A insistência no revolucionarismo sem cunho partidário

Por Camarada Janderson, via Funkeiro Comunista

Na minha curta trajetória como militante, pude perceber que uma velha dúvida continua viva nos debates entre pessoas de esquerda, principalmente entre aquelas que se aproximaram das lutas sociais recentemente: é preciso necessariamente estar em um partido comunista para me considerar comunista e revolucionário(a)? Essa dúvida provoca uma outra cuja resposta é central para refletir sobre a primeira: nós precisaremos de um partido para organizar o processo revolucionário?

Há quem se coloque como marxista e responda negativamente às duas perguntas, acreditando que outros instrumentos de luta e organização terão um papel mais decisivo do que os partidos num processo revolucionário no Brasil. Acredito que sim, os partidos comunistas que existem hoje, cedo ou tarde, terão um papel central na luta de classes e, para melhor dirigir o processo revolucionário, é fundamental que os trabalhadores os procurem.

A questão do partido enquanto principal instrumento já foi debatida por respeitáveis revolucionários(as) no decorrer da história. É correto dizer que o debate sobre organização é um dilema universal da classe trabalhadora. É importante revisitar alguns clássicos, assim como atualizar essa discussão com base nos acontecimentos e situações contemporâneas.

Um dos motivos que me faz elaborar este escrito é o interesse em abrir o debate com os apartidaristas, com os não-leninistas e com outras correntes que subestimam a importância dos partidos comunistas; pois, quando eles se referem aos partidos, o fazem com desprezo, citam os partidos nominalmente e às vezes gozam de grande visibilidade na internet. Isso influencia no debate público. É necessário um contraponto.

Nas reflexões deste texto, busco demonstrar que defender a continuidade da luta revolucionária à margem dos partidos vai na contramão do posicionamento de Marx, Engels e alguns de seus seguidores mais destacados, sem deixar de considerar a contribuição e o papel organizador que as ações espontâneas cumprem no curso da luta de classes. Também analisarei alguns posicionamentos apartidaristas, seus limites e suas contradições.

Os comunistas e o partido

A perspectiva de Karl Marx e Friederich Engels sobre organização pode ser identificada nos escritos que a dupla elaborou para as organizações operárias das quais fizeram parte, especialmente a Associação Internacional dos Trabalhadores e a Liga dos Comunistas. Através de textos de Marx e Engels, da biografia de José Paulo Netto sobre Marx e vasculhando os documentos institucionais de algumas organizações, foi possível encontrar diversas evidências que comprovam o partidarismo de Marx e Engels. O marxismo já nasce partidarista.

Pela Liga, a dupla não só elaborou o Manifesto como também foi decisiva na aprovação do estatuto em 1847 e das reedições. No primeiro congresso, Marx não pôde ir, mas Engels se fez presente levando consigo os acúmulos que obtiveram juntos. Embora o nome oficial da organização tenha sido Liga, Marx, Engels e militantes da época se referiam a ela como um dos vários partidos operários da Europa. As primeiras versões dos estatutos já estabeleciam uma dinâmica de funcionamento tipicamente partidária, com congresso, comitê central e política de finanças. Criteriosos que eram, se Marx e Engels se identificasse com algum tipo de horizontalismo organizativo, provavelmente não teriam participado de tal organização. Em 1860, em uma “Carta ao senhor Vogt”, Marx recordou que só entraria para a Liga após aprovarem as contribuições teóricas elaboradas juntamente com seu amigo Engels.

O segundo congresso da Liga foi em Dezembro de 1847. Naquelas sessões, Engels era secretário e Marx conseguiu comparecer. Marx defendeu a teoria “em longos debates. Toda a contradição e dúvida foram finalmente resolvidas, os novos princípios foram aprovados por unanimidade e Marx e eu fomos encarregados de elaborar o Manifesto” (ENGELS, 1885).

