Uma intervenção fiel para Junho de 2013

Por Daniel Alves Teixeira

O livro Arquitetura de Arestas de Gabriel Tupinambá e Edemilson Paraná propõe, a partir de discussões em que se engajaram inicialmente os próprios autores, uma espécie de mapeamento ou formalização de nosso atual terreno político, ou talvez antes, de nosso edifício político, na medida em que o terreno mesmo parece ser o atual momento econômico de avanço neoliberal e a progressiva periferização do mundo. Parte do livro é assim dedicado a tentar compreender como as transformações em um solo econômico que mais parece uma verdadeira areia movediça não só afeta e transforma os movimentos de esquerda (e também da direita), mas também exige deles reposicionamentos e mudanças de rotas inesperadas, com o surgimento de contradições inesperadas e obstáculos até então desconhecidos, frente ao que os mecanismos e formas políticas já conhecidos e existentes não parecem dar conta.

Um dos méritos do livro, no entanto, é fazer de si mesmo uma tentativa de reflexão interna a esse mesmo momento, ou seja, sem excluir a si próprio do terreno pantanoso que procura descrever, deixando assim, diante da evidente complexidade de nosso momento, de apontar soluções fáceis, práticas ou teóricas, reconhecendo que a transformação social sempre depende, como sabemos já há algum tempo, dos próprios movimentos políticos. Sua contribuição se sobressai assim em sua capacidade de tornar visíveis certos aspectos, problemas ou questões com que a esquerda tem se deparado cotidianamente e que, até o momento, tem carecido de uma nomeação mais precisa, seja pela pela falta de meios para tanto, ou mesmo pela desinteresse ou angústia de enfrentar as novidades de nosso momento, acreditando que precisamos tão somente reforçar os caminhos e as formas já conhecidas para derrotar, ou ao menos refrear, o avanço das forças reacionárias.

Uma dessas nomeações, e talvez seja realmente a nomeação do livro, é a identificação das três correntes que atualmente compõem o espectro da esquerda no Brasil (e talvez além): a esquerda comunitária/”pós-moderna”, a esquerda institucional/”estadocêntrica” e a esquerda revolucionária/”tradicional”. Penso que dificilmente um militante dos movimentos de esquerda, ou mesmo um simples interessado, deixará de verificar em suas próprias experiências em debates, discussões ou organizações a veracidade da divisão que Paraná e Tupinambá propõe. As diferentes (di)visões de mundo, e consequentemente os diferentes problemas e conceitos políticos que cada corrente procura colocar em evidência no campo político são minuciosamente elaborados e formalizados pelos autores de Arquitetura de Arestas, que não buscam determinar, entre elas, qualquer hierarquia, mas antes demonstrar sua relevância e pertinência para o pensamento político em geral, embora entre elas existam certamente divergência, ou melhor, arestas.

E eu chamo de nomeação interveniente os conceitos desenvolvidos no livro justamente porque permitem uma elaboração ou formalização dessas experiências e arestas, como também de outras futuras, sem que se recaia em uma angústia paralisante, ou uma ignorância obstinada, em face das questões que hoje devem ser pensadas por qualquer movimento emancipatório. Convém, quanto a isso, lembrar que Paraná e Tupinambá não propõe de forma alguma que o tratamento das arestas que evidenciam deve se dar em direção à esperada unidade de esquerda. Além dos pressupostos que os próprios autores destacam e que vão na contramão de qualquer análise pela busca de uma unidade a partir da divisão (a primazia do múltiplo sobre a unidade, sobretudo, que esvazia a pressuposição de que “haveria uma fonte única daquilo que chamamos de ‘esquerda’ na modernidade”), uma nomeação não é jamais uma solução do problema, mas antes o encontro de uma capacidade de tornar pensável, de dar visibilidade e forma para problemas que não sabíamos que existiam ou que fingíamos não existir. Não se deve, portanto, buscar uma universalização precipitada da nomeação por si mesma, procurando em toda parte sinais da divisão e seu rápido tratamento. Antes, uma nomeação possibilita uma suplementação ao pensamento, adiciona uma possibilidade ou uma forma até então ausente, cuja validade e alcance deve ser verificada diante daquilo que a experiência traz à tona. Não se trata de lamentar a divisão real da esquerda, mas antes de tomar essa mesma divisão enquanto um princípio para o pensamento que potencializa uma nova abordagem de nossas situações concretas.

Há uma diferença importante entre tomar a divisão da esquerda como uma simples situação “real”, a ser enfrentada através dos mecanismos ou formas teórico-práticas que conhecemos ou elaboramos, e introduzir essa mesma diferença nestes mecanismos para então tentar reelaborar a própria “caixa de ferramentas” com que lidamos com as situações “reais”. No livro, essa questão é analisada através de uma importante discussão acerca do uso dos modelos, que merece atenção especial do leitor, já que é a própria posição que os autores adotam diante da controvérsia acerca da possibilidade de uma modelagem social que torna a abordagem do livro não só uma teoria da esquerda, mas de esquerda. No linguajar de Sylvain Lazarus, teórico francês invocado no livro, se trata de uma proposta de abordagem política em interioridade, por mais que o caráter aparentemente abstrato do livro possa fazer acreditar não ser este o caso. No entanto, e permanecemos com Lazarus, na política em interioridade o pensamento é sempre relação do real, ou seja, a abstração (talvez fosse melhor chamar de formalização) é a forma pela qual podemos tocar aquilo que na realidade é seu fragmento do real.

