A Farsa de Hilary Clinton: os delírios identitários da comédia neoliberal

Por Lara Apolonio Rossetto

O apagamento da história dos movimentos comunistas do país, assim como a apropriação e neutralização de suas pautas está no cerne da perspectiva utilizada por Clinton e, mais abrangentemente, pela “esquerda progressista” (tão esquerda e tão progressista como Clinton) relacionada ao partido democrata. Essa perspectiva se baseia na performance, na identidade e na representação das minorias oprimidas, sem ameaçar a estrutura social americana, sem promover nenhuma mudança real no status quo e fornecendo uma chave explicativa que (re)define e neutraliza (tal como Clinton fez com seus adversários, como Johnson fez com King, como Hollywood fez com os Panteras Negras), em seus próprios termos, qualquer movimento antissistêmico.

“Esse mundo é uma comédia para aqueles que pensam, e uma tragédia para aqueles que sentem” (WALPOLE apud ZUPANČIČ, 2008, p.19, tradução nossa).

Em 2016, encenou-se uma das maiores comédias de nosso século: a eleição nos Estados Unidos que, apesar de ter culminado na vitória de Donald Trump, foi roteirizada e narrada por Hilary Clinton. Pretendendo-se heroína, a “grande romancista” democrata costurou uma narrativa monstruosa e surpreendentemente convincente, (re)definindo seus adversários em contraposição a ela mesma, e criando aberrações patéticas e, ao mesmo tempo, aterrorizantes. A pior delas, ironicamente, foi a personagem encarnada pela própria Hilary Clinton ao colocar-se como a legítima defensora dos oprimidos, a grande representante do bem, da virtude e da luz que se erige contra o mal, o vício e a escuridão “trumpianos” (o cúmulo do racismo, do machismo, do retrocesso e do conservadorismo). Ela distorceu a realidade, fazendo-nos acreditar em um “mito da caverna” terrivelmente eficaz, no qual as figuras que se apresentam como realidade e, ao mesmo tempo, nos mantém presos à fantasia, são imagens desfiguradas em espelhos retorcidos de uma casa de horrores, que nos entretém, fascinam e aterrorizam, enquanto mantém tudo o que existe exatamente como está. É justamente na identificação dessas representações absurdas com o real que o cômico e o trágico se revelam: o erro, a inconsistência, a contradição e o absurdo levam à restauração e manutenção de valores pré-existentes.

1º Ato. “A sagrada família Clinton”: o genocídio velado e a redenção da América

O que estava em disputa em 2016 era o coração da (“narcísicamente” chamada) América e, para que Clinton emergisse como a grande salvadora da pátria, era necessário retratar seus adversários como inimigos dos Estados Unidos, assim como identificar a democrata com o progresso, com a luta por liberdade e igualdade, sem que o próprio papel do Estado na manutenção ativa dessas opressões fosse exposto. Com aspectos tão contraditórios para equilibrar, administrar e manipular, a aspirante à heroína fez malabarismos ideológicos absurdamente inconsistentes, e extremamente eficazes, criando as três grandes aberrações, protagonistas desta comédia tão trágica: Trump representaria tudo o que há de ruim e errado no país, seria a “erva daninha” poluindo o celestial jardim estadunidense; Clinton, então, seria a grande redentora do país, que finalmente conseguiria instaurar os grandes ideais que fundaram os Estados Unidos como a “terra prometida”, o reino de oportunidades em que tudo é possível; e Sanders seria o falso messias, o lobo em pele de cordeiro, o vilão disfarçado de mocinho, muito mais próximo de Trump do que parece. Para realizar tal proeza, Clinton utilizou-se de uma tática terrivelmente familiar: a chamada política identitária, utilizada, inclusive, por seu excelentíssimo marido, em sua campanha presidencial de 1992 (e reciclada por Biden em 2020).

Os ecos de Bill Clinton na campanha de Hilary são claros: do mesmo modo que a Sra. Clinton se coloca como a candidata progressista, democrática, justa e igualitária em contraposição à figura essencialmente racista, machista e retrógrada de Trump; o Sr. Clinton se contrapôs aos “conservadores” que se utilizavam de uma retórica racial para “dividir a nação”. Porém, como mostra Michelle Alexander, em seu texto intitulado “Porque Hilary Clinton não merece o voto negro”, na prática, Bill Clinton aderiu ao programa de Ronald Reagan, adotando sua agenda sobre raça, criminalidade, proteção social e impostos e, em ultima instância, “fazendo mais mal às comunidades negras do que Reagan fez” (ALEXANDER, 2016, tradução nossa). Essa cooptação do programa do ex-presidente republicano por um democrata se deu pelo “simples” fato de que Clinton desejava conquistar o voto dos milhões de eleitores brancos do Sul, adotando a narrativa de que “comunidades negras precisam ser disciplinadas com punições pesadas ao invés de serem mimados com bem-estar social” (ALEXANDER, 2016, tradução nossa).  A vitória de Reagan na década de 80 foi, em grande parte, resultado de seus apelos raciais disfarçados contra as “rainhas do bem-estar social”[1], os “criminosos” e o “grande governo” (defesa tipicamente neoliberal do “estado mínimo”, contra as reformas sociais). “Clinton queria conquistá-los [os eleitores brancos do sul] de volta, prometendo que ele não iria permitir que nenhum republicano parecesse mais duro contra o crime do que ele” (ALEXANDER, 2016, tradução nossa). Para demonstrar sua “mão de ferro”, Clinton presenciou a execução de Ricky Ray Rector, um homem negro com problemas psicológicos “que tinha tão pouca noção do que iria acontecer com ele que pediu que a sobremesa de sua última refeição fosse guardada pra depois” (ALEXANDER, 2016, tradução nossa).

A retórica de igualdade racial e defesa dos oprimidos ficou apenas no discurso, enquanto o programa “reaganiano” foi cruelmente efetivado: “Quando Clinton deixou a presidência em 2001, os Estados Unidos tinham o maior índice de encarceramento no mundo”; “afro-americanos constituíam de 80 à 90 por cento de todos os prisioneiros que cometeram crimes com relação a drogas”, mesmo que não comprassem ou vendessem mais drogas do que brancos; e as prisões de negros americanos relacionadas ao porte ou tráfico de drogas atingiu, em 2000, “mais de 26 vezes o nível de 1983”. Mesmo que “todos os presidentes desde 1980 tenham contribuído com o encarceramento em massa […] o mandato do presidente Clinton foi o pior” (ALEXANDER, 2016, tradução nossa). Ainda assim, como mostra Alexander, Clinton “foi aclamado por sua abordagem direta e pragmática à política racial. Ele ganhou a eleição e compôs um gabinete diverso que ‘tinha a cara da América’. […] O partido democrata foi salvo. Os Clinton ganharam. Adivinha quem perdeu?” (ALEXANDER, 2016, tradução e grifos nossos).

Há, ainda, um mito grave sobre o governo de Clinton: mesmo que tenha sido muito severo com o crime, argumenta-se que ele foi bom para a economia e para os níveis de desemprego negro. Contudo, negligencia-se que as estatísticas governamentais não consideram pessoas encarceradas.

Como o sociólogo de Harvard, Bruce Western, explica: “Muito do otimismo sobre o declínio na desigualdade racial e no poder do modelo de crescimento econômico dos EUA se mostra equivocado quando levamos em conta os pobres invisíveis, por trás das paredes de prisões”. Quando Clinton deixou a presidência em 2001, a verdadeira taxa de homens negros, jovens e sem ensino superior (incluindo aqueles que estavam atrás das grades) era de 42 por cento. Esse número nunca foi reportado. Ao invés disso, a mídia alega que o nível de desemprego para afro-americanos tinha caído para números ínfimos e inéditos, não mencionando que esse milagre só foi possível porque o encarceramento tinha alcançado níveis altíssimos, também inéditos. Jovens homens negros não estavam procurando por emprego durante a era Clinton porque eles estavam, então, atrás das grades – longe da vista, longe do pensamento e não mais contados como parte das estatísticas de pobreza e desemprego (ALEXANDER, 2016, tradução e grifos nossos).