A dupla teve intensa participação nos debates. No artigo 2, alguns pontos chamam atenção pela rigidez, como “informar ao comitê superior da Liga qualquer envolvimento com organizações paralelas”, “submissão às resoluções”, “silêncio sobre assuntos particulares da Liga”,  dentre outras. O final do artigo coloca que “quem não preencher essas condições será excluído” (LIGA, 1847). É o tipo de regra que, nos dias de hoje, assustaria facilmente um “anti-autoritário”.

As regras rígidas no que diz respeito à disciplina do militante estavam em sintonia com o posicionamento de Marx e Engels, não foram criadas de forma alheia à sua participação. Foi através de debates e votações que essas regras foram estabelecidas. Nesses debates e votações, Marx e Engels se colocaram a favor das regras. Isso revela o esforço organizativo da dupla e seu senso centralista diante da desorganização da classe trabalhadora na época, algo que poucos lembram.

Em 1850, numa reedição do primeiro estatuto, foi definida pela Liga a tarefa de agir como um partido representante de todo o movimento operário, buscando organizar as forças revolucionárias dentro do partido. A passagem abaixo demonstra que, nessa reedição de 1850, escrita por Marx, a Liga instituiu um caráter unificador das várias lutas revolucionárias do movimento operário:

“Nos vários estágios através dos quais a luta do proletariado tem de passar, a liga representará em todos os momentos o interesse do movimento como um todo, da mesma forma que procurará em todos os momentos unir e organizar todas as forças revolucionárias do movimento proletário dentro de si. Enquanto a revolução proletária não atingir seu objetivo final, a Liga permanecerá secreta e indissolúvel” (MARX, 1850)

Ao bradar sobre revolução certo ar de fidelidade aos princípios do socialismo científico, me parece que os “marxistas apartidaristas” não consideram o papel desses mesmos Marx e Engels enquanto militantes e organizadores de um partido. Por isso, em seu cotidiano militante, os apartidaristas atribuem mais valor às realizações pontuais (escolhendo à dedo as tarefas mais performáticas para participar) em detrimento da necessidade de se partidarizar e trabalhar com continuidade. Fica muito mais fácil e confortável reivindicar Marx e Engels excluindo seu lado organizador, partidarista e as tarefas de organização que os mesmos já defendiam na Liga. Em meio a tantas obras brilhantes, os Estatutos e o papel da dupla nas elaborações e na defesa de suas teses costumam passar despercebidos. Mas os relatos bibliográficos e o conjunto dos documentos partidários da Liga e da AIT, elaborados e defendidos por Marx e Engels, constituem o embrião da teoria da organização do socialismo científico. Esse embrião já traz consigo a necessidade do partido.

Vasculhando cartas de Karl Marx, encontrei um balanço que o alemão fez sobre o enfraquecimento da Liga dos Comunistas após um período de dispersão. Marx avaliava que a tarefa era reestruturar a Liga e se preparar para dirigir as lutas da classe operária, evitando ser engolidos pelo curso dos acontecimentos:

“… a sólida organização inicial da Liga enfraqueceu significativamente. Uma grande parte dos membros, que participou diretamente no movimento revolucionário, acreditou que passara o tempo das sociedades secretas e que bastava a ação pública. Alguns círculos e comunidades deixaram afrouxar e adormecer pouco a pouco as suas ligações com a Direção Central. (…) Tem de se pôr fim a este estado de coisas, tem de se estabelecer a autonomia dos operários. A Direção Central compreendeu esta necessidade e, por isso, logo no Inverno de 1848-49, enviou à Alemanha um emissário, Joseph Moll, para a reorganização da Liga.” (MARX, 1850)

Marx defendeu que era preciso “pôr fim a este estado de coisas, estabelecer a autonomia dos operários”. Ele não defendeu a construção de organizações à margem do partido na oportunidade que teve de solucionar questões de organização. Apesar de ter que trabalhar com poucos dirigentes em dado momento da história de seu partido, Marx não o considerava definitivamente incapaz só porque sua militância passava por uma crise organizativa. Pelo contrário, Marx defendia que a Liga se reativasse como um partido independente do proletariado para travar uma disputa aberta com os demais partidos.

