Sujeito de direito: um enfoque pachukaniano

Por Thiago Andrade Cardoso dos Santos

Se trata de uma exposição acerca do conceito de sujeito de direito na obra do jurista soviético Evguiéni Bronislávovitch Pachukanis, demonstrando que, a contrario sensu do que é exposto por muitos dos juristas da ordem burguesa, se trata de uma categoria jurídica criada em determinado momento histórico, para atender determinadas necessidades materiais e não uma peculiaridade inata ao homem, que o acompanha do seu nascimento até a sua morte. Desse modo, ressalta-se nessa análise o caráter da forma-jurídica como uma implicação da forma-mercadoria, sendo, portanto, o direito uma peculiaridade da ordem capitalista, não existindo em sociedades anteriores com outros modos de produção, tampouco possível de existir na futura sociedade comunista. Assim, sendo a ordem jurídica um elemento de sustentação da sociedade capitalista ´´os trabalhadores em luta, quando reivindicam melhores salários, melhores condições de trabalho na fábrica, mais garantias e mais direitos, reivindicam algo contra os capitalistas que lhes empregam, mas reivindicam mais da mesma lógica exploratória que separa a sociedade em classes´´ (Alysson Leandro Mascaro, p.51).

  1. Introdução

.A categoria do sujeito de direito, visto por E. B. Pachukanis como a categoria fundamental da ordem jurídica, que não necessita de nenhuma outra mediação para sua compreensão e não pode ser decomposto em nenhuma categoria inferior, é vista, principalmente pelos jusfilósofos do direito natural, como algo inato ao ser humano desde os primórdios, sendo irrelevante qualquer aparato estatal para garantir sua existência, visto ser anterior e inato ao ser.

Contudo, uma análise materialista, histórica e dialética expõe todas as suas contradições, origem histórica e a necessidade material que o fez surgir, sendo um produto do meio, que nasce em razão das mudanças na sociedade após o fim do período feudal de produção, devendo-se combater a ideia de um sujeito de direito anterior a sociedade capitalista, ao modo de produção burguês e – ainda mais evidente – anterior e independente do aparato do estado.

Assim, a categoria do sujeito de direito – que equipara todos na sociedade – atende as necessidades da burguesia no poder, de modo que permite (em correspondência com o estágio de desenvolvimento do capitalismo) a generalização da troca na recém nascida sociedade capitalista, algo até então inexistente, seja no período feudal, no escravismo, ou qualquer outro modo de produção anterior ao capitalismo.

Por isso, ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor, o homem adquire um valor de sujeito de direito e se torna portador de direitos. (TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO, 2017, p. 120).

2. O sujeito de direito na concepção burguesa

O entendimento dos formuladores teóricos do direito, após e previamente a ascensão da burguesia ao poder, apesar das incompatibilidades pontuais que possam vir a ter, convergem amplamente em um fator: não compreende o caráter histórico da forma jurídica e, consequentemente, dos seus conceitos.

Desse modo, o sujeito de direito, átomo da forma jurídica que não pode ser decomposto em nenhuma outra categoria jurídica, pelos olhos do direito positivo contemporâneo é entendido como a capacidade de possuir direito e obrigações. O código civil brasileiro de 2002, em seu art. 1º diz que ´´toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil´´ e formulações doutrinárias posteriores, com adesão da jurisprudência pátria, entende haver dois tipos de capacidade: de direito e de fato ou de exercício. A primeira, que se refere diretamente ao citado art. 1º, é a aptidão de possuir direito e obrigações e não pode ser negada a nenhum indivíduo, seja qual for a sua situação social, física, etc.; já a segunda, refere-se à capacidade de exercer esses direitos pessoalmente, podendo um indivíduo ser plenamente capaz, relativamente incapaz ou absolutamente incapaz, em razão de condições como desenvolvimento mental, idade, etc.

