O Antiespecismo como Apropriação da Classe Trabalhadora: Entrevista com Marco Maurizi

Traduzido por Vitória Nogueira Silva Dantas e Maila Costa

“As sínteses teóricas e os movimentos sociais ecológicos e por libertação animal vêm crescendo nos últimos anos conforme se intensificam a exploração da natureza e a indústria animal e conforme se tornam mais nítidas as contradições e consequências referentes à comoditização da vida e sua categorização como recurso natural. Esse movimento histórico, também traz à tona as convergências entre os humanos, os outros animais e o restante da natureza em relação ao interesse pelo bem-estar e pela própria sobrevivência, dando um novo sentido ao entendimento da totalidade das relações sociais no seio da sociedade de classes.”


Marco Maurizi é filósofo marxista e autor do livro “Al di là della natura. Gli animali, il capitale e la libertà” (Para além da natureza. Os animais, o capital e a liberdade), que foi publicado em 2011. Nesta entrevista que o italiano concedeu ao Collettivo Tana Liberi Tuti (Coletivo Todo Mundo Livre) ele aborda questões centrais que estão em debate e disputa dentro do movimento antiespecista mundial, como a materialidade da exploração animal, a unidade dialética entre libertação animal e libertação humana, as bases teóricas que fundamentam o antiespecismo e a insuficiência do veganismo como movimento político.

As sínteses teóricas e os movimentos sociais ecológicos e por libertação animal vêm crescendo nos últimos anos conforme se intensificam a exploração da natureza e a indústria animal e conforme se tornam mais nítidas as contradições e consequências referentes à comoditização da vida e sua categorização como recurso natural. Esse movimento histórico, também traz à tona as convergências entre os humanos, os outros animais e o restante da natureza em relação ao interesse pelo bem-estar e pela própria sobrevivência, dando um novo sentido ao entendimento da totalidade das relações sociais no seio da sociedade de classes.

Essa entrevista toca nesses aspectos a fim de elucidar como o antiespecismo surge das teorias liberais sobre o mundo e passa então a carregar o potencial revolucionário da oposição a todas as formas de relações de poder e da construção de uma sociedade pós-capitalista onde os humanos de fato estendam a sua solidariedade a todos os seres atormentáveis que conosco se encontram neste planeta.

  • Qual a sua definição de antiespecismo?

Para definir o antiespecismo é preciso antes definir o especismo. Aqui há duas correntes de pensamento, aquela influenciada pela tradição moralista e liberal de Singer, Regan e Francione, que pensa o especismo como um “preconceito” (e que então na base da exploração animal estaria uma forma de “discriminação”), e aquela que prefiro, de orientação materialista e política, que pensa o especismo como uma estrutura social de exploração. Tal estrutura possui na sua base interesses materiais, econômicos e de poder (isto é, de controle dos corpos antes ainda que dos pensamentos), da qual a sociedade no seu conjunto, mas sobretudo a elite no poder, tira vantagem. O antiespecismo é, portanto, a crítica coerente a todas as relações de poder, mas sobretudo a ação voltada ao esfacelamento material de todas estas relações.

Isto assinala uma diferença essencial de método e de objetivo:

– de método porque aqueles como eu pensam que na base do comportamento humano estejam as práticas materiais, não as ideias, que as ideias acompanham e se modificam com base nas relações sociais e extra sociais que definem as diversas sociedades humanas. Então eu combato, acima de tudo, a práxis de exploração dos animais, penso que o animal seja reduzido a “recurso” e “objeto” porque assim é cômodo ao sistema social que tira vantagem econômica de tal redução.

– de objetivo porque essa luta não é uma luta contra o Homem, mas contra o princípio que o Homem encarna, princípio no qual está implicado o domínio do homem sobre o homem. Dado que sem o domínio sobre a natureza e sobre os animais a sociedade de classes não pode existir, o antiespecismo é, ao meu ver, a crítica coerente de todas as relações de poder que ligam a exploração dos animais àquela dos humanos no interior da sociedade de classe.