O posicionamento da dupla sobre a organização e a tomada do poder político era tão instigante que provocou intensos debates com os anarquistas durante os congressos da Primeira Internacional (ou Associação Internacional dos Trabalhadores). Essas divergências marcaram o Congresso de Basiléia, em 1869, a Conferência de Londres, em 1871 e o Congresso de Haia, em 1872. As sessões ocorreram em plena turbulência revolucionária da Comuna de Paris (1870-1871).

O principal líder dos anarquistas era o russo Mikhail Bakunin. Em contraposição aos marxistas, durante os congressos e eventos da AIT, Bakunin defendia o federalismo e a ação direta. No quadro desses embates, cabe recordar o mais importante deles, no Congresso de Haia. Marx era membro do Conselho Geral da AIT e esboçou seus estatutos para que fosse apreciado e votado numa conferência. Enquanto tarefa para o proletariado de cada país, o artigo 7° determinava a necessidade da unificação do proletariado em partido político. No congresso, Marx defendeu exaustivamente essas teses. O artigo foi aprovado com 32 votos contra 6 da oposição e 12 abstenções, sob acalorados embates. O evento culminou na expulsão do líder anarquista Mikhail Bakunin dos quadros da Internacional por 25 votos a favor de sua expulsão, 6 votos contra, além de 7 abstenções; e do líder Guillaume, com 25 votos a favor, 9 contra e 8 abstenções. O histórico trecho foi acrescentado no estatuto da Internacional em setembro de 1872:

“Art. 7a. Em sua luta contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado só pode se apresentar como classe quando constitui a si mesmo num partido político particular, o qual se confronta com todos os partidos anteriores formados pelas classes possuidoras. Essa unificação do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e seu fim último – a abolição das classes.” (AIT, 1872)

A constituição do artigo 7°, cujos ensaios se deram em diferentes eventos anteriores à aprovação, é resultado concreto da exaustiva vitória do marxismo contra o bakunismo já naquele momento histórico. É parte daquilo que constitui o socialismo-científico. Nesse sentido, fica claro que a atitude coerente de alguém que se proclama marxista é priorizar a adesão a um partido, um partido que almeja a tomada do poder político pelo proletariado, um partido comunista. Somente algum improviso revisionista sobre a teoria marxista chegaria a uma conclusão negativa quanto à prioridade de aderir a um partido.

Os históricos debates contra os anarquistas aconteceram em torno da questão do papel do Estado e do partido no processo revolucionário. Desde o primeiro evento, era presente a disputa entre federalidarismo organizativo versus partidarismo; ação direta versus conquista do poder político. Ao longo dos seus mais de vinte anos de luta e produção teórica, Marx e Engels já deviam estar familiarizados com debates contra aqueles que lhes atribuíam a pecha de centralistas, “burocráticos” e “autoritários”. Não foi à toa que em 1873, na mesma época dos embates congressuais com os anarquistas, Engels publicou seu texto “Sobre a autoridade”. Jodi Dean, em Multidões e partido (capítulo “Mais que muitos”) explica que tais críticas são apresentadas pelos anti-autoritários “como se fossem sacadas novas decorrentes de experiências recentes. Não são. Elas já estavam presentes logo nos primeiros anos do movimento político da classe trabalhadora.” (DEAN, 2022)

Marx e Engels defenderam um partido que aspirasse pela unificação das lutas operárias, obviamente saudando e reconhecendo as outras formas organizativas diversas que a classe trabalhadora mundial desenvolvia. Mesmo reconhecendo os avanços que essas experiências traziam à classe, a dupla não deixava de defender suas teses nos momentos oportunos.