Personalidade e capacidade completam-se: de nada valeria a personalidade sem a capacidade jurídica, que se ajusta assim ao conteúdo da personalidade, na mesma e certa medida em que a utilização do direito integra a ideia de ser alguém titular dele. (DIREITO CIVIL BRASILEIRO PARTE GERAL, 2022, p. 114).

De outro lado, porém, os jusfilósofos do direito natural, teóricos de uma classe ainda revolucionária, visando se libertar do feudalismo e da aristocracia, entendiam, em sua concepção de um direito inato aos homens, que a liberdade independeria da tutela estatal no ordenamento jurídico. O é homem livre por natureza, isto é, a liberdade, lema da revolução francesa, estava presente em todo indivíduo, esteja ou não reconhecida pela ordem jurídica. Essa concepção, valorosa para a revolucionária burguesia, era o fundamento teórico para a bandeira do sujeito de direito capaz de se autodeterminar, com condições de igualdade com todos os indivíduos, diametralmente oposto a o que ocorria até então na sociedade de castas e fragmentada pelo feudalismo.

Todos devem ser livres e ninguém deve atrapalhar a liberdade do outro […] cada qual possui seu próprio corpo […] como livre instrumento de sua vontade. (TEORIA DO DIREITO, 1812, in: TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO, p. 122).

Em suma, igualdade formal, equivalência universal entre sujeitos é o que define o sujeito de direito. Sem olhar a materialidade, classe social, renda, trabalho, formação, o sujeito de direito, na sua tentativa de igualar todos na sociedade, desmorona na mais simples visualização da realidade material, objetiva. Não é difícil atestar que não somos ´´todos iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza […]´´ como enuncia o caput do art. 5º da Constituição Federal brasileira de 1988. Tanto é assim, que doutrinas constitucionalistas mais recentes, de forma muito tímida, são obrigadas a fazer a distinção da igualdade, antes entendida como universal, em seu aspecto formal e material, fruto da incontornável contradição com a realidade.

3. CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO SUJEITO DE DIREITO

Contrariamente a o que desejava os filósofos do direito natural, ser sujeito de direito não é algo inato aos homens, que o acompanha em qualquer sociedade, tutelado ou não pela ordem jurídica. O ser como sujeito de direito tem lugar e condições de nascimento muito bem estabelecidos e derivam diretamente da materialidade, a qual impôs essa necessidade na nova sociedade que havia surgido.

Assim, no contexto anterior ao modo capitalista de produção, ainda na sociedade feudal, o que imperava eram sociedade estamentais, divididas em castas, com um direito para cada casta e, em nível macro, a fragmentação do território em feudos, que impossibilitava um ordenamento jurídico universal a mesma base territorial pátria, diferenciando-se o conteúdo normativo de feudo em feudo.

No mundo feudal, “todo direito era um privilégio” (Marx). Cada cidade, cada estado, cada corporação vivia segundo seu próprio direito, que acompanhava o indivíduo aonde quer que ele fosse. A ideia de um status jurídico formal comum a todas as pessoas, a todos os cidadãos, estava completamente ausente nessa época. A isso correspondia, no domínio econômico, uma economia fechada e autossuficiente, além da proibição de importar e exportar etc. (TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO, 2017, p. 126).

No contexto feudal, o vassalo que produzia na terra do seu suserano, com o uso de técnicas e equipamentos rudimentares, produzia para sua subsistência e – principalmente – para a subsistência do dono da terra onde ele plantava. O que ocorria nesse contexto socioeconômico é que a troca de mercadorias ainda era pouquíssimo desenvolvida, sendo feito apenas esporadicamente e, ainda assim, com base na troca de mercadorias ocasionalmente desejadas por ambas as partes do negócio (escambo), sem a presença ainda do equivalente universal do dinheiro.

