar nossos objetivos para nós.
Esta é a sedução, o que nos leva ao jardim em primeiro lugar. É fetichismo. Existe alguma dúvida de que as empresas de plataforma nos entenderam bem? Em uma hora online, você pode se inscrever em um site de busca de emprego e enviar seu currículo na esperança de que a tecnologia atinja os seus objetivos encontrando um emprego para você. Você pode compartilhar conteúdo feito por outras pessoas em seu mural e deixar que a tecnologia do Facebook acumule uma contagem de reações enquanto você faz outras coisas, sustentando, assim, um conjunto de relacionamentos fracos em seu interesse. Você pode assinar uma petição online ou fazer o download de um aplicativo que explique onde fazer flashmob, acreditando que a Internet faria sua organização política por você. Você pode indiretamente participar de grandes eventos, festivais ou concertos.
Todos nós sabemos perfeitamente que isso não funciona assim. A tecnologia nos permite, principalmente, o envolvimento em um conjunto de interações estritamente definidas, delimitadas e formalizadas. Se quisermos algo além disso temos que fazer isso sozinhos, sabendo muito bem que ele se tornará parte do império de dados de alguém. Sabemos que a ‘abundância’ da mídia social é apenas outra forma de escassez, que o olho nunca está satisfeito com a visão, nem o ouvido com a audição, e que nosso engajamento com a ‘abundância’ online tenderá a nos levar a pagar por alguns bens e serviços que foram cuidadosamente comercializados para nós, antecipando e precipitando nossos desejos. Sabemos que os laços sociais que formamos online são fracos, e que algo assim pode valer menos do que um aperto de mão ou mais do que um beijo na boca. Sabemos disso, mas a tecnologia nos permite, nos convida, a nos comportar como se não fosse esse o caso. Como se a tecnologia fosse uma garantia de nossa satisfação, quando sabemos que não existe tal coisa.
Fetichistas, no entanto, sempre encontram o que estão procurando. Se o seu objeto é um par de botas de couro, então você perceberá ocorrências delas em todos os lugares e manterá um catálogo mental delas. Da mesma forma, se a mania de um teórico é o fetichismo é provável que ele encontre bastante disso. Como regra, os lacanianos de esquerda o encontram. E o problema aqui é que a ótica teórica do fetichismo pode agir para realizar a mesma recusa do próprio fetichismo. A posição do fetichista é: ‘Eu sei que essas botas de couro não são mágicas, mas vou fingir que elas são’. Essa é uma forma de ambivalência em que a verdade é tanto afirmada como negada em nome do gozo. Criticamente, no entanto, o fetichista não reconhece a ambivalência. E quando os teóricos tomam a categoria do fetichismo como certa, como uma estrutura estável de significado, eles também estão escondendo a ambivalência embutida nela – e, portanto, as possíveis fontes de mudança.
Afinal, nós sabíamos que era uma sedução quando entramos no jardim. Sabíamos que haveria problemas, e havia. Nós fomos e não somos completamente ignorantes, mesmo que tenhamos sido emboscados pelo conhecimento do quão escuro e brutal este lugar pode ser. Dado isso, se nos tornamos parte desse maquinário e cedemos partes de nossa realidade a ele isto se dá, pelo menos em parte, porque a ideologia, a sedução, opera plausivelmente em nossos desejos válidos. A ‘venda’ das plataformas não poderia ter sido fundada em uma completa irrealidade. E isto teve que ter um desempenho favorável, pelo menos em alguns aspectos, com as alternativas de mídia tradicionais.
Um fetiche é uma solução de compromisso. E quando o compromisso se rompe, e quando somos confrontados com o seu fracasso, com os seus retornos enfraquecendo, com o fato de já não ter satisfação garantida e talvez nunca o tenhamos, o compromisso dá lugar ao conflito. Estamos, inevitavelmente, despedaçados. Poderíamos ser atraídos por uma intervenção que buscasse colocar o fetiche em funcionamento novamente. Uma nova política do Twitter para reprimir os agressores. Uma nova carta voluntária para empresas de mídia social. Uma nova iniciativa contra fake news. Ou podemos ser persuadidos a desistir do fetiche e tentar de outro jeito.
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