Por Inês Maia
A crença cega na impossibilidade da transformação efetiva; o apego às limitações ao poder instituído; a busca por um lugar ao sol – quando o sol deveria ser para todos; o fetichismo de uma representatividade fechada nos moldes da vida do espetáculo e do consumo; a fé na racialização social e não na tentativa de implodir o seu significado; a ação prevista conforme os marcos colonialistas; o total afastamento do pertencimento à classe trabalhadora, e; para lacrar – a judicialização das ideias, agora avaliadas pelos senhores promotores; foram os resultados de uma teoria que, sustentando o lugar formatado pela realidade assassina e exploratória da modernidade capitalista, esvaziou do horizonte de muitos jovens uma transformação efetiva que tenha como horizonte a experiência da igualdade social radical.
Nem foi preciso ir tão longe no tempo…
Se trata de incoerência? Absolutamente não. A posição regressiva da sustentação de um lugar para a fala elide a possibilidade do próprio movimento para além da imposição dos espaços, identificatórios-policialescos, instituídos pelo colonialismo.
É a “fala que define o lugar daquilo que chamamos verdade” [1] e não o lugar que define a fala, pois, isto seria o fim da liberdade. Erguer o lugar, como fim em si mesmo, só poderia reduzir a crítica à prisão do espaço, ou seja, impossibilitar a própria crítica. A crítica não tem lugar, assim como o pensamento filosófico serve inclusive para desestruturar os lugares subjetivos/objetivos constituídos.
Mas, o que a maioria fez? Foi guiada até aqui por uma certa complacência cristã de culpa e por um racismo sútil tão funesto quanto o mais agressivo racismo, ou ainda, talvez, até mais violento.
Racismo inconsciente demonstrado quando, diante da discordância radical aos pressupostos liberais, silenciou a crítica pelo fato de ser uma mulher negra levantando o estandarte do liberalismo. É a tolerância voltairiana, a mesma que ergueu o poligenismo e fundou o racismo científico.
Nessa complacência de senhorita Morello [2], as críticas eram feitas por debaixo dos panos, aqui e ali numa mesa de bar torcia-se o nariz, mas, afinal: “era uma mulher negra falando!”
Isso não se trata de reconhecimento senão, novamente, da manifestação do mais sútil racismo de sempre, indicado pelo conservador Gilberto Freyre. Como dizia Fanon: “aquele que idolatra o negro pelo fato de ser negro é tão racista quanto aquele que o odeia pelo mesmo motivo.” E não passou muito tempo para vermos uma mulher negra enviando notificação extrajudicial à outra mulher negra.
Se muito habilmente falo dessa miséria intelectual é só para mais uma vez erguer o arsenal crítico contra a ideia de lugar que possibilita identificações sociais e identitarismos pseudopolíticos. Deixo, contudo, já evidente, que a posição de judicialização de uma crítica é inaceitável, indefensável e execrável para quem luta por um mundo emancipado. Fazer isso contra aquelas que estão juntas só torna tudo mais sintomático.
Trata-se de uma incoerência? Afirmo novamente: de maneira alguma!
O lugar se baseia no espaço identificatório fundamentado socialmente. Há um lugar de negro? Há um lugar de branco? Na álgebra do capitalismo dependente brasileiro são visíveis esses lugares determinados pela estruturação racializada da organização social, assim, como em qualquer sociedade capitalista fundamentada no colonialismo imperialista. Questioná-los é fundamental.
“Em muitos aspectos”, diz Mbembe, “a própria estrutura do sistema de colonização e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção” [3], no nosso caso particular, a álgebra do Estado de exceção colocou o negro, o ex-escravo, no lugar-de-fora. Noutras palavras a norma do Estado brasileiro é ser um Estado de exceção.
Além disso, a tentativa coercitiva estatal de criar, cada vez mais, espaços controlados e lugares definidos para corpos sociais se processa a todo momento pelo avanço necropolítico do poder em fins de capitalismo tardio e em crise permanente.
Quando se ataca as universidades públicas, sabendo doravante que 51% dos estudantes são negros, isso significa que os negros estão saindo de seus lugares. Com efeito, para o poder burguês, instituído de forma brutal, é necessário fazer com que retornem ao fora-de-lugar.
Estou encarando o lugar aqui como o espaço socialmente determinado no conjunto de uma sociedade na qual, desde o início, os negros foram colocados no não-lugar, isto é, no-lugar-de-fora. O fora significa o além das fronteiras da legalidade previsível em um Estado democrático de direito.