Como essa ordem socioeconômica emergiu do declínio do Império Romano e do modo de produção escravista, sua estrutura era caracterizada por unidades territoriais dominadas por um senhor cujas terras eram cultivadas pelos servos e camponeses, que já não eram escravos como na Antiguidade Clássica. Nessas porções de terra, nos feudos, viviam tanto o senhor feudal e sua família (classe dominante) quanto os servos e camponeses (classe subalterna). A produção era feita pelos servos de maneira bastante rudimentar. Nesse sentido, quase tudo o que era produzido era fruto do trabalho dos camponeses que, por serem servos, tinham o dever e a obrigação de entregar parte da produção aos nobres; ou, então, tinham o dever de cultivar a parte da terra cuja produção caberia ao nobre. Tanto a divisão social do trabalho quanto as técnicas de produção eram bastante primitivas, portanto, a produtividade era bem pequena e, em consequência, a população camponesa vivia em condições bastante pobres, e todo o excedente era apropriado pelos nobres. (ECONOMIA POLÍTICA PARA TRABALHADORES, 2013, p. 26).

O que se atesta desde já é que o modo de produção da sociedade e o direito eram totalmente diferentes do que temos hoje de forma majoritária no mundo todo. Os indivíduos não estavam igualados universalmente pois não havia a necessidade social de tal e nem a possibilidade. A relação de vassalagem requeria como pressuposto a subordinação do servo camponês ao senhor feudal, que por ser dono da terra, mesmo não sendo o dono do servo -como ocorrera no modo de produção escravista – tinha a capacidade de determinar a vida ou morte do servo em razão da necessidade vital que esse possuía em relação a produção agrícola do local.

O posterior avanço da produção no sistema feudal, com o progressivo aperfeiçoamento das técnicas de produção e o consequente aumento de excedente da produção – que não seria utilizado para nada em termos vitais dentro do feudo – possibilitam o aumento das relações de troca, que se antes eram esporádicas e pontuais vão passar a ser mais comuns. Essa progressiva e vagarosa generalização da troca mercantil dentro da sociedade feudal, é o germe do que viria a ser o capitalismo.

Muito embora se constate esse atraso no processo produtivo, a paulatina e vagarosa evolução e desenvolvimento das forças produtivas vai permitir, ao longo de vários séculos, o aumento tanto populacional quanto da produção do excedente. Os camponeses e servos, assim como os artesãos e habitantes das pequenas vilas e burgos vão, aos poucos, aumentando a produção e extraindo um excedente maior que poderá ser levado à troca, nas feiras e vilas que se formam ao longo das estradas principais. O comércio, que havia praticamente desaparecido do interior do território europeu, mantendo-se ativo apenas nas bordas marítimas mediterrâneas e nas rotas orientais, começa a reaparecer e ganha maior relevância à medida que os excedentes produzidos nos feudos são encaminhados à venda nas feiras urbanas. Nos burgos e vilas, seus moradores participam da produção de manufaturas e artefatos artesanais que vendem àqueles que necessitam. Muitos desses burgos fazem parte do domínio de um feudo, contando com a proteção e seguindo as regras de dominação dos senhores feudais. (ECONOMIA POLÍTICA PARA TRABALHADORES, 2013, p. 27).

Sem se deter aos pormenores do aspecto histórico de formação do sistema capitalista, cabe salientar que a generalização da troca, isto é, a sua recorrência de modo ascendente torna cada vez mais difícil a coincidência da troca de uma mercadoria por outra mercadoria tal qual era na troca ainda incipiente dentro do feudalismo. É necessário um equivalente universal que iguale todas as mercadorias para dinamizar e facilitar a troca em qualquer região. Essa é a tarefa do dinheiro, facilitar a troca de mercadorias em qualquer lugar, resultando em uma universalização, interligando todas as regiões na troca mercantil. Fundamental as palavras da camarada Sofia Manzano sobre o tema:

Quando a produtividade aumenta e a troca se torna constante, fica cada vez mais difícil fazer coincidir os produtos a serem trocados. Por exemplo, uma comunidade que produziu um excedente de arroz e quer trocá-lo por carne, terá que encontrar uma comunidade que tenha produzido carne em excesso e queira, ao mesmo tempo, trocá-la por arroz. Se isso não ocorrer, a troca não se realizará e as duas comunidades ficarão com um excedente que não será utilizado. Portanto, o escambo é um tipo de troca muito primitiva que necessita da coincidência para ocorrer. (ECONOMIA POLÍTICA PARA TRABALHADORES, 2013, p. 19).