Além disso, coerentemente com sua política “reaganiana”, as políticas sociais que ajudavam as famílias pobres a sobreviver foram destruídas, pois Clinton afirmava que iria destruir “o bem-estar social como o conhecemos”, declarando que “a era do grande governo acabou”. A reforma legislativa assinada por Clinton (caracterizada por sua querida esposa, em 2008, como um grande sucesso) abarcou medidas como: a imposição de um limite de cinco anos de assistência, exigências empregatícias que não existiam anteriormente, a exclusão de imigrantes não documentados e o corte de mais de 54 bilhões de dólares em assistência social.  A pobreza extrema dobrou para 1.5 milhões em apenas uma década e meia após a reforma ser aprovada. Isso não quer dizer que o governo de Clinton reduziu o dinheiro gasto com a administração dos “pobres urbanos” (comunidade majoritariamente negra), ele apenas mudou sua função:

Bilhões de dólares foram cortados de programas de habitação de assistência a crianças e transferido para a máquina de encarceramento em massa. Em 1996, os gastos na esfera penal eram o dobro dos que tinham sido usados com cupons de alimentação. Durante o mandato de Clinton, o financiamento para habitações públicas foi cortado em $17 bilhões (uma redução de 61 por cento), enquanto o financiamento para prisões aumentou em $19 bilhões (um aumento de 171 por cento), de acordo com o sociólogo Loïc Wacquant “efetivamente fazendo da construção de prisões o principal programa de habitação para os pobres urbanos” (ALEXANDER, 2016, tradução e grifos nossos).

Todavia, o programa de Clinton não se contentou apenas em mandar jovens negros para a cadeia, mas colocou todos seus esforços em mantê-los lá: ele eliminou bolsas de estudos que eram oferecidas aos prisioneiros; aprovou a legislação que bania todos os condenados por posse ou tráfico de drogas de programas de assistência social (mesmo com o caráter racial assumido pela “guerra às drogas”); apoiou a iniciativa do “um strike e você está fora”, que previa a expulsão de famílias das habitações públicas caso um membro (ou visitante) tivesse sido condenado, mesmo que apenas como réu primário; entre outras medidas.

As pessoas que saíam da prisão sem dinheiro, trabalho e nenhum lugar pra ir não podiam mais voltar para casa e para seus familiares que moravam em habitações fornecidas pelo governo sem colocar toda a sua família em risco de despejo. Expulsar o “elemento criminoso” dos programas de habitação pública foi alvo de elogios na mídia, mas nenhuma medida foi realizada para ajudar as pessoas e as famílias que foram expulsas de suas casas. No final do mandato de Clinton, mais da metade de afro-americanos ativos em áreas urbanas tinham fichas criminais e eram sujeitos à discriminação legal em áreas como emprego, habitação, educação e benefícios públicos básicos – relegados a um status de cidadãos de segunda classe assustadoramente remanescente das leis de Jim Crow (ALEXANDER, 2016, tradução nossa).

E como o símbolo de girl power que é, Hilary Clinton nunca ficou “escolhendo porcelana enquanto ela era a primeira dama”, mas,  pelo contrário, “redefiniu esse posto como nenhuma mulher havia feito antes” (ALEXANDER, 2016, tradução nossa). Ao apoiar seu marido na “lei do crime” de 1994, Hilary Clinton utilizou-se de um discurso com conotações raciais de fundo, mascaradas, comparando crianças negras a animais. Segundo ela, “elas não são mais apenas crianças”, mas “o tipo de crianças chamadas de ‘superpredadores’. Sem consciência, sem empatia. Nós podemos ficar discutindo como elas acabaram ficando desse jeito, mas antes temos que curá-las” (CLINTON apud ALEXANDER, 2016, tradução nossa).

Além disso, Hilary Clinton representa a continuidade do governo que mais deportou imigrantes; mantém uma espécie de potentado neocolonial no Haiti; justificou os ataques de Israel a escolas da ONU durante a “Operação Margem Protetora”, que resultou na morte de mais de 1400 civis palestinos; disse que se ela fosse presidenta, iria atacar e “obliterar o Irã” no caso de um ataque contra Israel; e foi a principal patrocinadora da política de guerra contra a Líbia que culminou na destruição do país com o melhor IDH da África (In: O futuro e o legado de Hilary Clinton, 2016). Compartilhando de um senso de humor sádico, tal como seu marido – que passou seu dia assistindo a execução de Ricky Ray Rector – Hilary Clinton afirmou sorridente: “‘Nós viemos, nós o vimos, e ele morreu! Hahahahahaha’, logo após o vídeo de Kadafi sendo assassinado e sodomizado por uma turba de radicais ter sido jogado para o horror internacional” (In: O futuro e o legado de Hilary Clinton, 2016).

Seu progressismo discursivo com relação às mulheres e à comunidade LGBT também é contrariado por suas ações: além de sua atitude “empoderada” de “engrossar a voz com vários governos do mundo, usar drones, bombas e terroristas se necessário” não se aplicar a alguns dos regimes mais misóginos como os do Qatar e o regime wahabita ultra-estrito e hiper-reacionário da Arábia Saudita, ela teve “envolvimento direto no golpe militar em Honduras que derrubou o Presidente Zelaya, que por acaso politicamente revoltava a direita com alguns elementos da agenda LGBT […] e a distribuição estatal de pílulas do dia seguinte. Desse golpe nasceram esquadrões da morte que até hoje assolam o país.” (In: O futuro e o legado de Hilary Clinton, 2016).

Apesar da cruel realidade, sua representação como a “salvadora da América” e dos oprimidos deveria ser mantida. É fato que Clinton realmente é a defensora dos Estados Unidos, a autêntica candidata do establishment norte-americano. Todavia, o absurdo se encontra na afirmação de que “salvar a América” é o mesmo que defender o povo: os negros, as mulheres, os imigrantes, os indígenas, a comunidade LGBTQIA+. A defesa do Estado-nação dentro do império que sustenta a ordem vigente implica, necessariamente, na manutenção da opressão contra todos esses grupos, dentro e fora do país.

2º ATO. “Negros como Clinton”: a politica identitária e a absolvição do Estado norte-americano

Como nos mostra Étienne Balibar (2021), a constituição de um Estado-nação pressupõe a definição tanto de quem faz parte da nação, quanto de quem não faz. Só se estabelece o que é nacional em contraste ao que não o é. Afinal,

[…] não é o Estado moderno que é “igualitário” [que ignora oficialmente as diferenças de status entre os indivíduos], e sim o Estado nacional (e nacionalista) moderno, em que a igualdade tem como limites internos e externos a comunidade nacional e como conteúdo essencial os atos que a expressam diretamente (em especial, o sufrágio universal, a “cidadania” política). Ela é, antes de mais nada, uma igualdade no que diz respeito à nacionalidade (BALIBAR, 2021, p.101).

Ou seja, é o próprio Estado-nação que racializa os diferentes povos, que segrega, exclui e marginaliza todas aquelas “minorias”. É ele que define, dentro e fora de seu território, quem é cidadão, quem faz parte do “povo”, da “identidade nacional”, e quem não faz. Se esse não fosse o caso, não seria necessária a luta dos oprimidos por igualdade.

Para que essa diferenciação entre “nacional” e “não nacional” seja realizada, é preciso criar uma etnicidade fictícia, uma unidade fabricada entre os indivíduos “nacionais”. Nos Estados Unidos, é o que Wendy Brown denomina de “ideal masculinista burguês”, que “significa oportunidade vocacional e educacional, mobilidade ascendente, proteção relativa contra violência arbitrária e recompensa proporcional ao esforço” (BROWN apud HAIDER, 2019, p.47-48). Esse seria o cidadão (ideal), o indivíduo “verdadeiramente americano”, enquanto todos os outros seriam apenas inquilinos indesejados no território nacional. Indesejados, porém necessários, pois só se pode constituir uma nacionalidade, uma identidade, em contraposição a uma outra, excluída. Portanto, se só é possível definir o que é nacional em contraste com quem não o é, então a exclusão e a marginalização de certos grupos é um imperativo constitutivo do Estado-nação.