  • Na sua avaliação, qual é a relação entre antiespecismo e veganismo?

O veganismo é uma tentativa — sempre incompleta e imperfeita pelos motivos que agora direi — de colocar em prática as ideias antiespecistas a nível individual. Não são e não podem ser a mesma coisa pelo simples motivo de que o veganismo não é um modo de produção. Se nós identificamos, como considero justo fazer, o especismo com uma estrutura social que atravessa os indivíduos, mas que também sempre os transcende (o todo é maior que a soma das partes), inevitavelmente a luta antiespecista não pode se configurar senão como hipótese de transformação social, logo, como tentativa de estabelecer uma sociedade diferente sobre novas bases.

Uma sociedade, porém, não é um agregado de indivíduos, muito menos a mera soma de indivíduos que se tornaram veganos (uma sociedade vegana não é um objetivo, mas o efeito de um mundo que não seja mais especista). Há um salto entre a esfera do agir individual e a organização total da sociedade. Uma sociedade diferente daquela atual será, então, certamente caracterizada por “ideias” e “sensibilidades” novas, mais abertas, tolerantes, solidárias etc. e é certamente justo difundir estas “ideias” e esta “sensibilidade” a nível individual, com o exemplo pessoal como o veganismo e a negação de todas as práticas de exploração.

Todavia, fazendo este esforço individual, não importa com quanta convicção e coerência, nada ainda foi feito para traduzir em prática social aquelas ideias, dado que elas poderão possuir coerência e efetividade apenas no interior de uma estrutura social alternativa. Ora, a pergunta é muito simples, mas raramente é posta em âmbito animalista e antiespecista: que tipo de sociedade nós imaginamos quando dizemos que queremos pôr fim ao especismo? Como produzirá bens e serviços? Como os distribuirá? De que modo serão coordenados os esforços produtivos entre as diversas sociedades a nível planetário? Será um modelo global e internacionalista ou um modelo comunitário feito de pequenas “pátrias”? Será um modelo igualitário e socialista ou um modelo no qual são aceitas formas de propriedade privada dos meios de produção, de livre mercado talvez “temperado” com uma visão animalista ou ecologista?

Se não são colocadas e não se dá resposta a essas perguntas, se se limita à esfera do “consumo” ao invés de concentrar-se sobre a esfera da produção, tudo permanece abstrato. No meu modo de ver, a palavra “veganismo” é de tudo insuficiente ao afrontar estas questões porque tende a confundi-las, assumindo apenas o ponto de vista do consumo. O antiespecismo é, por outro lado, uma teoria social que afronta questões mais amplas e, acredito, mais radicais.        

  • Quais são os teóricos/pensadores do antiespecismo e ou do veganismo ético que tiveram maior influência sobre suas ideias e seu modo de pensar?

Ninguém. A minha reflexão sobre os animais nasce antes, antes mesmo de estudar filosofia, e foi formada sobre o pensamento de frankfurtianos, de Adorno, Horkheimer e Marcuse (e obviamente de Marx e Hegel), que na minha opinião oferecem reflexões muito mais profundas, ricas e articuladas do que qualquer pensador “antiespecista” ou “vegano”. Quando eu era jovem estudante universitário, já tinha uma sensibilidade “animalista” e lembro que lendo Peter Singer fiquei feliz de encontrar um filósofo que defendesse explicitamente os animais. Mas quando comecei a estudar filosofia, me dei conta dos fortes limites da perspectiva utilitarista singeriana: do seu individualismo metodológico (a teoria que tende a supervalorizar o peso dos indivíduos na constituição dos processos sociais), da sua abordagem idealista, moralista e liberal no que tange aos problemas da sociedade contemporânea. E devo dizer que a quase totalidade dos autores explicitamente antiespecistas é afetada pela mesma ideologia. Para se liberar dessa visão dominante dos processos sociais, aconselho a leitura de autores como Durkheim, Lévi-Strauss, Baudrillard, Adorno, Derrida, Bourdieu e Zizek. A crítica deles do Humano e do antropocentrismo é muito mais radical do que aquela de qualquer pensador explicitamente animalista e tem a vantagem de considerar de modo adequado os processos sociais.