De modo irremediável, as contradições no seio da sociedade feudal, a luta de classes entre a classe dos comerciantes habitantes dos burgos e a aristocracia, resulta inevitavelmente em um combate violento por uma ruptura social. O sistema feudal de produção não mais é possível de sustentar a divisão estamental da sociedade, com amplos privilégios à classe aristocrata sobre a revolucionária e ascendente burguesia. Esse embate, como já bem tinha dito Karl Marx:

[…] opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito. (MANIFESTO DO PARPTIDO COMUNISTA, 2017, p. 22).

O capitalismo surge assim como necessidade histórica do embate de classes sociais em luta. Esse novo modo de produção, em uma superação dialética, transforma o antigo servo em trabalhador assalariado. Nesse contexto, de mão de obra assalariada é que surge o sujeito de direito, não estando mais o indivíduo sujeito a subordinação do senhor feudal, ou como patrimônio do escravista, mas sim em condições de igualdade com o senhor capitalista dono da fábrica na qual ele deposita grande parte do seu dia trabalhando.

Desse modo, em condições de igualdade, todos se encontram no grande mercado capitalista, cada qual com a sua mercadoria: o capitalista com os meios de produção e o trabalhador com sua mão de obra. Ainda fundamentados nessa igualdade, o trabalhador livremente decide que quer vender a sua mão de obra a determinado capitalista em troca de um salário fixo que garante a sua subsistência.

É nítido, desde já, não só a falácia da igualdade formal, mas também a necessidade do sujeito de direito na forma jurídica capitalista.

O servo está em uma situação de completa subordinação ao senhor justamente porque essa relação de exploração não exige uma formulação jurídica particular. O trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é mediada pela forma jurídica do contrato. (TEROIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO, 2017, p. 118).

Assim, a forma mercadoria e a forma jurídica se implicam. Enquanto a mercadoria possui seu equivalente universal no dinheiro, os indivíduos se igualam na condição de sujeitos de direito e como bem enuncia Karl Marx:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. (O CAPITAL, LIVRO I, 2011, p. 191).

Ou seja, a troca de mercadorias no mercado capitalista pressupõe a livre manifestação de vontade, ou, para trazermos a termos atuais, a autonomia das partes no contrato. Essa igualdade de condições, necessária para a livre troca é garantida pelo nosso objeto de estudo, isto é, o sujeito de direito, equivalente universal dos indivíduos.

4. O SUJEITO DE DIREITO EM PACHUKANIS

Visto sua necessidade histórica, de equivalência universal dos indivíduos tal qual a equivalência universal das mercadorias, o conceito de sujeito de direito tem nascimento na histórica determinado. Antes disso, não havia a necessidade de igualdade formal entre as pessoas, sendo, na verdade, necessária a expressa subordinação de um a outro, tal qual no sistema escravista.

Porém, salta-se aos olhos que a igualdade formal conferida pelo ordenamento jurídico, de isonomia perante a lei etc., não se reveste em seu conteúdo com tal aspecto. Isto é, a igualdade universal na sociedade burguesa, não passa de uma igualdade apenas formalista, de modo que permita ao trabalhador ´´livre´´ dispor sobre si, ao passo que materialmente, em seu conteúdo, essa igualdade não se atesta. Desse modo, na sociedade da troca mercantil generalizada – na sociedade capitalista – apesar de – em tese – sermos todos livres e iguais, enquanto o capitalista possui os meios de produção, o trabalhador só tem a oferecer a sua força de trabalho.

No mercado, aquele que obriga simultaneamente se obriga. Ele passa a todo momento da posição de credor à posição de obrigado. Dessa maneira, cria-se a possibilidade de abstrair as diferenças concretas entre os sujeitos de direitos e reuni-los sob um único conceito genérico. (TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO, 2017, p. 125).