Ao mesmo tempo, os supostos ideais burgueses de universalidade e igualdade abrem espaço para a demanda por inclusão nesse mesmo Estado-nação que exclui, explora e marginaliza (mesmo que, contraditoriamente, essa inclusão nunca possa ser verdadeiramente realizada). Como afirma Judith Butler, “identidades são formadas dentro das formações políticas contemporâneas em relação a certos requisitos do Estado liberal” e essa “afirmação de direitos e a reivindicação de benefícios só podem ser feitas com base numa identidade singular lesada” (HAIDER, 2019, p.34-35). Todos os excluídos pelo Estado se definem, seguindo os imperativos da institucionalidade burguesa, como o que, essencialmente, não é “nacional”: todos os que não são o homem cis, hétero e branco (o “ideal masculinista burgûes”), frente ao Estado-nação, não são americanos, não são cidadãos, não gozam de oportunidades iguais, não conseguem subir na pirâmide social, não estão protegidos pelo Estado e não são recompensados por seu esforço. Eles não são.

Em sua luta para conseguir ser (reconhecido como gente), a palavra sujeito adquire um sentido ambíguo: ao mesmo tempo que significa “ter capacidade de ação, ser capaz de exercer poder” (por meio da demanda por inclusão no “ideal masculinista burguês”, para gozar de suas “benesses”) também significa “ser subordinado, sob controle de um poder externo” (HAIDER, 2019, p.35), ser definido pelo Estado-nação e dependente dele para conseguir afirmar sua humanidade, implorando a seu próprio carrasco por piedade.

Portanto Butler sugere que “o que chamamos de política identitária é produzida por um Estado que só pode dar reconhecimento e direitos a sujeitos totalizados pela particularidade que constitui seu status de demandante”. Se podemos reclamar que somos de algum modo lesados com base em nossa identidade, como se apresentássemos uma queixa em um tribunal, podemos demandar reconhecimento do Estado com base nisso. E, uma vez que são a condição da política liberal, as identidades se tornam cada vez mais totalizantes e reducionistas. Nossa capacidade de ação política através da identidade é exatamente o que nos prende ao Estado, o que assegura nossa contínua sujeição. (HAIDER, 2019, p.35)

Ao aceitar as identidades construídas (tanto a “nacional” quanto as “não nacionais”) pela categoria de nacionalidade como fatos empíricos e agir dentro da lógica da institucionalidade burguesa (em seu sonho americano erótico, com um desejo – impossível de ser saciado dentro do status quo, mesmo que pautado por ele – de fazer parte da nação), a política identitária funciona, ao mesmo tempo, como apologista e mercenária do Estado-nação (do sistema capitalista, do Estado burguês, da estrutura social, da ordem vigente, do imperialismo americano).

Apologista porque explica os problemas sociais como obra de “outros vilões”, que nada teriam a ver com o Estado norte-americano. No caso de sua grande representante, sua sádica personificação, Hilary Clinton, os “outros vilões” foram Donald Trump e Bernie Sanders. E para que uma figura tão desprezível como Clinton fosse alçada de “vilã demoníaca” para “heroína celestial”, era necessário que ambos seus adversários fossem empurrados e encarcerados nas “profundezas do inferno”. E não há nada mais maligno, nos Estados Unidos, do que um vilão Russo: com deja vus de guerra fria, houve uma campanha fervorosa alegando que Trump teria se amparado em fake news para conseguir ganhar a eleição, com o apoio da Rússia, em uma conspiração para destruir a democracia americana. “Um voto contra Hillary seria um voto para Trump – e um voto para Trump seria na realidade para Putin. E como Hillary explicou anteriormente, Putin = Hitler” (In: Hilary e Trump: uma moeda, duas faces, 2016). Evocando o fantasma de Arendt, o totalitarismo Russo (o “nazismo comunista”), herdeiro da “crueldade soviética”, opõe-se diretamente à bondade da democracia americana. E Trump é jogado na mesma categoria que todos os outros arqui-inimigos da democracia americana. Todos esses vilões são equiparados por seus ataques ao “grande reino da liberdade e igualdade”. Nas palavras de Barack Obama: “qualquer um que ameace nossos valores, quer sejam fascistas, comunistas, jihadistas ou demagogos nativos [em referência direta a Trump], sempre falhará no final” (In: Hilary e Trump: uma moeda, duas faces, 2016).

Se Trump representa a face totalitária dos inimigos da democracia, Sanders representa o perigo comunista. A suposta conexão Russa utilizada contra Trump foi ressuscitada em 2020 para alçar o herói democrata da vez, Joe Biden. E a mesma carapuça colocada em Trump foi deslocada, contraditoriamente, para Sanders:

[O] The New York Times publicou um artigo chamado “O Legislativo foi avisado que a Rússia trama para re-eleger Trump”. No dia seguinte, publicaram outro artigo: “Rússia pode estar interferindo em apoio a Sanders nas primárias democratas”. No mesmo dia, o Washington Post publica artigo com a manchete “Bernie Sanders é informado por oficiais dos EUA que a Rússia está tentando ajudar sua campanha presidencial”, a qual ofuscou o detalhe não insignificante, mas crucial, de que eles não apresentaram qualquer evidência que embasasse a informação. No dia das primárias em Nevada, o The New York Times publicou um editorial de opinião chamado “Objetivos iguais, caminhos diferentes: por que a Rússia apoiaria Trump e Sanders”. Os canais de notícia 24h ecoaram a histeria contra a Rússia dos jornais com uma convidada da CNN afirmando que o verdadeiro vencedor em Nevada seria o presidente russo Vladimir Putin. Aparentemente, o conteúdo dos artigos tinha origem em fontes anônimas sem embasamento (In: A terceira ameaça vermelha, 2020).

Entretanto, a equalização entre Trump e Sanders não para por aí (e fica ainda mais absurda): para consolidar a imagem de Clinton como a verdadeira defensora dos oprimidos, de mãos dadas com Obama em um campo florido de tolerância, tanto Trump quanto Sanders foram representados como candidatos da branquitude.

Trump seria a representação dos “brancos do mal” (em oposição aos “brancos do bem”, ou seja, os democratas), que:

[…] ouvem música country e comem carne de animais em cativeiro, são ofensivamente gordos e nos domingos vão pra igreja e não pra yoga. E o mais nojento de tudo isso, eles realizam trabalhos braçais sujos e tem uma fixação mesquinha por ganhar mais dinheiro, sem se dar conta de que em Harvard um estudante de cor está sendo obrigado a suportar o trauma de ler Huckleberry Finn [2] (HAIDER, In: Beyond Guilt and Privilege, 2020, tradução nossa).

Esses “brancos do mal” seriam os verdadeiros culpados pela persistência da supremacia branca nos Estados Unidos (e não o sistema capitalista). Seriam a “cesta de deploráveis” de Hilary Clinton: “racistas, machistas, xenofóbicos e islamofóbicos” que são “irredimíveis, mas felizmente, eles não são a América” (In: Basket of Deplorables, 2021). A América é democrática, a América não é racista, a América é a terra da liberdade, da meritocracia e da igualdade. Os mísseis americanos atacam a tirania, e são direcionados ao terceiro mundo para instaurar nesses países também a liberdade e a igualdade da democracia americana. Mísseis não são racistas, trabalhadores brancos são. O problema é a massa de “White trash” (“lixo branco”), o “pecado original” da “branquitude”, a “cobra” que ronda o “éden americano”. É necessário que o resto da América, as “pessoas de bem”, resistam à tentação e não mordam a maçã da intolerância, ou seja, que não votem em Trump. Elejam uma mulher ou um negro e a América estará a salvo.