  • Quais são, na sua visão, as ideias cardiais do pensamento antiespecista?

Apenas um conceito: crítica do domínio como relação na qual os sujeitos envolvidos são definidos em termos de oposição (si/outro) excludente e hierárquica. Então o domínio é a práxis material (não somente a ideia, o convencimento etc.) na qual são criadas hierarquias que tornam um dos polos da relação subordinado ao outro. Dentro dessa lógica – que é uma lógica de desqualificação do outro em função da apropriação do seu trabalho produtivo – está tudo: a psicologia, as relações de classe, de gênero, os conflitos étnicos-religiosos, as guerras de conquista etc. O animal funciona como suporte simbólico e material essencial de tal lógica, porque é a partir da repressão da sua própria animalidade que a civilização humana constrói a própria máquina destrutiva e produtiva. E é sempre reduzindo materialmente o outro humano à animalidade que este é transformado em sujeito subordinado (a mulher, o negro, o louco, a criança etc). Trata-se de um sistema de poder estratificado e invasivo que nasce das vísceras do ser humano (que para erguer-se a sujeito precisa dominar o próprio “animal” interno, os impulsos, o inconsciente, as reações espontâneas interditadas por uma específica definição do socialmente aceitável: por exemplo, aquela da visão “patriarcal”) e chega até as relações entre as potências imperialistas e suas colônias ou os “bárbaros” que ameaçam os confins do ocidente.

O antiespecismo deve buscar desconstruir e atacar esse sistema de poder a partir do elemento específico que ele identificou como sujeito a ser liberado: o animal. Trata-se antes de tudo de subtrair o animal da visão negativa que a cultura humana construiu contra nós. Para que isso seja feito são necessárias duas estratégias convergentes:

  1. de um lado mostrar quanta continuidade há entre nós e eles. Não tanto no sentido de quão “animal” é ainda a realidade do homem – a estratégia reacionária que vai do socialdarwinismo à sociobiologia e a certas tendências neodarwinistras de hoje –, o que tenta justamente reduzir o humano à máquina animal. Mas sim naquele de mostrar quão humanos são os animais, o quão rica e surpreendente é a vida interior e social deles, a “cultura” deles, sempre negada e apagada;
  2. de outro, mostrar qual abismo existe entre eles e nós, o quão difícil é nos referirmos ao mistério da vida animal sem torná-la similar, sem interpretá-la já desde sempre segundo as nossas categorias. É preciso então fazer um grande trabalho para que o pensamento humano dê um passo atrás no que tange à animalidade para permitir que ela emerja na sua extraordinária riqueza e multiplicidade.

Ao mesmo tempo, o antiespecismo é um movimento que possui objetivos não apenas culturais, portanto tudo isso pode ser traduzido também em termos práticos: e aqui se trata então de refutar individualmente e de modo organizado todas as práticas de exploração que se fundamentam sobre o apagamento dessa relação frágil entre nós e os animais, todas as práticas que reduzam o animal não somente à mercadoria, mas também a pet ou à atração exótica, a objeto experimental ou ameaça (como se fosse dado que a nossa presença em uma certa zona seja sempre legítima e que aquela dos outros animais, por outro lado, apenas o é quando não nos incomoda).

Mas é óbvio que tudo isso não será possível se nós nos limitarmos a corrigir os males da sociedade atual com a exortação e a denúncia. Nós devemos projetar uma sociedade diferente, uma sociedade fundada sobre o ouvir o outro (desde o nosso animal interno até as populações “animalizadas” pela propaganda do ocidente), sobre a capacidade de parar e refutar a prevaricação e a acumulação. Se não começarmos a construir uma sociedade fundada na sua estrutura (econômica e política) sobre a ideia de renúncia à lógica do domínio não teremos dado nenhum passo adiante na liberação, nem dos animais, nem dos humanos.