Ou seja, na sociedade capitalista, em razão de todas as pessoas serem livres e iguais, cada um dispõe sobre si da maneira que sua vontade desejar. Porém, ao ser indiferente a realidade material de cada um, ao não observar que enquanto um apenas tem como mercadoria a oferecer na troca a sua força de trabalho (o trabalhador) o outro detém privadamente os meios de produzir as mercadorias na sociedade (o capitalista), sem, contudo, trabalhar diretamente nesse processo, apenas oferecendo, em troca da força de trabalho, um salário que pode ser aceito ou não, haja visto que somos livres, mostra-se a insuficiência da concepção tradicional do sujeito de direito. O que não entra em debate aqui nessa visão burguesa na relação explorador-explorado é que, a venda da força de trabalho se dá por necessidade vital, enquanto a ´´compra´´ dessa se dá de modo que nem sequer é pago o valor devido conforme o tempo de trabalho, tendo em vista a subtração da mais-valia pelo patrão.

Assim, apesar da igualdade universal conferida pelo sujeito de direito indistintamente a todos, possuindo todos iguais direitos e obrigações, de modo nenhum o ordenamento jurídico faz – e não o faz por que não o pode, pois é necessariamente um reflexo da forma-mercadoria – que a igualdade seja também material.

A propriedade capitalista é, em sua essência, a liberdade de transformar o capital de uma forma em outra e de transferi-lo de uma esfera para outra com o objetivo de obter o máximo lucro fácil. Essa liberdade de dispor da propriedade capitalista é impensável sem a presença de indivíduos desprovidos de propriedade, ou seja, de proletários. A forma jurídica da propriedade não está de modo nenhum em contradição com a expropriação de um grande número de cidadãos. Isso porque a capacidade de ser sujeito de direito é uma capacidade puramente formal. Ela qualifica todas as pessoas como igualmente “dignas” de ser proprietárias, mas por nenhum meio faz delas proprietárias. (TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO, 2017, p. 132-133).

A mercadoria produzida no seio da sociedade capitalista, completamente abstraída do seu processo de produção, é indiferente a como, para que e por quem foi produzida. Aqui não mais importa o seu valor de uso, mas apenas o seu valor de troca para atender os interesses capitalistas da produção, sempre visando a ida do produto ao mercado, atendendo a fórmula M-D, D-M (M=mercadoria e D=dinheiro), em um processo constante de expansão do capital. Ao mesmo passo que a mercadoria é apartada do seu valor de uso, a peculiaridade de cada mercadoria, o sujeito de direito é apartado de sua diversidade, não mais se considerando as condições reais de existência de cada um na sociedade.

Sob a forma social idêntica de mercadorias, ou seja, sob uma qualidade idêntica, os produtos do trabalho se tornam todos imediatamente comparáveis uns para com aos outros, quantitativamente mensuráveis uns nos outros. Esta qualidade idêntica é a de cristalização de trabalho abstrato. Isto implica que, para a mercadoria, é indiferente o “corpo” no qual concretamente este trabalho se cristaliza ou a modalidade concreta de trabalho que, caso a caso, corporifica-se. Assim, todas as mercadorias se relacionam entre si como coisas cuja utilidade é indiferente, produzidas por um trabalho também indiferente. A forma mercadoria “apaga” toda a diversidade concreta das coisas, faz desaparecer toda a diversidade útil daquilo que recobre, reduz o valor de uso a mero suporte. Ao fazê-lo, a mercadoria também trata de “apagar” a diversidade concreta dos homens, cujos vínculos sociais assumem forma muito determinada, que produzem e consomem tais coisas. Umas perante as outras, tudo que se sabe é que as mercadorias contêm trabalho abstrato e que, como meros “invólucros reificados do trabalho humano” colocam-se em relação de equivalência. (SUJEITO DE DIREITO E CAPITALISMO, 2014, p. 163).