Todos sabem que as favelas, lugar cuja grande maioria é de negros e pardos, são microcosmos de atuação de grupos paramilitares – quer sejam traficantes, quer sejam policiais – de controle e tentativa de pacificação capitalista via assassinato com a anuência e invisibilidade da imprensa burguesa e do governo.
Sabemos, portanto, agora, o que é o lugar social que temos na álgebra do poder capitalista, ou seja, um lugar-de-fora, invisibilizado e nadificado em sua violência radical. Com esses pressupostos podemos nos questionar: O lugar de fala é possível?
Farei a discussão rápida por dentro das análises de G. Spivak. Só que já acrescento: a crítica em nenhum momento pensa no lugar, mas na humanização do Outro, o sujeito não-nomeado, por meio da fala, o que muda tudo!
Para a erudita indiana o sujeito barrado pertence aos exploradores da divisão internacional do trabalho. Isso significa que aquela formação do sujeito eivada de negatividade precisaria ser preenchida pelo próprio processo do consumo que advém da mercadoria.
A conclusão brilhante retirada daí é que justamente essa possibilidade de ser um S/Sujeito implica numa adesão ao consenso burguês, como explica: “Este S/sujeito, curiosamente amalgamado em uma transparência efetivada por negações, pertence aos exploradores da divisão internacional do trabalho.” [4]
Ao Outro – nesse caso o Outro da Europa – estão fechados os caminhos textuais pelos quais o sujeito/Outro poderia ocupar em seu itinerário “não somente a produção ideológica e científica, mas também a instituição da lei”. Os desdobramentos materialistas da análise Spivak são contundentes, vejamos:
“O exemplo mais claro de tal violência epistêmica foi o, remotamente orquestrado, distante e heterogêneo, projeto para constituir o sujeito colonial como um Outro. Este projeto é também a obliteração assimétrica do traço deste Outro em sua Subjetividade precária.”
Ora, não é exatamente essa constituição do sujeito colonial como um Outro que efetiva a própria noção de um lugar próprio ao subalterno? Não é a própria definição geográfica e a abstração real da nacionalidade que impõe esse lugar-de-fora ao subalterno? Para que o subalterno fale – verdadeiramente – não é necessário a implosão desse lugar como um Outro?
Vejamos então que com os pressupostos de Spivak rompe-se a noção de lugar. Mas, então, o que está em jogo? A fala, a possibilidade de comunicar-se, a humanidade do expressar-se. Está em jogo então a própria construção política – entendida aqui como o espaço do desentendimento, da luta radical pela afirmação da parte dos que não tem parte. [5]
“De acordo com Foucault e Deleuze”, diz Spivak e continua; “([…], sob a estandardização e arregimentação do capital socializado, embora não reconheçam isso) os oprimidos se dão a chance (o problema da representação é incontornável aqui) e no caminho para a solidariedade por meio da aliança política (uma temática marxista que vou trabalhar aqui) podem falar e conhecer suas condições.”
Duas coisas se marcam no processo de possibilidade da fala: 1) O subalterno, o subproletário, fala a partir do movimento de sua luta “por meio da aliança política”; 2) segundo a filósofa; o problema da representação é incontornável.
Em primeiro lugar, o que Spivak evidencia é que falar é parte de nossa humanidade negada pelo poder hegemônico estruturado pela divisão internacional do trabalho, mas não são os donos dos meios de produção que queremos fazer ouvir ao afirmarmos um lugar que é lugar-de-fora, não há interesses em convencê-los de nossas pautas. Deles, devemos arrancar das mãos o nosso destino de liberdade e igualdade radicais. Nossas vozes devem ser ouvidas genericamente e encarnadas como corpo político antagônico.
Em segundo lugar, devemos repor uma questão prioritária: o que é representatividade? Como pensar sua conjectura histórica? A representatividade pseudopolítica funciona sob pressupostos do parlamentarismo, isto é, na aposta metafisica de que é possível disputar o botim do capital na arena democrático-liberal por meio do voto ao nomear um representante da causa.
A esquerda rendeu-se a esse processo, mesmo sabendo que ela não pode ser governo do capital com a condição de paralisar toda a luta de classes e de obter, como resposta, o avanço inexorável da direita e da extrema-direita. Deu no que deu…
Isso não significa que não se deve participar do parlamento, mas ter total transparência da sua limitação e lucidez dos objetivos revolucionários. Quer dizer, o parlamento nada mais é que o palanque para denunciar aos condenados da terra a monstruosidade da vida sob o capitalismo e forçar a ruptura com esse Estado.