Esse é o mesmo discurso do soldado, diplomata e autor francês Michel-Guillaume-Jean de Crèvecoeur[3] (1735-1813) em seu livro “Cartas de um Fazendeiro Americano” (1782)[4], onde descreve o “novo homem” que nasce nos séculos XVIII-XIX, nos Estados Unidos: ele é descendente de europeu, mas deixa para trás seus hábitos antigos e recebe novos de seu novo modo de vida, do governo ao qual obedece. Assim, indivíduos de todas as nações são dissolvidos em uma nova raça (ao imigrarem para os Estados Unidos) que mudará o mundo. Esse “novo homem” escapou da opressão europeia e abraçou novas oportunidades, desfrutando da glória da liberdade de pensamento e da mobilidade econômica. Todavia, esse “novo homem” referia-se apenas ao homem do norte, com delimitações de gênero, raciais e de classe muito específicas. Ao mover-se ao sul, Crèvecoeur começa a revisar seu “ideal americano”. Sulistas brancos e pobres eram considerados ora como um estado deplorável e selvagem temporário, ora como uma degeneração sem possibilidade de redenção (PAINTER, 2010).

É na ressalva de Crèvecoeur que encontramos um dos grandes segredos que a política identitária tenta esconder: o tão sonhado “ideal masculinista burguês” é tão real quanto a suposta universalidade burguesa e a garantia de que seríamos todos iguais perante os olhos do Estado-nação, o “reino da justiça e da igualdade”. A inclusão nesse ideal, que se apresenta como o fim último da política identitária, não garante os benefícios prometidos pelo estado burguês aos seus (legítimos) cidadãos: a parcela de indivíduos que gozam de oportunidades mil, de mobilidade social ascendente, de segurança e proteção estatal e de recompensas proporcionais ao mérito é muito pequena, mesmo se considerarmos as “identidades” que estariam formalmente abarcadas como cidadãos (homens cis, brancos e héteros – e americanos). Portanto, aquele pressuposto identitário de que a inclusão nessa “identidade nacional” significaria aquisição de poder político é, no mínimo, delirante, ainda que sua exclusão tenha efeitos e danos reais.

Ta-Nehisi Coates, um escritor negro (liberal) estadunidense, desconhece a falsidade do “ideal masculinista burguês”, da “identidade nacional”, do pressuposto do Estado-nação, e argumenta que a “branquitude” é um “amuleto todo-poderoso”, cujas “energias” seriam mantidas naturalmente através dos tempos. Nesse argumento, ser branco ou negro é um dado empírico, um fato biológico (um pressuposto terrivelmente familiar) e seus determinantes culturais são trans-históricos e completamente independentes da estrutura ou da conjuntura política, social e econômica. Não se compreende como a supremacia branca é produzida e reproduzida, só sobrando a reafirmação de uma “negritude” contra a “branquitude” para que, talvez, ela se torne também um amuleto mágico. Desse modo, Coates analisa a vitória de Trump em 2016 apenas como resultado de uma solidariedade racial: em seu livro “O Primeiro Presidente Branco”, Coates afirma que foi “a branquitude que nos trouxe Donald Trump”. Contudo, como afirmou outro intelectual negro americano (mas, dessa vez, comunista), August H. Nimtze, existem algumas inconsistências claras nessa explicação:

Coates nem mesmo considera que apenas vinte e cinco por cento do eleitorado votou em Trump; ou que a maior parte dos eleitores do país, por volta de quarenta e um por cento, não votaram em nenhum dos dois: eles decidiram não votar. Em outras palavras, a maior parte do eleitorado não votou em Trump; vários deles não gostaram de suas opções. […] existe um silêncio ensurdecedor na narrativa de Coates. […] os mesmos lugares que votaram duas vezes em Obama (em 2008 e 2012) votaram em Trump. Coates pode realmente alegar que todos aqueles brancos que votaram duas vezes em Obama sofriam de uma falsa consciência racial e finalmente voltaram ao normal em 2016? Talvez se você acreditar que a supremacia branca está gravada em seu DNA – à la os “irredimíveis” de Clinton, como Coates chega perto de afirmar. […] Coates indaga que, se a “branquitude” não explica os eleitores de Trump, então por que mais negros e latinos não votaram nele? Claramente, eles também tinham seus motivos para estarem cansados da política de sempre. Mas Coates certamente sabe que o fracasso de Clinton em estados cruciais foi a principal razão para a vitória de Trump. Afro-americanos, latinos e jovens suficientes ficaram em casa em 8 de novembro para negar a vitória a ela. Eles também fizeram parte do grupo que não votou em nenhum dos dois. Flint, em Michigan, é um exemplo instrutivo. O número de eleitores em 2016 foi praticamente metade de 2012, o que não é surpreendente se levarmos em conta como a classe política, em pele de republicanos e democratas, abusou de seus residentes[5] (NIMTZE, 2017, tradução nossa).

A explicação de Coates não apenas ignora esses pontos, assim como a crise do capitalismo “simplesmente não está em seu radar”. O partido democrata e o Estado norte-americano são completamente absolvidos e, (ressoando a voz de Clinton) os grandes culpados de todos os desastres na política e na economia do país são os eleitores brancos e burros, movidos por um “ressentimento racial” natural e eterno. Tanto para Coates, quanto para Clinton ou para Crèvecoeur, o branco pobre é a erva daninha empesteando o espírito americano, e, assim, se torna o bode expiatório do estado que instaura e sustenta, estruturalmente, o regime de opressão racial no país.

Contudo, não existem apenas esses brancos nojentos e reacionários (à la Trump), mas “brancos do mal” bem educados e estudados, que caíram em tentação (à la Sanders). Enquanto Trump seria a supremacia branca encarnada, Sanders representaria a igualdade “incompleta”, masculina e branca de demandas caracteristicamente econômicas, que se resumiriam à “classe”, desconsiderando pautas de igualdade racial e de gênero por serem “desimportantes”.

Os apoiadores de Sanders foram condenados como “manos do Bernie”, apesar de haver amplo apoio entre as mulheres. Eles foram acusados de negligenciar as preocupações dos negros, apesar dos efeitos devastadores para muitos negros americanos do comprometimento da corrente dominante do Partido Democrata com as políticas neoliberais (HAIDER, 2019, p.34).

A identificação entre Sanders e Trump como os dois representantes da “branquitude” (sendo que Trump seria o “mal escancarado” e Sanders uma “ameaça disfarçada”) faz com que haja uma equiparação entre as políticas defendidas por ambos, com que os dois sejam vistos como o grande “problema” da América: as duas perspectivas que sustentam a discriminação e o racismo. E claro, não esqueçamos, elas seriam diretamente financiadas pelo “vilão russo”, o “fantasma da União Soviética”. Ou seja, a “mentalidade preconceituosa” é vista como uma praga instaurada nos Estados Unidos pelos arqui-inimigos da grande nação americana. Sem essa contaminação maligna, o país seria o paraíso na terra. Assim, o Estado-nação, o verdadeiro culpado, é absolvido e efetua-se a primeira grande função da política identitária: a de apologista do Estado-nação.

A segunda função da política identitária, de mercenária, consiste justamente na exclusão de quem pretende incluir: ao tomar o lugar de um movimento verdadeiramente antissistêmico, afirmando-se, tal como Clinton, como a única perspectiva legítima de defesa dos oprimidos, sua verdadeira defensora, a política identitária oblitera qualquer movimento revolucionário em troca da inclusão na tão sonhada “América” e, simultaneamente, impossibilita a união da classe trabalhadora e de todos os explorados e oprimidos contra o sistema vigente.

Ao seguir a risca a narrativa de Clinton, o autor branco Ned Resnikoff, em seu texto intitulado “O centro caiu e o nacionalismo branco está preenchendo o vazio”, afirma que a “esquerda radical” (identificada com Sanders, aos olhos do discurso democrata) está mais próxima do que percebe do populismo branco de direita. Asad Haider, autor marxista americano de descendência paquistanesa, ironiza os exemplos dados por Resnikoff para ilustrar sua tese: ao apontar a Jacobin Magazine como um dos maiores exemplares da “esquerda radical branca”, Resnikoff acusa especificamente um artigo da revista escrito por Shuja Haider, irmão de Asad, que brinca – “Eu estou razoavelmente confiante de que esse outro Sr. Haider não é branco, visto que somos parentes” (HAIDER, In: Beyond Guilt and Privilege, 2020, tradução nossa). O que caracteriza essa esquerda como branca, aos olhos de Resnikoff, é justamente sua crítica à lógica da política identitária, fazendo com que a raça, categoria que se apresenta como óbvia, natural e imediatamente reconhecível por ser visual, se mostre extremamente maleável e percebida com relação ao discurso político em questão.