  • Qual você pensa ter sido a sua principal contribuição ao pensamento antiespecista e ou do veganismo ético?

Ter colocado a imperatividade de um antiespecismo político. Ter, isto é, enfatizado que o indivíduo tomado por si mesmo seja uma abstração que não produz nada de útil nem ao pensamento nem à práxis. Cabe pensar em termos de processos reais, isto é, sociais (uma vez que os indivíduos agem sempre dentro da sociedade a partir dos sistemas de valores e das práxis consolidadas a nível coletivo) se se deseja não somente mudar, mas também compreender aquilo que ocorre.

Então entendo que a minha contribuição tenha sido em primeiro lugar crítica: recusar cada teoria e cada práxis centrada no indivíduo e preparar o caminho para uma mudança que pode ocorrer somente através de um projeto de sociedade alternativo, o que implica numa relação tática e estratégica também com todos aqueles sujeitos políticos – não importa se ainda “especistas” – com quem possam ser compartilhados objetivos a  médio e longo prazo. Como a luta por uma sociedade realmente democrática, na qual a informação não está nas mãos de poucos poderosos e a economia não é ditada pelo interesse de poucas multinacionais poderia ser um objetivo indiferente para nós e não uma condição sem a qual nenhuma luta por libertação é possível?

Ao mesmo tempo, uma vez que comumente pretende-se contrapor o antiespecismo “político” ao antiespecismo “ético”, acredito ter contribuído para explicitar o quanto essa contraposição seja falaciosa e interessada. Acredito que ter enfatizado que existem outros tipos de éticas – e não somente a ética utilitarista, aquela kantiana e aquela deontológica –  tenha sido essencial. “Ético” não é sinônimo de moral centrada no indivíduo: existem éticas céticas, éticas comunitárias, éticas relativistas e/ou historicistas, éticas da virtude, éticas da responsabilidade e muitas outras. Espero ter contribuído para mostrar quanto é limitado o campo daquilo que hoje passa por “ético” no âmbito animalista.

  • Quando você se tornou vegano e por quê?

Decidi parar de matar animais para comer quando criança de modo espontâneo, por puro amor e recusa da violência contra eles. Assistindo a um episódio de Portobello – a transmissão de Enzo Tortora – vi que faziam propaganda de produtos substitutos da carne (imagino que fosse a primeira vez que se falasse de tofu ou seitam na RAI) e entendi que aquilo que me parecia só um sonho era possível. Obviamente, deveria ter 7 ou 8 anos acredito, a minha família se opôs mas a ideia continuou presente em mim e se reacendeu com a maioridade.

Desde então decidi colocá-la em prática no modo que me parecia mais coerente. Mas procurei sempre tornar essa escolha algo de funcional àquilo que sentia: nunca a considerei uma escolha nobre ou que me autorizasse a me sentir melhor que os outros. O grande problema que vejo é que a alternativa ao veganismo como “moda” é o veganismo como “obsessão identitária”, aquela que procura realizar uma coerência absoluta de comportamento e vê no outro somente alguém que devemos “corrigir”, “colonizar”.  Um comportamento que além de ser contraproducente é também fundamentalmente errado. Não só esse identitarismo que vive na própria pureza é substituto daquela lógica identitária e excludente que está na base do domínio (no fundo, aqueles que não se tornam veganos como nós não vêm a ser acusados de “não saberem controlar os próprios impulsos”?), mas ninguém pode verdadeiramente colocar-se fora da rede de poder que caracteriza o mundo atual. Até as camisas de algodão são produzidas assassinando seres não-humanos desamparados.