Agora, se a divisão da esquerda é uma das nomeações do livro (deixarei em aberto a questão de saber se existem outras), e se como sugeri acima ela não é somente o reconhecimento de uma divisão “real” mas a introdução de um novo divisor ou princípio no pensamento, exatamente do que ela é uma nomeação? Aqui entra então, para mim, a função não tão evidente de Junho de 2013 no livro. De fato, os autores, em sua conclusão, nos lembram que o livro e as ideias nele presentes foram desenvolvidas a partir das experiências e vivências que dois eventos marcantes de nossa época lhes proporcionaram – a crise de 2008 e Junho de 2013. Preciso dizer que Junho de 2013 teve igualmente um efeito marcante sobre mim. Então estudante de direito, já no 5º ano da formação, me interessava então pela filosofia, sobretudo pelas questões metafísicas de Kant (já que Kelsen, importante filósofo do direito, era tido como um neokantiano), ao mesmo tempo que Nietzsche, existencialistas como Sartre e a psicanálise freudiana me empurravam em outras direções. Já conhecia e apreciava as críticas de Marx ao capitalismo, mas a política propriamente dita, até então, era tida por mim como algo acessório ou um desenvolvimento filosófico secundário, senão mesmo um tema mais ou menos esgotado, dada a aparente consolidação das formas democráticas e do Estado de Direito, ao menos no Ocidente.

Mas Junho de 2013 modificou drasticamente estes caminhos, demonstrando a força não só da política, mas também da eventualidade, para o pensamento em geral. Após este momento de efervescência político-social, me engajei em vários debates distintos, escutando diversas versões, interpretações e posicionamentos acerca daquilo que se passava. Como rescaldo desses debates e visando mesmo seu prolongamento fecundo, junto de outros companheiros idealizei e ajudei na construção deste blog LavraPalavra, como forma de propaganda e disseminação da hipótese comunista, como também ingressei no Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia, onde também coletivamente buscávamos orientação político-ideológica e possibilidades de novas formas organizacionais para os nossos tempos. Assim, a política, de um interesse secundário e meramente teórico, se tornou parte fundamental de minha vida.

Agora, se de um lado Junho de 2013 proporcionou a emergência e a experiência viva da busca de novos caminhos políticos, não é menos verdade que a situação como um todo parecia cada vez mais decepcionante. Os eventos, ao menos no nível estatal, que se seguiram à Junho de 2013 – o golpe de Estado que derrubou Dilma Rousseff, a ascensão do bolsonarismo e do neo-fascismo – tornaram este acontecimento algo um tanto obscuro, e mesmo lamentável ou “reacionário” do ponto de vista de alguns da esquerda. É assim que Junho de 2013 hoje nos parece distante ou decepcionante: ou um surto revolucionário fugaz e sem direção, ou o nascedouro de uma extrema direita que tomou conta de nossa frágil democracia.

Arquitetura de Arestas, no entanto, permite àqueles que foram arrebatados pelas possibilidades de um evento inesperado permanecerem de alguma forma fiel à Junho de 2013. Fidelidade em seu sentido badiouniano, ou seja, não como simples adesão irrefletida ou nostálgica ao acontecimento, mas como paciente inscrição da novidade, tanto no pensamento como na prática. Se a aparente urgência das situações atuais, notadamente o enfrentamento do neo-fascismo que toma conta de nossos aparelhos de Estado, torna praticamente uma heresia se perguntar acerca das possibilidades abertas e do destino de acontecimentos de quase dez anos atrás, o seu simples encobrimento em favor do momento não nos parece oferecer qualquer construção duradoura ou emancipatória verdadeira, como, no fundo, todos sabemos. 

Pode então parecer anacrônico falar hoje, quase dez anos depois, de uma fidelidade à Junho de 2013. Mas penso ser inegável que aquilo que hoje vivemos parece ainda ser efeitos daqueles dias turbulentos e incertos, e penso que as chaves de leitura apresentadas por Arquitetura de Arestas nos permitem desenvolver suas consequências que ainda carecem de real enfrentamento e em busca de seu potencial emancipatório, conceituando e formalizando de forma produtiva as fraturas e orientações díspares que Junho de 2013 expôs, e que até agora a esquerda só soube lamentar ou esconder.  

Para além dos obscurecimentos e dos reacionarismos oportunistas, das disputas eleitoreiras e politiqueiras em torno de seu significado, em Arquitetura de Arestas Junho de 2013 toca em qualquer coisa de seu real.

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