Essa distinção entre autores que se conformam ao discurso identitário e os que o contestam, com a valorização dos primeiros como progressistas e a condenação dos últimos como conservadores disfarçados, é o que Asad Haider denomina de “pureza branca”, “uma ideologia de higienismo racial que abraça o multiculturalismo e a diversidade, mas tenta eliminar todos os elementos indesejáveis da própria identidade branca” (HAIDER, In: Beyond Guilt and Privilege, 2020, tradução nossa). Essa perspectiva, que distingue os “brancos do bem” dos “brancos do mal”, é usada para silenciar não apenas Bernie Sanders, mas todos os opositores “de cor” à lógica “clintoniana”: “Todos os críticos à pureza branca que não são brancos podem ser descartados por meio da alegação de que eles são apenas brancos intolerantes disfarçados. Seja ele um negro, árabe, porto-riquenho ou coreano, todos precisarão ser re-identificados se falharem a cumprir seus papéis” (HAIDER, In: Beyond Guilt and Privilege, 2020, tradução nossa).

Esse papel é de apoiar cegamente o discurso identitário do partido democrata, não adotar nenhuma perspectiva que conteste a superioridade moral dos Estados Unidos sobre o mundo e, especialmente, não se alinhar com os inimigos do estado americano, principalmente esses tais de comunistas. Assim, ao Hilary Clinton (e seu discurso identitário) ser representada como a verdadeira defensora dos oprimidos, enquanto Sanders seria apenas mais um defensor da “branquitude”, acontece o clássico fenômeno cômico do erro de reconhecimento, da confusão, do engano, da trapalhada: enquanto Asad e Shuja Haider são “brancos como Sanders”, defendendo suas pautas “ridiculamente econômicas”, Resnikoff é “negro como Clinton”, a salvação da América. E como denuncia Asad Haider: “[n]esse meio tempo, ninguém sabe o que fazer com os não-brancos, como eu, que tentam interferir no debate. Até agora, a estratégia dos brancos liberais é uma forma glorificada de colocar seus dedos em seus ouvidos e gritar ‘não consigo te ouvir!’.” (HAIDER, In: Beyond Guilt and Privilege, 2020, tradução nossa).

3º ATO. “Tão africanos quanto um americano”: esfolando panteras e vestindo suas peles

A representação de pautas caracteristicamente “de classe” como incompatíveis às demandas das outras opressões (de gênero, raça e sexualidade) é um falseamento completo da história dos movimentos sociais nos Estados Unidos, do movimento negro no país e, inclusive da própria história do partido democrata: em 1984, nas primárias do partido, o candidato Jesse Jackson defendia uma “coalisão arco-íris”, referindo-se ao programa do Partido dos Panteras Negras de Illinois, que consistia em um esforço militante para superar as divisões raciais dentro da classe trabalhadora, para que um programa revolucionário comum fosse implantado. Nas palavras de Fred Hampton (mais importante articulador da coalizão):

Temos que encarar os fatos. As massas são pobres, as massas pertencem ao que chamamos de “classes baixas”, e quando eu falo de massas, estou falando de massas brancas, estou falando de massas negras, estou falando de massas marrons, e de massas amarelas também. Temos que encarar o fato que algumas pessoas dizem que se combate fogo com fogo, mas nós dizemos que é melhor combater fogo com água. Nós dizemos que não se luta contra o racismo com racismo. Se luta melhor contra o racismo com solidariedade. Nós dizemos que não se luta contra o capitalismo com capitalismo negro; se luta contra o capitalismo com socialismo (HAMPTON, 1969, tradução nossa).

Clinton, em seus malabarismos ideológicos, conseguiu se colocar como a legítima representante dos discursos por igualdade racial ao mesmo tempo que defendia posições políticas contrárias àquelas dos movimentos (como os Panteras Negras) que realmente lutaram pelo fim da opressão racial. Este apagamento da história dos movimentos (negros) radicais juntamente com a apropriação e neutralização de suas pautas não é uma novidade trazida por Clinton. Sendo “uma candidata que sintetizou tudo o que há de tão problemático na política burguesa para a classe trabalhadora”, “Business as usual” (NIMTZ, 2021), Clinton não foi a criadora da lógica da política identitária, e não é a única que se utiliza dessa tática tão cara não apenas ao partido democrata (mesmo que especialmente a ele), mas também aos diversos presidentes americanos, a órgãos como a CIA e até mesmo a Hollywood. Todos eles deturparam e se apropriaram dos ideais, pautas, símbolos e, até mesmo, de nomes e heróis dos movimentos revolucionários.

Comecemos pelo herói: o venerado Martin Luther King Jr. Um pouco antes de sua morte, o grande líder do Movimento por Direitos Civis começava a adotar uma perspectiva mais radical:

King disse aos repórteres: “Nosso programa precisa de uma redistribuição de poder econômico”. Ele explicava que os negros deveriam ajudar a liderar a luta “para reformar a estrutura do racismo imperialista por dentro”. Um artigo do New York Times publicado antes de sua morte explicava que King tinha “começado a acreditar que guerra e pobreza eram questões inseparáveis”. Os planos de King “eram calculados para atrapalhar qualquer paz de espírito que o presidente tenha nesses dias”. King estava liderando planos para uma marcha inter-racial na capital da nação, que iria mobilizar milhares de pessoas pobres e seus apoiadores para “reestabelecer que o problema real não é violência ou não violência, mas pobreza e negligência”. A insurgência persistente de King irritou o governo Johnson, que tinha apoiado as recentes vitórias dos direitos civis. Apesar de terem trabalhado juntos, o Dr. King e o presidente Johnson estavam “praticamente sem contato desde que o Dr. King começou a condenar a política do governo no Vietnã, dois anos atrás” (BLOOM; MARTIN, 2013, p.116-117, tradução nossa).

Enquanto King se contentava com mudanças estritamente legais, seu programa foi abraçado (obviamente, frente à força ameaçadora do movimento negro e à necessidade de “acalmar seus espíritos”) pelo governo, mas quando o líder dos direitos civis começou a exigir mudanças reais, o apoio do governo cessou. Contudo, após sua morte:

[…] o establishment rapidamente deixou de lado sua ira e começou a colocar King como um mártir pela América. No dia do assassinato de King, o presidente Johnson discursou para a nação, pedindo a “todos os cidadãos que rejeitem a violência cega que atacou o Dr. King, que viveu pela não violência”. O presidente enfatizou as táticas da não violência de King e ignorou o caráter insurgente de sua liderança, apropriando o simbolismo da morte de King para a América: “Martin Luther King se junta aos outros mártires americanos na causa por liberdade e justiça”. […] Johnson apresentou King como um “mártir americano” que se sacrificou à causa da igualdade racial formal, abraçada pelo establishment e solidificada nas leis de 1964 e 1965. Todos os candidatos à presidência da época, incluindo o ex-vice-presidente republicano Richard Nixon, os senadores Robert Kennedy e Eugene McCarthy, e o vice-presidente Humphrey, foram à Atlanta para participar do funeral do Dr. King em 9 de abril […] Jovens ativistas no funeral reclamaram que os políticos estavam “atrás de votos” e chorando “lágrimas de crocodilo” (BLOOM; MARTIN, 2013, p.117-118, tradução nossa).

Assim:

O presidente Johnson e o establishment americano queriam apropriar King como um mártir americano: um símbolo poderoso para a democracia americana. Membros do establishment rapidamente esqueceram da insurgência continuada de King e de seus esforços para tornar a luta mais abrangente. Ao invés disso, eles queriam fazer de King um dos seus, apoiando o progresso racial para reafirmar as credenciais democráticas dos Estados Unidos (BLOOM; MARTIN, 2013, p.121, tradução nossa).

