Uma potência tem seus efeitos: um diálogo com Louis Althusser e Mark Fisher sobre as derrotas do movimento comunista

Por João Pedro Luques*

Enfim explodiu a crise do marxismo! Enfim ela se tornou visível, e começamos a ver os elementos do grande dia! Enfim algo de vital pode ser liberado por e nessa crise! (ALTHUSSER, 1998, p. 272, tradução nossa).

Introdução: o 7 x 1 dos socialistas.

Comentando sobre as conquistas dos movimentos emancipatórios no século XX, o propagandista comunista Jones Manoel faz uso de uma interessante metáfora futebolística: para ele, perdemos de fato um campeonato, fomos derrotados, mas se perdemos, perdemos numa final, numa disputa acirrada e no campo do inimigo. Por muito pouco não arrancamos o título. Para ele (e concordamos com sua tese), no século passado chegamos significativamente próximos de derrotar o capitalismo e o imperialismo. Uma rápida retrospectiva do que foi os anos 60 nos remete claramente ao que Jones quer dizer: a fresca notícia da Revolução Cubana, um forte bloco terceiro mundista, início da Grande Revolução Cultural Proletária na China, um pulsante movimento anti-racista nos Estados Unidos, o peso geopolítico da União Soviética, importantes reivindicações estudantis. Enfim, temos aqui uma importante metáfora para os que já amargam décadas de realismo capitalista (o bloqueio de nossa capacidade de imaginar uma alternativa ao capitalismo com todos os efeitos que isso acarreta) lembrarem que o mundo já foi diferente.

Porém, se a metáfora é útil para nos lembrar das inúmeras conquistas emancipatórias que alcançamos, ela nos parece insuficiente para explicar a intensidade da derrota sofrida. Perdemos sim na reta final de um campeonato, mas não foi uma derrota comum, nosso time se desestruturou e foi rebaixado. Se é espantoso o quão próximos estávamos da vitória, igualmente espantosa é a brutalidade da derrota. Vide a velocidade com que se colapsa a União Soviética, com que se dissolvem (ou se cooptam) os movimentos anti-racistas, com que intempestivos estudantes se convertem à ideia do “There is no Alternative”.

Assim, saindo agora do campo das metáforas, acreditamos que para compreender nossa intensa derrota, devemos nos apoiar em duas teses: 1) nos anos 60 e 70 o marxismo se deparou com algumas limitações que, se resolvidas, poderiam desencadear significativos ganhos para os movimentos emancipatórios; 2) Sobreposto a isso, temos uma contra-revolução, respondendo ao que era ainda uma potencialidade. Se desenvolveu o neoliberalismo.

Vejamos, a partir das ideias do velho Louis Althusser e do último Mark Fisher, essas hipóteses com mais detalhes.

Althusser e Fisher sobre os anos 60 e 70.

Em 1977, convidado para falar em um evento promovido em Veneza pelo jornal Il Manifesto (jornal editado por ex-membros do Partido Comunista Italiano como Lucio Magri, Rossana Rossanda, entre outros), Althusser nos dá um interessante discurso denominado Enfim a crise do marxismo! Discurso no qual ele, sem em nenhum momento renegar o socialismo (inclusive, era exatamente nessa época que ele estava em guerra aberta contra o caminho adotado pela liderança do Partido Comunista Francês de abandonar o conceito de Ditadura do Proletariado), não só declara que o marxismo está em crise, mas considera isso como um dado positivo. Para ele, o que ocorre é que os diversos movimentos de massa (Frente popular de Resistência ao nazi-fascismo, Revolução Argelina, Revolução Vietinamita, Maio de 68, etc.) desrecalcaram diversas limitações tanto na política quanto na teoria marxista que vinham sendo suprimidas desde os anos 30, abrindo assim, finalmente, a possibilidade de sua superação. Nas palavras dele: “Se hoje podemos falar da crise do marxismo em termos de uma libertação e de uma renovação possíveis, é por causa da potência e da capacidade histórica deste movimento de massa.” (ALTHUSSER, 1998, p. 273, tradução nossa).