A solução não é procurar ser o mais coerente individualmente através de escolhas de “consumo” sempre mais radicais, sectárias e extremas, isolando-se como um pequeno núcleo de sublimes professores perfeitos, mas sim lutar junto àqueles outros na comum consciência de que sozinhos somos todos imperfeitos e inadequados para que se realize uma sociedade que produza e distribua a riqueza em modo não violento e compartilhado (também com as sociedades não-humanas).

  • A reflexão sobre o antiespecismo e sobre o veganismo é muitas vezes caracterizada por contraposições bastante fortes que, em alguns casos, afastam-se da discussão sobre temas para a focalização sobre pontos de vista específicos e até sobre pessoas singulares. Qual é a sua opinião a propósito?

Diria que são coisas bastante óbvias e típicas de todos os grupos marginais e consequentemente desorganizados, nos quais sempre emergem potenciais figuras de referência em torno das quais se polarizam consensos e dissensos. Mas a esta consideração geral gostaria de acrescentar algo que por outro lado é específico do mundo antiespecista. Cada grupo que aspira a mudança da sociedade é obrigado a confrontar-se com aquilo que ainda não o é, então é inevitável que existam pontos de vista diversos, porque aqui nos limitamos a “especular” sobre o futuro e, mais do que isso, um futuro do qual não se tem nenhuma cognição concreta.

Temos de fato dito que ninguém ou quase ninguém reflete sobre o modo em que uma sociedade não especista deveria organizar materialmente a vida, produzir bens etc. A isso se some que a configuração “ética” (a se entender com o moralismo individualista e concentrado sobre o “consumo” que a partir de Singer caracterizou todo o movimento, incluídos muitos anarquistas) nos leva a ver essas contraposições não como legítimas interpretações da realidade, mas como consequências de escolhas morais diversas.

Mas a moral, sobretudo a moral que pretende que exista uma rígida, abstrata e eterna divisão entre bem e mal, não aceita as meias medidas e a diversidade: uma escolha ou é moral ou é imoral, então condenável moralmente. Assim, a polêmica nesse âmbito não poderá nunca ser um debate sereno e intelectualmente articulado, uma vez que o que se coloca em jogo é quem é verdadeiramente moral ou mais moral do que o outro. Se ao invés disso se adotasse o ponto de vista da mudança social e então do processo, do devir, aí muitas absolutizações falhariam.

  • O debate entre abolicionistas e liberacionistas foi certa vez caracterizado por uma representação não sempre fiel das respectivas posições e talvez não sempre plenamente respeitosa das diferentes articulações do pensamento interno destas categorias “guarda-chuva”. Qual é a sua reflexão e este propósito?

De fato, veja acima. Enquanto o valor da coerência individual entre pensamento e ação for colocado acima daquele da coerência entre meios e fins em termos de processos sociais, este não emergirá. Quando se fala desses temas (mas também de argumentos “diretos” ou “indiretos”, de “antivivisseccionismo ético” ou “científico” etc.) estamos sempre em uma contraposição frontal que não tem noção da complexidade real. É absolutamente verdadeiro que se colocar no plano da reforma gradual do sistema de exploração (mesmo no sentido progressivo como compreende Francione) é um modo de aceitar e, em um certo sentido, legitimar a escravidão e então não colocar em crise o sistema. Ao mesmo tempo, é entretanto absolutamente verdadeiro que atacar a singular propriedade e liberar singulares animais, ainda que seja moralmente aceitável e desejável, não coloca em discussão nem o sistema da propriedade nem o sistema escravocrata no seu complexo.

Se um não pode apreciar a radicalidade com que os segundos recusam em totalidade o sistema de exploração, não pode apreciar a visão de conjunto daqueles que procuram modificar através de uma ação organizada a longo prazo o mesmo sistema, analisando as falhas, procurando desconstruir os pedaços. Ainda que apreciem a ação direta, não estão dispostos a considerar cada ação mediada um tratamento da causa: justamente porque consideram a sociedade esse êxito de processos transindividuais; e então percebo o quanto da história tenha sido feita também através de mediações, reformas, conquistas muitas vezes apenas simbólicas.