Fica nítido, com o que já fora exposto, que a igualdade jurídica, desconsiderando a subjetividade de cada um, é uma implicação da igualdade das mercadorias, também abstraída das suas características próprias, variantes de uma mercadoria para outra. A troca de mercadorias, que só atingiu seu auge quantitativo e qualitativo na sociedade capitalista, requer, necessariamente, a liberdade e igualdade universal.

De fato, como a mercadoria ou o trabalho estão determinados tão somente como valor de troca e a relação pela qual as diferentes mercadorias se relacionam entre si [se apresenta] como troca desses valores de troca, como sua equiparação, os indivíduos, os sujeitos, entre os quais esse processo transcorre, são determinados simplesmente como trocadores. Entre eles não existe absolutamente nenhuma diferença (grifo nosso), considerada a determinação formal, e essa determinação é econômica, a determinação em que se encontram reciprocamente na relação de intercâmbio; o indicador de sua função social ou de sua relação social mútua. Cada um dos sujeitos é um trocador, i.e., cada um tem a mesma relação social com o outro que o outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por isso, a relação da igualdade (grifo nosso). É impossível detectar qualquer diferença ou mesmo antagonismo entre eles, nem sequer uma dissimilaridade (GRUNDRISSE, 2011, p. 242).

O sujeito de direito é a outra face da forma-mercadoria, porém, possuem ambos entre em si uma relação de mútua dependência. Enquanto o sujeito de direito precisa, para ocorrer a troca, de serem ambos os possuidores livres e iguais, para se determinarem no contrato livremente conforme sua vontade, a mercadoria (como bem disse Karl Marx em ´´O CAPITAL, LIVRO I, p. 191´´ já citado) sendo apenas um objeto dotado de valor, necessita que seja levado ao processo de troca por alguém, sendo esse alguém livre para trocar como quiser, com quem quiser, etc. Ou seja, a forma-jurídica, apesar de ser um reflexo da forma-mercadoria, a complementa, de modo que em uma condição ´´sine qua non´´ viabilizam a troca mercantil, o lucro capitalista e a exploração da classe trabalhadora livre e igual formalmente, subordinada e dependente materialmente da venda da sua força de trabalho.

Fica claro que a igualdade e liberdade universal é peculiar ao modo burguês de organização da sociedade e não um direito natural do homem positivado no ordenamento jurídico. Demonstrar sua necessidade histórica implica combater a ideia de transcendência atemporal do homem como ser livre em todo e qualquer momento histórico. Enquanto o capitalista tem os meios de produzir mercadorias para expandir seu capital auferindo lucro, ao trabalhador só é legado dispor sobre sua própria força de trabalho. O que não é dito pelos teóricos da ordem burguesa é que essa liberdade de disposição sobre si e sobre seu futuro é na verdade condicionado por um fator vital: sua subsistência. De fato, o trabalhador tem, com a ascensão da burguesia ao poder, liberdade de escolha; mas é a escolha de por qual capitalista o explorará, quando, no mais das vezes, nem tal escolha existe, mas sim negação ao trabalho em razão do exército industrial de reserva. Enfim, a liberdade e igualdade jurídica é uma falácia necessária para sustentação do poder capitalista. Combater essa mistificação significa combater a exploração do trabalhador sob a ficção jurídico-política da igualdade e liberdade universal.