Foi esse legado que ficou de aprendizado para Lênin. Ainda tendo que lidar com correntes apartidaristas do movimento operário, Lênin escreveu um texto cujo título inspirou o deste artigo, “O Partido Socialista e o revolucionarismo sem cunho partidário” (1905). O líder bolchevique notou que, com a ascensão do movimento operário na Rússia, foram criadas diversas organizações à margem dos partidos, e se propôs a responder os defensores da continuidade de tal tendência. No texto, Lênin não hesitou em reconhecer que era natural e bem-vinda a existência de organizações diversas no movimento operário durante a revolução de 1905, mas, assim como Marx e Engels em outro período histórico, não deixou de defender a unificação e centralização dessas lutas como uma melhor solução.

“A ideia da posição independente na luta dos partidos não pode deixar de, pelo menos, alcançar, em tais condições, determinadas vitórias passageiras. A independência em relação aos partidos não pode, pelo menos, deixar de passar a ser uma palavra de ordem da moda, pois a moda se agarra impotente a reboque dos acontecimentos, e uma organização sem cunho partidário aparece precisamente como o fenômeno mais ‘comum’ da superfície política; democratismo à margem dos partidos, movimento grevista à margem dos partidos, revolucionarismo à margem dos partidos (…) A luta entre os partidos é a expressão mais perfeita, completa e acabada da luta política entre as classes. A falta de cunho político significa indiferença diante da luta dos partidos. Mas essa indiferença não equivale à neutralidade, à omissão na luta, pois na luta de classes não pode haver neutros (…) A posição negativa diante dos partidos é uma ideia burguesa. O espírito de partido é uma ideia socialista.” (LÊNIN, 1905)

Com forte influência do marxismo-leninismo, ao longo do século XX, a chamada forma-partido foi amplamente utilizada e garantiu lutas vitoriosas aos povos oprimidos de África, das Américas, da Ásia e da Europa. É possível avaliar com rigor e aprofundamento o motivo de tais organizações terem tido também seus momentos de degeneração. Mas até então temos registrado na história do movimento proletário mundial que foi aspirando a ser instrumento dirigente, e não com horizontalismos, que um número considerável de experiências garantiram conquistas duradouras para a humanidade. Até mesmo frentes e movimentos de libertação anti-colonial que não começaram através da forma-partido, após certo estágio de desenvolvimento revolucionário, passaram a se tornar um partido, como foi o caso de Moçambique e Cuba, que abordarei mais adiante.

Em se tratando do Brasil, uma série de formas e instrumentos de luta foram responsáveis pelas conquistas históricas dos trabalhadores. Desde os primeiros empreendimentos coloniais e escravistas até os dias de hoje, com criatividade e combatividade, o nosso povo resistiu às humilhações das classes dominantes. Foram guerras abertas, formação de quilombos e aldeias, movimentos grevistas independentes, luta armada, movimentos de bairro, movimentos por reformas, coletivos independentes, sindicalismo organizado, ocupações de espaços públicos e privados, dentre outras formas de luta. Todas elas cumpriram e cumprem até hoje algum papel na luta de classes, até mesmo no plano da inspiração. Podemos destacar, por exemplo, a resistência no Quilombo dos Palmares, Revolta de Carrancas, Revolta dos Malês, a greve geral de 1917 (fortemente influenciada pelos anarquistas), dentre outros feitos.

Hoje o principal instrumento através do qual os trabalhadores conseguem abarcar as várias lutas econômicas e políticas, influir na política e na luta de classes com maior profissionalização e centralidade, é o partido (não necessariamente o partido comunista) ou algumas outras organizações (como sindicatos, ocupações, coletivos, ONGs, associações locais), que, em algum momento da luta, terão de recorrer aos partidos, seja para cobrar ou se aliar. Esse quadro expressa a dominação política da república burguesa por excelência. Alguns poucos exemplos contemporâneos gozam de uma completa autonomia política em relação aos partidos (poucas ocupações urbanas, rurais, casas de acolhimento, tribos indígenas e quilombos). Mas quanto mais a luta de classes se desenvolve e simplifica seus antagonismos, quanto mais esse grupo caminha no sentido da conquista do poder e da influência política, mais perto ele estará de depender da dinâmica partidária. Por outro lado, quanto mais propositalmente autonomista e restrito geográfica e politicamente ele for, mais restritas serão suas pautas e mais dificuldades terá para avançar na luta política.