“Mediação” não significa apenas “compromisso”, mas também articulação de relações: quando o indivíduo vem a ser considerado parte de um processo e a sociedade uma rede de relações, aquilo que emerge como decisivo é o modo pelo qual ocorre essa mediação entre os singulares e entre as partes e o inteiro. Essa abordagem muda tudo em termos teóricos e práticos. Em vez de partir dos “máximos princípios” e deduzir daí a ação, precisaremos esclarecer as ideias sobre como é configurada a sociedade, as redes de poder, a organização econômica do presente e compreender os pontos a serem atacados para subverter a ordem. Mas somente uma estratégia organizada a mais níveis pode fazer isso, uma estratégia na qual a ação direta convive com processos que atacam sobre outras frentes, legislativas, econômicas e, por fim, culturais.

Conseguir aprovar uma lei que o adversário não queria não é necessariamente uma forma de compromisso que suavizará a luta, mas pode ser um ponto de partida para avançar e exigir mais. Nenhuma visão a priori pode excluir isto: na história ocorreu tudo, o movimento de transformação por sua vez encontrou em organizações “legais” freios burocráticos para a própria radicalidade, e outras vezes um banco para as mesmas reivindicações que atuou como uma força motriz para o aumento destas. Esta não pode e não deve ser uma escolha entre legalidade e ilegalidade, como se estes fossem conceitos já definidos e escalados do alto. Ao mesmo tempo, termos como “violência” e “não-violência” não são adequados para descrever a realidade dos processos sociais. A história, a sociedade, fazem e desfazem os nossos conceitos de legal e ilegal, de moralmente lícito e ilícito, por fim, de violento e não-violento. Todavia, como dito no início, enquanto não se esclarecer o modelo de sociedade pelo qual se está lutando, nenhuma ação coordenada e organizada será verdadeiramente possível.

  1. Intersecções, convergências, terrenos comuns, objetivos comuns. Nesse período se discute sempre mais daquilo que poderia unir diversos movimentos e grupos pela liberação e os direitos dos animais humanos e daqueles não-humanos, pela defesa do ambiente etc. Qual é sua avaliação a este propósito?

Absolutamente favorável. Quem se opõe a esta natural evolução do antiespecismo raciocina como se a coerência da ideia e da ação antiespecista impedisse toda colaboração com quem não compartilha em parte ou em totalidade daquela ideia. Diz-se: se eu acredito naquilo que digo, não posso me relacionar com quem explora os animais, seria incoerente. Como se se tratasse de coerência individual e não de eficácia da ação coletiva. O ponto não é “como faço para ser sempre mais coerente?”, o ponto é “como faço para realizar a longo prazo os objetivos aos quais almejo?”.

Confunde-se o plano da coerência individual com aquele da eficácia social. A mudança social de fato não ocorre tendo como modelo o indivíduo que primeiro pensa uma coisa e depois a faz (modelo por outro lado inteiramente falacioso, porque nem os indivíduos agem verdadeiramente assim). O processo social é sempre indeterminado, isto é, sempre produzido de mais causas, de impulsos diferentes, também em contraste entre eles, é a resultante de um campo de forças. Nós devemos esperar que o antiespecismo possa se inserir nesse campo de forças com a sua especificidade mas também com a sua capacidade de falar aos outros e mostrar que apenas modificando a nossa percepção da animalidade pode-se agir de modo coerente contra o domínio a todos os níveis. Se estivermos em grau de fazê-lo, se soubermos oferecer um modelo social diferente e então projetar uma estratégia de ação compartilhada, o antiespecismo pode esperar não somente ser admitido, mas ser reconhecido pelos pares dos outros movimentos humanistas como um movimento de liberação que tem algo a dizer a todos, algo de essencial que muda a própria ideia de emancipação humana.