A forma sujeito de direito, como reverso da mercadoria que é, acompanha este processo e, como a mercadoria, encontra apenas sob as condições específicas da produção capitalista as condições de seu pleno desenvolvimento histórico. O pressuposto histórico real para que o sujeito de direito alcance pleno desenvolvimento é, antes de tudo, a existência de uma sociedade na qual a forma mercadoria atingiu pleno desenvolvimento, o que, por sua vez, implica simultaneamente a existência de uma grande massa de trabalhadores expropriados e a concentração dos meios de produção em unidades autônomas e concorrentes. Esta organização da produção exige a quebra de todos os vínculos de dependência pessoal historicamente anteriores, de modo a “libertar” o trabalhador no duplo sentido explicitado por Marx. Num mesmo e paradoxal movimento, o trabalhador direto é expropriado dos meios de produção e alçado à condição formal de proprietário de sua própria capacidade de trabalho. Para este trabalhador proprietário e expropriado, a venda, como mercadoria, da sua capacidade de trabalho passa a ser a única possibilidade de subsistência – o produto do seu trabalho, no entanto, passa a pertencer ao comprador, detentor dos meios de produção. Este, por sua vez, passa comprar, como mercadoria, no mercado, a capacidade de trabalho necessária para movimentar os meios de produção e a utiliza para produzir mercadorias, cujo destino final é uma vez mais o mercado. O trabalho individual só pode então tornar-se trabalho social por meio da circulação mercantil. A sociedade correspondente a esta organização econômica se configura como uma sociedade atomizada, uma somatória de proprietários isolados, formalmente iguais (quer sejam proprietários dos meios de produção ou apenas da própria capacidade de trabalho) e livres (já que entre esses átomos não há qualquer imposição direta). A forma dessa atomização, a forma do sujeito de direito, não é algo ´´natural´´, que apenas acidentalmente se insere nesse específico contexto histórico, mas é determinado ela mesma por esse específico contexto histórico. (SUJEITO DE DIREITO E CAPITALISMO, 2014, p. 185-186).

5. CONCLUSÃO

Sem buscar ser minucioso e exaustivo na temática, o ponto principal fora demonstrado: o sujeito de direito e com ele o ordenamento jurídico, tem momento de nascimento, período histórico de vida e morte a ser vislumbrada na história. Nascido com o objetivo de justificação da exploração capitalista, a ordem jurídica e a igualdade em abstrato não mais subsistirá na futura sociedade comunista. A ficção jurídico-política de que em razão da liberdade universal não há que se falar em exploração, serve somente aos interesses da classe dominante. Os trabalhadores e trabalhadoras, longe de se verem em pé de igualdade com seus patrões possuem consciência prática da desigualdade material que existe na sociedade; basta aos setores mais avançados e conscientes da classe, lutar pela conscientização teórica, conjugada com a já presente consciência prática, para lutar além de necessidades práticas, imediatas e reformista, pautando a construção da sociedade socialista tendo como horizonte o comunismo.

A realidade dialética, de igualdade formal e desigualdade material não é um erro jurídico-político ocasional a ser consertado para a plena satisfação dos ditames normativos de igualdade e liberdade. Esse é o pleno funcionamento da ordem jurídica, que como implicação da forma-mercadoria, serve a sua realização e perpetuação.

Ao mesmo tempo em que, na circulação mercantil, todos os indivíduos são alçados à qualidade de sujeitos de direito – uma vez que, em vista das mercadorias que carregam, reconhecem-se universalmente como proprietários – uma massa de expropriados é forçada a submeter-se, na produção capitalista, a uma minoria detentora dos meios de produção. A igualdade entre os sujeitos de direito que constitui uma determinação essencial da circulação mercantil se resolve em desigualdade econômica necessária à produção capitalista. A equivalência mercantil da esfera da circulação parece então chocar-se com a exploração do trabalho. O domínio de classe parece chocar-se com a igualdade e a liberdade que caracterizam a forma jurídica. O choque, no entanto, não é mais do que aparente. A equivalência mercantil e a igualdade e liberdade jurídicas não encontram na produção capitalista a sua antítese ou a sua anulação, mas a sua realização. […] A desigualdade na propriedade é o efeito da expropriação da classe trabalhadora para a concentração dos meios de produção em mãos da classe dos capitalistas – e é, como se sabe, condição sem a qual para que o trabalhador direto se submeta ao capital. A universalização da forma sujeito de direito está, por sua vez, relacionada à redução da força de trabalho à forma mercadoria, igualmente efeito da expropriação do trabalhador direto e da concentração dos meios de produção sob a forma de capital. Fica assim claro porque razão a universalização da forma sujeito de direito não está em contradição com desigualdade na propriedade: exatamente porque a personalidade jurídica universal não é senão expressão subjetiva da circulação mercantil da força de trabalho. (SUJEITO DE DIREITO E CAPITALISMO, 2014, p. 188-189).