O mesmo ocorreu com o Coletivo Combahee River (CCR), um grupo de militantes negras e lésbicas formado em Boston em 1975. Apesar de introduzir a expressão “política identitária”, a proposta do CCR era revolucionária e completamente avessa ao que essa expressão passou a representar (a partir da apropriação do movimento):

Como Salar Mohandesi escreveu: “o que começou como uma promessa de superar algumas limitações do socialismo, de modo a construir uma política socialista mais rica, mais diversa e inclusiva”, terminou “sendo aproveitado por aqueles com uma política diametralmente oposta àquelas do CCR” (HAIDER, 2019, p.33-34).

E quem nunca viu o filme “Pantera Negra”, que se apropria completamente do nome de um movimento autodenominado marxista-leninista, com influências gritantes de Mao Zedong, Frantz Fanon e Che Guevara para, também, emplacar o discurso contrário do que era defendido pelo partido?

Pantera Negra é descaradamente monarquista. Seu futurismo semifeudal é combinado com o nacionalismo cultural historicamente associado não com o nominalmente representado Partido dos Panteras Negras, mas com seu adversário, a Organização US, de Ron Karenga, contra quem os panteras negras tiveram um confronto armado na UCLA [Universidade da Califórnia em Los Angeles], levando às mortes dos panteras de Los Angeles, o Capitão Bunchy Carter e o Ministro John Huggings. […] [No filme] Nosso herói é o monarca T’Challa, cuja força física induzida por drogas o permite funcionar como um super-herói isolacionista, mantendo a riqueza de Wakanda escondida do resto do mundo. Nessa missão ele se apoia em uma variedade de dispositivos tecnológicos reminiscentes do agente imperialista James Bond. Mas a monarquia de Wakanda tem um segredo tórrido: o pai de T’Challa assassinou seu irmão N’Jobu, que enquanto estava em uma missão em Oakland – a cidade onde Huey P. Newton e Bobby Seale fundaram o Partido dos Panteras Negras em 1966 – chegou à conclusão de que a tecnologia avançada de Wakanda deveria ser usada para libertar as pessoas negras ao redor do mundo da pobreza e da opressão. Porque isso era uma ameaça à soberania nacional de Wakanda, N’Jobu foi eliminado e seu filho [Killmonger] foi abandonado para crescer sem seu pai (HAIDER, 2018, tradução nossa).

O nacionalismo cultural, representado por T’Challa, o monarca que tem como objetivo defender a glória de sua nação, mantendo sua tecnologia e suas riquezas para si, se contrapõe ao que os Panteras Negras (reais) chamavam de nacionalismo revolucionário, que tem como horizonte político a revolução internacional. A lógica de T’Challa, completamente oposta à lógica revolucionária do partido que, supostamente, teria sido a inspiração do herói, é completamente compatível com o “amuleto todo poderoso da branquitude” de Coates (autor que, inclusive, segundo o diretor Ryan Coogler, foi uma das grandes inspirações do filme) que, por meio da afirmação da “negritude”, da representação da riqueza e inteligência negra, apela para uma mítica cultura africana para afirmar (no verdadeiro espírito do “yes, we can” de Obama) que “sim, nós podemos” (fazer parte do sonho americano).

Essa lógica (do que os Panteras Negras chamavam de “nacionalismo cultural”) é abordada pelo revolucionário da Guiné-Bissau e Cabo Verde, Amílcar Cabral, que a classifica como um “retorno à origem”. Seu maior problema, segundo o autor, é que isso pode ser “nada mais do que oportunismo político”, que “deixa intacta a diferenciação de classe interna à sociedade dos colonizados” (HAIDER, 2018, tradução nossa). Nas palavras da Pantera Negra Linda Harrisson, o nacionalismo cultural “se manifesta de muitas maneiras, mas todas essas manifestações estão essencialmente baseadas em um fato: uma negação e uma ignorância universal das atuais realidades políticas, sociais e econômicas e uma concentração no passado como quadro de referência”, ignorando “o político e o concreto” e se concentrando “no mito e na fantasia”. (In: Raça, classe e revolução, 2020, p.107-108).

Aqueles que acreditam na teoria do “sou negro e orgulhoso” acreditam que existe uma dignidade inerente em deixar o cabelo ao natural, que um bùbá [6] faz de um escravo um homem e que uma linguagem comum, o swahili, faz com que todos nós sejamos irmãos. Essas pessoas normalmente querem uma cultura enraizada na cultura africana, uma cultura que ignore a colonização e a brutalização que foram parte e parcela, por exemplo, da formação e do surgimento da língua swahili. […] Citando Fanon: “Querer apegar-se à tradição ou reatualizar as tradições abandonadas é ir não somente contra a história mas contra seu próprio povo!” (In: Raça, classe e revolução, 2020, p.107-108).

A África não é uma entidade cultural unitária e homogênea e seu povo, oprimido e explorado, luta constantemente por libertação. Ao apagar essas contradições, representando uma “cultura” fantasiosa e idílica, essa luta é esquecida e, na prática se volta, como diz Fanon, “contra seu próprio povo”. Não existe apenas uma África, e deve-se escolher qual África está sendo defendida e representada, em sua especificidade histórica e política. Cabral afirmava que a única forma de fazer com que o “retorno à origem” se transformasse em um movimento revolucionário seria justamente na aproximação com as massas, ou seja, na aproximação com a África insurgente, que lutava por liberdade, que era anticolonial e anti-imperialista. Como defendia Fred Hampton:

[…] se você quiser se vestir como pessoas africanas, então você tem que se vestir como os angolanos ou as pessoas em Moçambique. Essas são as pessoas que estão fazendo algo. Você tem que se vestir como as pessoas que estão em lutas de libertação.  Mas não, você não quer se africanizar desse jeito, porque quando você tem que se vestir como alguém da Angola ou de Moçambique, depois que você vestir o que quer que seja que você veste, sejam trapos ou algo da Saks Fifth Avenue, você tem que colocar umas bandoleiras e umas AR-15, umas 38; você tem que pôr umas Smiths e Wessons e umas Colt 45, porque é isso que eles estão usando em Moçambique. […] Nós sabemos que poder político não vem da manga de um dashiki [7]. Nós sabemos que poder político vem do cano de uma arma. (HAMPTON, 1969, tradução e grifos nossos).

Ninguém, segundo Cabral, consegue ter plena consciência de sua própria identidade, afinal “a identidade se passa no nível do imaginário, ou da ideologia” ela é sempre “incompleta, parcial e falsa”, pois “deixa de fora ou não compreende a influência decisiva das condições sociais nos conteúdos e na forma da identidade” (HAIDER, 2018). Ao ignorar esse fato, a história e os processos de criação e modificação da cultura, o “retorno à origem” é oportunista justamente porque se utiliza de uma imagem distorcida da África, sem compreender ou apoiar a luta do povo africano, para se reafirmar, perante o Estado, como negro e, assim, conseguir certas reformas, seu “pedacinho do sonho americano”. Além disso, se a prioridade é o resgate e a preservação apenas da identidade cultural africana, então é possível manter a cultura viva e as pessoas mortas: invadir, colonizar, espalhar o capitalismo e a democracia americana pelo mundo. É possível disparar mísseis vestindo um dashiki.

No filme da Marvel, a preservação da monarquia de Wakanda (na exaltação de uma “cultura africana” literalmente fictícia), de sua cultura e riqueza material significou, necessariamente, a morte do revolucionário N’Jobu e de seu filho Killmonger e a condenação de todos os negros e oprimidos do resto do mundo à exploração e miserabilidade eterna. É na preservação do mito que se sacrifica a realidade.

O que aconteceu tanto com Martin Luther King, como com o Coletivo Combahee River e o Partido dos Panteras Negras, são alguns exemplos da deturpação e apropriação neoliberal para a defesa do sistema capitalista e do imperialismo americano, esquartejando e fagocitando as alternativas revolucionárias à ordem vigente, a partir da lógica da (transfigurada) “política identitária”. Desse modo, política identitária pode ser definida como: “[…] a neutralização de movimentos contra a opressão racial. É a ideologia que surgiu pra apropriar esse legado emancipatório e colocá-lo a serviço do avanço das elites políticas e econômicas” (HAIDER, 2019, p.37, grifos nossos).