  1. A crise climática e a sexta extinção em massa nos levaram a repensar profundamente a relação entre animais humanos, animais não humanos e ecossistemas. Existe algo que deveria mudar também na reflexão antiespecista e dos veganos éticos em relação à situação atual?

Penso que o contrário seja verdadeiro. No meu modo de ver, se o antiespecismo é entendido como tentei delineá-lo aqui, em cima disso há tudo para ensinar aos movimentos ecologistas. Antes de tudo, muitos ecologistas compartilham a visão individualista e consumista da mudança social típica do veganismo mais difuso: não compro garrafas de plástico assim as produzem menos etc. Em segundo lugar, é precisamente a imagem da natureza abaixo disso que está errada e o antiespecismo possui dentro de si um corretivo a isso tudo. Porque o problema ambiental é muitas vezes apenas a convicção de quanto se torna “suja” a natureza quando os homens consomem exageradamente e mal. Há uma visão ainda romântica da natureza em muitos movimentos ecologistas, uma natureza “bela” e “ordenada” se não fosse o homem a deturpá-la.

É preciso dizer que infelizmente muitos veganos e antiespecistas compartilham essa loucura, chegando por fim a esperar que o humano seja extinto para restaurar esses mitológicos equilíbrios naturais. Uma visão que Bookchin já condenava como sonho a olhos abertos de ocidentais viciados para os quais a resposta ao sofrimento do Terceiro Mundo é a morte de todos, exploradores e explorados, de quem manda os bombardeios e das crianças que agonizam sobre as bombas. Mas a natureza é cataclisma permanente, a natureza é desequilíbrio, a natureza é também luta, desespero e morte, por fim exploração sinistra de uma espécie sobre a outra.

Há algo de intrinsecamente positivo nas palavras de ordem da civilização: uma parte daquela recusa da animalidade de que se faz a civilização é a reação do animal homem a essa injustiça cósmica, ao frio descuido com que a natureza devora os seus filhos. O problema, como Leopardi e Schopenhauer já denunciavam, é que quando o homem pretender erguer-se sobre o vivente para dominá-lo, na realidade está somente prosseguindo aquela ação de extermínio da natureza a nível mais geral, enquanto, ao invés disso, deveria mostrar-se solidário com o corpo sofredor do animal.

O ponto não é que a civilidade tenha se distanciado da natureza, mas que não o fez o suficiente. Quando dizem que o veganismo não é um estilo de vida “natural”, a resposta correta deveria ser “menos mal”; quando dizem que quem como nós ama os animais e não os mata é um fruto de uma sociedade degenerada e decadente, enquanto o mundo agricultor que os ecologistas tanto gostam matam os porcos “respeitando-os”, nós devemos responder “pior para ele e para todos os românticos reacionários”.

Devemos cumprir esse passo além do mundo natural, não regredir rumo ao caos imaginando que a natureza seja um paraíso do qual caímos. Mas, e aqui está o paradoxo dialético que Adorno mostrou, é apenas reconhecendo-se integralmente animal, apenas denunciando o próprio egoísmo natural de espécie, que a humanidade poderia erguer-se realmente sobre a natureza e colocar em ação uma solidariedade universal no confronto dos viventes. Onde de fato existem elementos empáticos em muitas espécies (até mesmo interespécies), somente o humano poderia potencialmente estender a todo o vivente tal solidariedade e projetar uma ordem social que reage à catástrofe permanente da natureza de modo empático, abrindo-se ao Outro, procurando acalmar o sofrimento de modo igualitário e compartilhado. Eu espero que os recentes movimentos ecologistas deem um solavanco à atual ordem cultural nos levando finalmente a pensar de modo radical os problemas que temos à frente.  Quando e se isso ocorrer, provavelmente também os outros movimentos de emancipação descobrirão ter chegado onde o antiespecismo, ao menos em alguns de seus componentes, já os esperava há um tempo.

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