A constituição da primeira república burguesa no Brasil, no final do século XIX, reconfigurou o sistema político. Esse processo correspondia às mudanças na própria organização social do trabalho, às próprias transformações nas relações sociais de produção. A burguesia que atuava no Brasil se via na missão de industrializar o país e de proletarizar a mão de obra. Essa burguesia já contava com suas “facções”: o Partido Republicano Federal, Partido Republicano Conservador e o Partido Republicano Liberal eram as principais. Ser um político de um partido burguês implicava, mesmo na república, ser um homem da burguesia, de família e trajetória respeitadas. Num primeiro momento dessa primeira República, não existia um partido popular e independente, com mulheres e trabalhadores. A política partidária era restrita às classes dominantes, aos homens adultos e à intelectualidade burguesa. A república burguesa moderna em vários lugares do mundo foi progressista frente às forças monarquistas, mas reacionária frente aos interesses dos trabalhadores pobres e dos socialistas. No quadro da Primeira República, foi na medida em que os trabalhadores avançaram em seus princípios organizativos e lutaram pela criação e legalização de um partido que a luta anti-capitalista passou a ser de fato mais ameaçadora.

O Brasil não teve qualquer partido comunista com alguma significância antes da segunda década do século XX. Iniciativas anarquista promoveram experiências ricas durante a greve geral de 1917, mas não resultaram em um partido propriamente anarquista. O protagonismo desse movimento esgotou-se com o passar do tempo. A partir de 1922 e mais intensamente a partir dos anos 1930, a principal referência popular de luta política no Brasil passou a ser o PCB, o primeiro partido operário do Brasil.

Em outros países do mundo, orientados pela Internacional Comunista, partidos comunistas desempenharam um papel protagonista nas lutas de seus países. A Revolução Russa, a literatura revolucionária e seus desdobramentos inspiraram trabalhadores de vários cantos do mundo a se organizarem nesse tipo de estrutura profissional e classista, tendo como modelo mais conhecido o partido bolchevique.

Antes da unificação do partido bolchevique na Rússia, José Martí havia criado na América Latina o Partido Revolucionário Cubano, organização que liderou o levante pela independência da ilha em 1892. O partido atuou durante apenas 6 anos e foi dissolvido em 1898 pelo primeiro presidente da República, Tomás Estrada Palma, após avaliar que a organização havia cumprido seu papel. Passados 54 anos, Fidel Castro organizou o Movimento 26 de Julho, que resultou na conhecida revolução cubana. Em 1965, após a vitoriosa e heróica revolução, o movimento se desdobrou no Partido Comunista Cubano, um partido marxista-leninista que se comprometeu a continuar o legado de José Martí e os ensinamentos de Lênin. Fidel Castro fez o seguinte balanço:

“Da união de todos os revolucionários nasceu esse partido. União essa que se forjou no desinteresse e na renúncia mais exemplar, como símbolo de que uma nova era surgia em nossa pátria. Assim, de uma maneira admirável, começamos a percorrer o novo caminho, sem caudilhos, sem personalismos, sem facções, em um país onde historicamente a divisão e o conflito de personalidades foram as causas de grandes derrotas políticas. Como o Partido Revolucionário Cubano da Independência, hoje nosso Partido (PCC) dirige a Revolução. Militar nele não é fonte de privilégios, mas de sacrifícios e de consagração total à causa revolucionária.

Por isso, nele ingressam os melhores filhos da classe trabalhadora e do povo, velando sempre pela qualidade e não pela quantidade (…) Sua ideologia é a da classe trabalhadora: o marxismo-leninismo (…) Se nos tempos incertos de 26 de Julho e nos primeiros anos da Revolução os homens desempenharam individualmente um papel decisivo, esse papel hoje é desempenhado pelo partido. Os homens morrem, o partido é imortal.

Consolidá-lo, elevar sua autoridade, sua disciplina, aperfeiçoar seus métodos de direção, seu caráter democrático e elevar o nível cultural e político de seus quadros é dever inegável de todos os revolucionários.