O apagamento da história dos movimentos comunistas do país, assim como a apropriação e neutralização de suas pautas está no cerne da perspectiva utilizada por Clinton e, mais abrangentemente, pela “esquerda progressista” (tão esquerda e tão progressista como Clinton) relacionada ao partido democrata. Essa perspectiva se baseia na performance, na identidade e na representação das minorias oprimidas, sem ameaçar a estrutura social americana, sem promover nenhuma mudança real no status quo e fornecendo uma chave explicativa que (re)define e neutraliza (tal como Clinton fez com seus adversários, como Johnson fez com King, como Hollywood fez com os Panteras Negras), em seus próprios termos, qualquer movimento antissistêmico. A política identitária adotada por Clinton e seu descolamento das pautas “econômicas” ou “de classe” à la Sanders não é acidental:

Se você ouvir com cuidado, você vai perceber que a Hilary Clinton ainda está cantando a mesma música [de Bill Clinton] em um ritmo vagamente diferente. Ela está argumentando que não devemos nos deixar seduzir pela retórica de Bernie porque devemos ser “pragmáticos”, “enfrentar a realidade política” e não ficar tentados a acreditar que nós podemos lutar por justiça econômica e vencer. Quando políticos começam a falar que “não é realista” apoiar candidatos que querem construir um movimento por maior igualdade, salários justos, saúde pública e para acabar com o controle corporativo de nosso sistema político, é melhor sair da sala. (ALEXANDER, 2016, tradução nossa).

E como demonstra o governo de seu excelentíssimo marido: ao adotar um discurso performaticamente progressista e inclusivo, as práticas do governo para manter a ordem vigente (e, assim, a exploração e opressão que sustentam o Estado americano e o sistema capitalista) são absolvidas, e a luta para a mudança real é estrangulada. É por trás das máscaras de Madre Teresa que se encontram os piores demônios.

O oportunismo político dessa perspectiva fica evidente quando consideramos que “[a] transformação mais significativa na vida dos negros nos últimos cinquenta anos foi o surgimento de uma elite negra, fortalecida pela classe política negra, que tem sido responsável por administrar cortes e impor orçamentos escassos nas costas dos eleitores negros” (TAYLOR apud HAIDER, 2019, p.44).

Esse fenômeno é proposital: para que a política identitária pudesse sustentar a si própria e ao império norte-americano, era necessária a famosa “representatividade” do grupo oprimido em lugares econômica, ideológica e politicamente poderosos. Como afirmou Obama, “por toda a minha vida, eu nunca esquecerei que em nenhum outro país do mundo a minha história é possível” (OBAMA apud TAYLOR, 2016, p.17, tradução nossa). Desse modo, enquanto os nacionalistas revolucionários foram perseguidos, reprimidos, encarcerados, torturados e assassinados, uma parcela da população negra subia ao poder criando, reproduzindo e solidificando a política identitária que tomou seu lugar.

Intelectuais e ativistas permitiram que a política fosse reduzida ao policiamento da nossa linguagem, à questionável satisfação de provocar culpa nos brancos, enquanto as estruturas institucionais de opressão racial e econômica permanecem. Como James Boggs refletiu em 1993: “Antes do Civil Rights Act de 1964, podíamos ter o dinheiro, mas não podíamos nos hospedar na maioria dos hotéis ou comprar uma casa fora do gueto. Hoje a única razão de não podermos nos hospedar num hotel ou comprar uma casa decente é porque não temos o dinheiro. Contudo ainda estamos focados na questão racial, e isso está nos paralisando”. (HAIDER, 2019, p.45-46).

Essa não foi uma “benção divina” que realizou os sonhos mais perturbadores dos democratas e sua retórica identitária, mas um processo histórico planejado e construído pelo Estado norte-americano.

Em 1969, o Partido dos Panteras Negras publicou uma matéria no seu jornal, que denunciava a criação de organizações de intelectuais negros financiadas pela CIA.  Uma dessas organizações era a “Sociedade Americana pela Cultura Africana (AMSAC), composta por importantes estudiosos, escritores, artistas e profissionais americanos negros”, sendo “o mais prestigiado e articulado de todos os grupos negros interessados em promover a cultura africana e criar laços entre os negros dos EUA e seus irmãos africanos.” Essa organização havia sido formada para agir como o meio de contato entre o movimento negro nos EUA e os movimentos revolucionários na África.

A AMSAC declarava como seu propósito a intenção “de estudar os efeitos da cultura africana na vida americana; de examinar as contribuições culturais dos povos africanos para suas sociedades; de avaliar as condições que afetavam o desenvolvimento da cultura nacional e universal; de cooperar com organizações internacionais com a visão de… trocar informações sobre a cultura africana…” (In: A CIA como um empregador democrático, 2021).

Todavia, Harold Cruse, autor de “A Crise do Intelectual Negro” afirmou que foi convidado a participar do grupo “mas eu me desanimei rapidamente quando eles começaram a ir para outra direção política”.

A AMSAC “[e]ra composta por um bando de carreiristas, operadores altamente articulados de pouca convicção, e líderes do establishment intelectual integracionista negro. Eles eram liberais sem base e sua legitimidade vinha completamente da sua associação com grupos estabelecidos, como a AMSAC. Eu até duvido que eles foram capazes de planejar esse tipo de operação sozinhos” (In: A CIA como um empregador democrático, 2021).

As organizações da CIA tinham o intuito de financiar concepções de negritude que não ameaçassem o sistema, assim como de manter os movimentos negros africano e americano sob vigilância constante, passíveis de serem controlados.

[A] CIA teve, prematuramente, interesse em tentar controlar as elites políticas e culturais que estavam surgindo e garantir ao máximo que suas preocupações ficassem a uma distância segura da revolução. A agência viu o nacionalismo cultural e as novas noções de “negritude” como alternativas ao tipo de cultura revolucionária exigido por revolucionários como Frantz Fanon, que uma vez disse: “É em torno da luta do povo que a cultura negra africana ganha substância e não em torno dos cantos, dos poemas e do folclore”. […] A CIA não se tornou o principal empresário da cultura negra pelo prazer estético da experiência. A grande questão durante o auge da AMSAC e organizações similares era o que a independência formal africana realmente significaria quando se tornasse realidade. E, em algum momento, a CIA decidiu que o desenvolvimento de um nacionalismo cultural era imprescindível para os interesses dos Estados Unidos na África. Era essencial não apenas como um meio de manter as energias culturais em linha, mas principalmente (por mais que estejam interligados) para canalizar a força explosiva do próprio nacionalismo em direções convenientes aos EUA. A onda de descolonizações que estava passando sobre o continente poderia abrir o caminho para o novo império americano quebrar o antigo monopólio da ordem europeia que havia controlado a África. Ou poderia produzir o tipo de nacionalismo radical que iria proteger a nova porta aberta com uma vigilância impenetrável, e poderia até fazer acordos com os poderes comunistas. Então a CIA fez tudo o que podia para promover um tipo de nacionalismo na África que ficaria satisfeito com a remoção das formas mais óbvias de dominação estrangeira; um em que a preocupação por integridade cultural não reforçasse, mas substituísse as demandas por autonomia básica, tanto econômica quanto política (In: A CIA como um empregador democrático, 2021).

A substituição da luta revolucionária internacional pela retórica identitária do partido democrata é o grande segredo da manutenção da dominação, opressão e exploração dos Estados Unidos sobre a massa de trabalhadores de seu próprio país, assim como sobre o resto do mundo. O delírio neoliberal de que a política identitária é o mecanismo legítimo e efetivo de oposição às opressões do sistema capitalista é a verdadeira comédia (e tragédia) do nosso tempo.