Spivak alerta que a “representação” é um dos problemas incontornáveis da questão subalterna e na possibilidade de sua fala. Ora, essa representação está toda ela imiscuída no jogo político dado pelos limites do parlamentarismo. Concordamos, porém, com a autora. Realmente no gabinete da gestão do Estado/Capital a necessidade de levar demandas e ter representantes é importante para o avanço genérico dos que não tem parte, dos subalternos. No entanto, é preciso efetivar a verdadeira política que é a posição do conflito e não da conciliação.
Sabemos: não é disso que fala a esquerda liberal brasileira quando fala de representatividade. Está falando da radical distopia da vitória geral da sociedade do espetáculo. “O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida”, como dizia Guy Debord, “o movimento autônomo do não vivo”. Isto é, a imagem, o rosto falante na tela, a representação do meu narcisismo, o ícone, o mito, a diva.
A relação de pessoas mediada por imagens publicitárias é a palavra de ordem dessa esquerda que reaccionariamente subverte os princípios de Spivak e busca que se enfoque o lugar da imagem espetacular dos subalternos na sociedade de consumo.
Não se trata da vida concreta; da mulher negra em sua situação de miséria e vulnerabilidade causada por uma desigualdade radical fomentada pelo escravismo e pela própria república que elidiu, do espaço algébrico da produção social, o negro; trata-se antes do espetáculo desse real, mostrar a situação difícil de sofrimento e a vitória dos que, suportando os terríveis percalços, conseguiram até ir para Paris.
Ao invés de implodir o espaço de poder constituído pelo Império, o que se faz é a busca permanente, e a guerra de todos contra todos, por um lugar de destaque no interior desse poder cuja práxis colonial é a norma. Há nisso um caminho natural ao punitivismo autoritário corroborado, em última instância, à luta pela afirmação do lugar.
Não há acordo aqui. A quem interessa nossas dores? Não é a nós mesmas? E como é possível ultrapassar esse processo de sofrimento e violência? Sendo presenteadas por governos de direita? Creio que não! A única forma, a meu ver, é na luta, na ação teórica e na teoria prática do movimento, nos bairros, nas organizações e nos saraus.
Nem marido, nem patrão, nem divas!
[1]Essa conclusão é de Lacan em Os nomes do Pai.
[2]Professora racista do seriado “Todo mundo odeia o Cris”.
[3]Mbembe, A. Necropolitica. Revista Temática, p. 130.
[4]SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. (doravante citada ao longo do texto)
[5]Ibidem.
4 comentários em “Do lugar identitário ao punitivismo: um caminho natural”
Inês,
Eu sempre me pus muitos problemas com a questão do lugar. Sempre penso que a necessidade de um lugar anterior ao ato da fala já é algo preso ao próprio espaço que, se assim for, elimina mesmo a possibilidade de liberdade dessa fala que se nomeia. Quer dizer, a fala é nomeada antes mesmo de se ouvir ela. A minha questão é então a seguinte: concordando com você nesse aspecto, com a implosão do lugar simbólico onde a fala se processa não se daria um novo espaço simbólico que poderia ser reduzido novamente? Não sei se fui clara, mas me parece que sendo o lugar também uma necessidade, pelo menos um primeiro passo para a formação da subjetividade – que concordo contigo, precisa se abandonado – não estaríamos num circuito infernal, em que a fala repõe o lugar e o lugar por sua vez repõe a fala? Se assim for, não há realmente um lugar de fala da mulher negra que precisa ser afirmado?
Acho que você concorda comigo até aqui… a questão é que me parece que Djamila e suas seguidoras param a meio caminho, não é? Se puder falar um pouco a esse respeito…
Ótimo questionamento. Também gostaria de compreender melhor este curto-circuito infernal. Ao meu ver, este lugar de subjetivação é evidente; porém isso não pode ser o delimitador da fala nem das ideias, pois ficaríamos presos nesse pressuposto reacionário e imobilizador. Qual seria a saída?
Companheira, quando você fala do conceito “crítica”, o que você quer exatamente dizer?
Abraços!
Bem, creio que, como uma materialista, ela se refere a encontrar o erro inerente a um sistema quando se leva seus pressupostos até a última consequência. Tipo, a verdade da prática do “lugar de fala” seria revelada pelo surgimento do “você que lute”. Tipo, se você encontrar o lugar de fala de cada grupo, e se não se você afastar o lugar do conflito das falas (e entre as falas), o que isso gera é uma situação em que cada grupo (que no limite é cada indivíduo, lembrando que esse pensamento ainda opera sob a ótica do empiricismo liberal, em que o elemento mínimo da política é “o indivíduo”) tem que enfrentar seus próprios problemas em seu próprio lugar, portanto esse “não se meta” vira “eu que lute” (que é essencialmente o mesmo que “você que lute”, mudando apenas a origem do discurso).
Acho que isso é crítica.