A análise teórica de Evguiéni B. Pachukanis, desaguando na necessidade da extinção da forma-jurídica se mostra acertada. O conteúdo normativo, que pode e deve ser disputado na sociedade capitalista pela classe trabalhadora em luta, reivindicando direitos que melhore a sua qualidade de vida, não é o todo e nem trará a plena realização da classe trabalhadora. A ofensiva neoliberal aos direitos conquistados fará com que constantemente, com avanços e retrocessos, os direitos dos trabalhadores estejam sempre ameaçados.

A experiência material demonstra que os ganhos sociais obtidos por meio de direitos não apresentam solidez e estão diretamente associados à fase de capitalismo a qual a sociedade está inserida. Se, antes, o Brasil experimentava um neoliberalismo com inclusão social (governos petistas), hoje, a fração de classe dominante busca consolidar um projeto de destruição máxima dos direitos e de benefício direto do capital financeiro especulador. ´´ (Por que a luta por direitos não dá certo? Rodrigo Portella Guimarães).

Dá os anéis para não perder os dedos é a tática acertada da burguesia até agora nos momentos de ampla mobilização social. Porém, a conscientização política da classe trabalhadora deve ter por fim pautar além das necessidades imediatas e específicas de um setor, vislumbrar um horizonte revolucionário e de construção da sociedade socialista. Isso não significa dizer abandono da luta por direitos, mas sim pautar o debate também a partir da extinção da forma-jurídica, pois, como visto, é insuficiente a disputa por seu conteúdo.

Portanto, torna-se central para aqueles que, como eu, apresentam um compromisso na luta por uma sociedade melhor, entender que o Direito é até capaz de recepcionar algumas demandas, postulando e garantindo direitos, mas o plano da eficácia, que vai para além da existência, é diretamente limitado pela função central de um ordenamento jurídico: garantir estabilidade e segurança para o funcionamento do capitalismo. Ou seja, um direito só será eficaz se não atrapalhar o modo de produção. Não existem respostas radicais por meio jurídico. (Por que a luta por direitos não dá certo? Rodrigo Portella Guimarães).

REFERÊNCIAS

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_______, Sujeito de Direito e Capitalismo, São Paulo, Expressão Popular, 2014.

MANZANO, Sofia, Economia Política Para Trabalhadores, São Paulo, ICP, 2013.

MARX, Karl, Grundrisse, São Paulo, Boitempo, 2011.

_______, Manifesto Comunista, São Paulo, Boitempo, 2017.

_______, O Capital, Livro I, São Paulo, Boitempo, 2011.

NAVES, Márcio Bilharinho, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis, São Paulo, Boitempo, 2000.

_______, O Discreto Charme do Direito Burguês: ensaios sobre Pachukanis, São Paulo, Unicamp, 2009.

PACHUKANIS, E. B, A teoria marxista do direito e a construção do socialismo, trad. Tulio Lisboa, in: lavrapalavra.com

_______, Estado e Direito sob o Socialismo, trad. Tulio Lisboa, in: lavrapalavra.com

_______, Teoria Geral do Direito e o Marxismo, trad. Paula Vaz de Almeida, São Paulo, Boitempo, 2017.

PORTELLA GUIMARÃES, Rodrigo, Por que a luta por direitos não dá certo? in: lavrapalavra.com

ROBERTO GONÇALVES, Carlos, Direito Civil Brasileiro, Parte Geral v.1, 20 ed., São Paulo, SaraivaJur, 2022.


Thiago Andrade Cardoso dos Santos é estudante do 3º período de Direito na Universidade Federal de Sergipe (UFS), militante da União da Juventude Comunista (UJC) e do Movimento por uma Universidade Popular (MUP).

 

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