Ta-Nehisi Coates, que ficara tão empolgado com a narrativa do filme “Pantera Negra”, afirmando que “não havia percebido o quanto precisava do filme, faminto por um mito que abordasse o sentimento de separação e reconexão” (COATES apud HAIDER, 2018, tradução e grifos nossos), se apegou tanto às suas fantasias liberais que perdeu completamente as massas de vista, e alucina um passado que nunca existiu, desconhecendo o racismo estrutural ao reduzi-lo à identidade (una, coerente, trans-histórica – como a descrita em sua metáfora do “amuleto da branquitude” – e tão fictícia quanto Wakanda):

Nós Estivemos Oito Anos No Poder, o título do novo livro de Coates, é revelador – o novo hino nostálgico da tribo meritocrática negra. Implícito – ou talvez explícito – é que os afro-americanos realmente tiveram poder político durante a presidência de Obama. […] Mas quem somos “nós”? Claramente não são os cidadãos de pele negra que desproporcionalmente povoaram os bairros miseráveis pelo país todo, inclusive em lugares a minutos de distância da residência onde a família Obama morou por oito anos. O “nós” de Coates – os minions de Obama, as líderes de torcida de Obama e os aspirantes a Obama de pele negra – estão em uma negação profunda sobre sua existência. Sugerir que “nós estivemos oito anos no poder” é quase cômico – uma piada cruel. Esse título diz mais sobre a classe de Coates e sua miopia política do que sobre a realidade da maioria dos afro-americanos (NIMTZE, 2017, tradução nossa).

Assim, Coates acaba, na prática, defendendo o partido democrata que, apesar de ter o discurso florido e perfumado, é o reflexo de Hilary Clinton, sua imagem cuspida e escarrada, com seu racismo mais apresentável, porém mais letal. E ao fazê-lo, toma parte na comédia neoliberal, assumindo sua posição ao lado dos “brancos do bem”, do “progresso”, do partido democrata, da família Clinton. E a sádica piada democrata contenta-se em ironizar seus vilões imaginários, tirar sarro do absurdo narrativo que ela própria gerou, da figura esdrúxula do grande vilão republicano, o “bobo da corte” da cultura pop americana, com sua pele laranja, seu cabelo cor de água de salsicha e suas declarações chocantes. Se, como afirmou Stephen Fry, “o herói americano é um piadista que é superior ao seu material e aos idiotas que estão ao seu redor” (FRY, 2012), então a insistência da perspectiva democrata em se instaurar como a grande heroína da “América”, a legítima e autêntica salvadora da pátria, não poderia levar a uma postura diferente: ao utilizar-se da ironia e se colocar acima de todos os outros, os “meros mortais”, delicia-se com o ridículo da tragédia de seu povo. Como afirma Alenka Zupančič, “Se você está do lado da ironia, então você nunca pode estar no lado errado, são sempre os outros, os “crentes ingênuos”, os “tolos” que estão errados” (ZUPANČIČ, 2020). E ao encher a audiência com “votos democratas” e fazer piadas sobre Trump, seu “malvado favorito”, seu “vilão de estimação”…

[…] você brinca contra o pano de fundo do consenso geral (que cuida para nunca perturbar), rindo da estupidez dos outros. O efeito disso é amplamente conservador, mesmo se o teor for progressista. Desfrutamos do “nosso Trump”, assim como gostamos de não ser Trump, estar do lado certo da divisão[…] Poucos minutos de ridicularização de Trump por dia parece ser o suficiente para preencher nossa agenda política ou nosso dever. Não há nenhum questionamento (cômico) real sobre o que faz Trump possível e o que o sustenta, ao contrário; ele é apresentado como o único e principal problema. Sem ele a América seria grande novamente, para pegar emprestado seu próprio slogan (ZUPANČIČ, 2020).

Enquanto os grandes heróis democratas se divertem em sua comédia, o povo se afunda em sua tragédia. É ao som dos risos de Clinton que a América assassina seus inimigos.

Portanto, deixemos bem claro: a política identitária não é a luta por libertação do povo, do mesmo modo que Clinton não é a defensora legítima dos oprimidos, sua líder na luta por libertação. A política identitária é, ao contrário, uma prática política que funciona dentro da institucionalidade do Estado-nação em uma demanda por inclusão e restituição. Assim como Clinton, ela obscurece a realidade social e seus determinantes estruturais a partir da criação de outros “vilões”, acobertando o Estado no qual a opressão e a exploração do povo se apoia e se preserva. A política identitária se baseia na defesa performática e discursiva dos oprimidos (como sugere o clamor por “representatividade”) para preservar a estrutura social que mantém, reproduz e produz as diferentes formas de exploração e opressão. Para tal, ela se apropria, deforma, subverte e deturpa as lutas antissistêmicas reais, oprimindo-as “a tiro, porrada e bomba”, utilizando-se de suas pautas, desfiguradas e transfiguradas em disfarces para encobrir suas ações reais, contra os indivíduos que, pelo menos discursivamente, se pretende defensora. Tal como Hilary Clinton (e agora Biden), vestida de Martin Luther King ou de Pantera Negra, o antirracismo performático convive muito bem com a defesa do status quo e do imperialismo americano e com o genocídio de povos racializados dentro e fora do país. Um dos maiores delírios neoliberais é que a política identitária é o legado da luta do povo quando, na verdade, ela é propriedade do Estado (norte-americano).

Referências Bibliográficas:

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ZUPANČIČ, Alenka. The odd one in: On comedy. Massachussets: MIT Press, 2008.

[1] Termo utilizado ironicamente pelo republicano Ronald Reagan em sua campanha eleitoral, tentando passar a ideia de que o estado de bem-estar social estaria falido. Para comprovar seu argumento, o ex-presidente dos EUA falava da “rainha do bem-estar social”, que, segundo ele, havia “atingido o recorde” de benefícios acumulados desonestamente, utilizando “80 nomes, 30 endereços, e 15 números de telefone [diferentes]” e atingindo uma renda líquida de “$150.000 por ano” (TAYLOR, 2016, tradução nossa). Segundo Keeanga Yamahtta Taylor (2016), apostar na imagem de pessoas negras preguiçosas vivendo às custas dos impostos pagos pelos trabalhadores (“de bem”) era uma “isca racista comum” para cativar o “eleitorado conservador branco”.

[2] “As Aventuras de Huckleberry Finn” é uma obra literária escrita pelo autor norte-americano Mark Twain. A história se desenvolve no Mississipi, em um cenário pré-guerra civil, 20 anos antes da publicação, e é considerada uma sátira do comportamento racista relacionado com o sul dos EUA. Alvo de críticas literárias, por mais que o protagonista e o teor do livro sejam considerados como antirracistas, o uso de estereótipos racistas e de gírias ofensivas como a palavra “nigger” são frequentemente condenados.

[3] Crèvecoeur foi um soldado do governo francês na Guerra Franco-Indígena, um conflito ocorrido entre 1754 e 1763 entre os britânicos e os franceses nas suas colônias na América do Norte, que fez parte da Guerra dos Sete Anos. Depois da guerra, ele se mudou para Nova York e alterou seu nome para J. Hector St. John e, com o sucesso de seu livro Letters from an American Farmer e de sua carreira de diplomata nos Estados Unidos, ele não só fez farte da exclusiva Sociedade Filosófica Americana, como teve uma cidade em Vermont (St. Johnsbury) nomeada em sua homenagem.

[4] Em inglês, Letters from an American Farmer (1782), segundo Nell Irvin Painter (2010), inaugurou a tradição de identificar o “americano” como descendente de europeu, comparando a Europa (cindida por classes distintas; a terra da opulência aristocrata e da miséria camponesa) com os Estados Unidos (igualitário; a terra da mobilidade social e da democracia).

[5] Flint, em Michigan, é uma cidade cuja metade da população é negra. Nimtze afirma que esse caso é “Um exemplo instrutivo” em referência ao “envenenamento do abastecimento de água da cidade por chumbo, iniciado sob uma administração republicana, mas efetivamente ignorado pelos democratas, incluindo a Casa Branca de Obama”, que “explica por que quase dois terços do eleitorado da cidade ficaram em casa no dia das eleições, em 8 de novembro de 2016” (NIMTZE, 2021).

[6] Bubá, em iorubá, designa uma peça de vestuário que cobre os membros superiores.

[7] O dashiki é uma peça de vestuário colorida masculina que cobre a parte superior do corpo, típica dos povos da África Ocidental.

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