Mais especificamente, para Althusser, esses movimentos colocaram às claras a dificuldade do Marxismo para lidar com diversos aspectos problemáticos tanto em relação à questão do Estado (dificuldade em explicar, por exemplo, o porque nos países socialistas, longe de definhar, o Estado se fortalece e se funde com o partido [1]) quanto às formulações sobre organização política (a necessidade de uma teoria das organizações que desse conta do surgimento de movimentos populares que transbordam tanto os partidos quanto os sindicatos [2]). Em suma, para Althusser o marxismo vivia uma crise, mas uma crise que, se resolvida, poderia significar sua libertação, o ganho de uma nova potência:

“Nós estamos, no meio da presente crise, perante a uma nova transformação já em gestação nas lutas de massas. Ela pode renovar o marxismo, dar uma força nova à sua teoria, modificar sua ideologia, suas organizações e suas práticas, para abrir um futuro de libertação social, política e cultural para a classe trabalhadora.” (ALTHUSSER, 1998, p. 279, tradução nossa).

Para o velho Althusser, vivíamos uma crise cheia de possibilidades. Porém, como nos lembra Mark Fisher, se essa crise guardava um potencial ganho para o marxismo, ela era também perigosa. Não apenas pelas razões óbvias (desestabilização do movimento comunista, etc.), mas também pelo fato de a contra-revolução não precisar esperar a consolidação e estabilização do novo adversário para só então começar a agir. Nas palavras Fisher (2018): “Potências exercem influência sem serem atualizadas. Formações sociais reais são moldadas por formações potenciais cuja atualização elas buscam impedir” (p. 1126, tradução nossa). Em outras palavras, para Fisher o verdadeiro adversário à altura do neoliberalismo, o adversário contra o qual ele aparece e se constitui é, justamente, esse novo marxismo que poderia surgir, esse marxismo que dava seus primeiros sinais  nas experiências do operaísmo italiano, na aliança entre estudantes e trabalhadores durante greve dos mineiros de 1972 na Inglaterra e (acrescentamos nós, pois Fisher não cita) na Grande Revolução Cultural Proletária:

“O principal, mas não único, agente envolvido no exorcismo do espectro de um mundo que poderia ser livre é o projeto que vem sendo chamado de neoliberalismo. Mas o verdadeiro alvo do neoliberalismo não é seus inimigos oficiais – o decadente monolito do bloco Soviético, e as ruínas da social-democracia e do New Deal que já colapsavam sobre o peso de suas próprias contradições. Na verdade, o neoliberalismo é melhor entendido se for concebido como um projeto voltado para destruir – ao ponto de tornar impensável – os experimentos de socialismo democrático e comunismo libertário que floresciam no final dos anos 60 e início dos 70.” (FISHER, 2018, p. 1119, tradução nossa).

Apesar de discordarmos de diversos pontos da passagem acima, o argumento central nos parece interessante e correto (ainda mais se balizado a partir dos comentários feitos acima por Althusser): o adversário à altura do neoliberalismo era um novo marxismo que poderia ter surgido a partir de sua crise dos anos 60 e 70. Esse marxismo não surgiu, e nada mais era páreo para contra-revolução noeliberal. Eis a razão da brutal derrota sofrida nos anos 80 e 90.

Conclusão ou: por um balanço histórico!

Por fim, destacamos um fato que nos parece fundamental: a realização dessa crítica real do marxismo que dará a ele essa “nova força” prevista por Althusser só pode ser feita se de fato conhecermos a história dos movimentos emancipatórios do século XX, se escaparmos da visão que reduz o socialismo a um conjunto de crimes e maldades, se escaparmos dos verdadeiros obstáculos teóricos e políticos que são alguns conceitos como, por exemplo, o de totalitarismo. Quando se busca corrigir o marxismo sem um balanço sóbrio das experiências emancipatórias do século passado, a tendência é acabar numa exaltação acrítica e colonizada de algum movimentismo de primeiro mundo, é achar que qualquer protesto que ocorre em Nova Iorque é a solução para os problemas da esquerda e um modelo a ser seguido (MOUFAWAD-PAUL, 2018).

Nem Althusser nem Mark Fisher enfrentaram esse problema. Althusser pois, durante seus anos de atividade, ele ainda não se manifestara ainda claramente (pelo menos, no seio da esquerda, a fobia para com a própria história não era tão marcante). O caso de Fisher já é um tanto mais complexo…

Como aguçado crítico da ideologia que era, Mark Fisher conhecia não só a capacidade e a necessidade do realismo capitalista de bloquear o entendimento sobre as experiências históricas de emancipação, tal como da necessidade urgente de construir “novas narrativas” sobre esse passado:

“A ascensão do realismo capitalista não poderia ter acontecido sem as narrativas proclamadas pelas forças reacionárias sobre essas décadas [décadas de 60 e 70]. Retornar a esses momentos nos permitirá desmontar as narrativas que o neoliberalismo construiu ao redor dele. Mais importante, nos permitirá construir novas narrativas.” (FISHER, 2018, p. 1124, tradução nossa).

Não à toa, em suas últimas aulas, ele nos presenteia com geniais reflexões sobre o potencial explosivo que o termo “Comunismo de Luxo” tem sobre a ideologia capitalista:

“Nós devemos falar sobre Comunismo de Luxo mais à frente durante o curso… Eu acho que o que ele tem de poderoso é que ele deflete, desativa – ou melhor, ao contrário: explode – os atuais estereótipos e concepções sobre as coisas – exatamente aquela imagem cinza e triste associada com o comunismo soviético. Como aquilo poderia ser luxuoso? Isso é uma bomba cognitiva […]” (FISHER, 2020 p. 73, tradução nossa).

Acontece que o lado perverso e irônico da ideologia é que conhecer seus mecanismos não nos impede de estar imersos nela, de tal maneira que seus mais potentes críticos, muitas vezes, estão destinados a reproduzir exatamente o que acabaram de criticar. Nos parece ser esse caso de Mark Fisher que, em alguns momentos ao longo de sua obra, ignora completamente o óbvio efeito do realismo capitalista de bloquear o entendimento sobre as experiências socialistas (MOUFAWAD-PAUL, 2018). Por isso, o mesmo autor das geniais passagens acima é também o autor dos seguintes comentários sobre o socialismo real:

“Para usar um dos exemplos de Zizek: quem, por exemplo, não sabia que o Socialismo Realmente existente era gasto e corrupto? Não pode ser as pessoas, que estavam bastante cientes dos problemas; nem nenhum dos administradores governamentais, que não tinham como não saber.” (FISHER, 2009, p. 53, tradução nossa).

A ironia contida nesse balanço (que compra por inteira a ideologia dominante) é justamente o fato de que, ao olhar para o socialismo real, Fisher parece usar sem problemas os óculos do realismo capitalista. Realizar uma verdadeira contra-história do socialismo é muito mais difícil do que parece. Mas, ainda assim, é a grande tarefa que nos cabe.

Notas.

[1] Para uma tentativa de resposta à essa questão, vide a obra de Domenico Losurdo A Luta de Classes: Uma História Política e Filosófica.

[2] Na verdade, para Althusser, o marxismo não tem uma teoria da organização política: “Certo, existem teses políticas/práticas sobre o partido e o sindicato, teses para fixar sua distinção, seus objetivos e seus princípios de organização – mas nenhuma análise que permita verdadeiramente compreender seu funcionamento efetivo, isso é, tanto suas condições e variações de funcionamento, quanto, no limite, as formas possíveis de disfuncionalidade” (ALTHUSSER, 1998, p. 277, tradução nossa).

Referências.

ALTHUSSER, Louis. Enfin La Crise du Marxisme! In: Althusser, Louis. Solitude de Machiavel et autres textes. Paris: PUF, 1998.

FISHER, Mark. Capitalist Realism: Is there no alternative? Zero Books, 2009.

FISHER, Mark. Post Capitalist Desire. Londres: Repeater Books, 2020.

FISHER, Mark. K-Punk. The Collected and Unpublished Writings of Mark Fisher (2004-2016). Londres: Repeater Books, 2018.

MOUFAWAD-PAUL, J. Debris and Dead Skin: the capitalis imaginary and the atrophy of thought. In: MOUFAWAD-PAUL, J. e SRIDUANGKAEW, Benjanun. Methodos Devour Themselves a Conversation. Winchester: Verso, 2018.

* João Pedro Luques é mestrando em sociologia pela Universidade Estadual de Londrina.

 

 

 

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