Junto ao partido, sua organização juvenil e as organizações de massa: os sindicatos, os Comitês de Defesa da Revolução, a Federação das Mulheres (…) constituem a gigantesca força política e social que leva adiante a obra que iniciamos em 26 de julho” (CASTRO, apud SANTOS e KOLLING [orgs.], 2017)

A decisão dos revolucionários cubanos de refundar um partido após uma vitória sobre o imperialismo, assim como a curta data de validade do Movimento 26 de Julho, são centrais para esta reflexão. Fidel e seus compatriotas buscaram acabar com as divisões, os personalismos e as facções para assim dirigir a revolução. Fidel buscava resolver um problema que já havia sido explorado por outros comunistas, aprendeu com esses antecessores e aplicou o conhecimento científico na prática.

Cabe refletir o seguinte: considerando as agressões que Cuba já sofre por parte dos imperialistas, sobreviveria até hoje a revolução caso não existisse um partido forte, centralizador e marxista-leninista? Se com um partido forte a ilha já sofre bastante, acredito que nas mãos dos apartidatistas, dos “revolucionários sem partido”, hoje Cuba seria apenas mais uma praia dos Estados Unidos.

Depois de Marx, Engels e Lênin, Astrojildo Pereira, Fidel Castro, Samora Machel, Amílcar Cabral, Panteras Negras, e muitos outros revolucionários(as) seguiram a ideia de um partido dirigente da revolução. Rosa Luxemburgo, frequentemente usada pra defender a não-partidarização, apesar de ser crítica com relação à ideia de um partido especificamente de vanguarda, era uma militante de um partido e não se situava à margem dos partidos para tecer suas críticas às organizações.

Analisemos agora três experiências africanas interessantes para pensar o ponto central da exposição – quando os revolucionários percebem o limite das formas não-partidárias. Tais experiências nos ensinam o quanto a forma-partido, especialmente a de vanguarda, aparece como a melhor solução para uma classe trabalhadora que travou sua revolução através de uma frente ou de um movimento, confirmando a colocação de Lênin sobre a disputa partidária ser sinônimo de um alto grau de desenvolvimento da luta de classes.

No panfleto “Fazer viver a linha do partido em cada trabalhador” (1979), Samora Machel, revolucionário líder do processo de libertação anticolonial de Moçambique, diz que deve o avanço revolucionário à unificação do partido FRELIMO, que até então era uma frente com diferentes tendências e sem características internas de partido, sem centralismo democrático.

“Podemos dizer com toda firmeza que avançamos, que criamos bases sólidas em Moçambique para avançarmos mais e mais na construção do socialismo. Por que avançamos? Primeiro porque fomos capazes de organizar a nossa força dirigente, o partido FRELIMO. Os trabalhadores moçambicanos assumiram que estruturar o partido significa melhorar e organizar nossa vida” (MACHEL, 1979)

Passemos a outra experiência africana. Amílcar Cabral foi um revolucionário líder do processo anti-colonial de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Em seu livro Unidade e luta (1976), no capítulo sobre seu partido, o PAIGC, diz que o partido é o meio principal que liga os outros meios a ele.

“Para lutar contra o colonialismo, também é preciso meios. É preciso, em primeiro lugar, criar um instrumento para a luta. Esse instrumento é o nosso Partido. Os camaradas podem dizer que o Partido é um instrumento-base, o instrumento-mãe. Se quisermos, o meio principal que cria outros meios, ligados a ele. A raiz e o tronco, que dá outros ramos para o desenvolvimento da nossa luta.”

Mais adiante, sobre a tarefa de edificar um partido e não um movimento com características de movimento, Cabral comenta:

“Movimento é uma coisa muito vaga. O nosso Partido talvez seja hoje ainda, um movimento, mas o nosso trabalho tem que ser transformá-lo em Partido cada dia mais. E desde o começo nós demos-lhe o nome de Partido para que todos entendam que temos ideias bem claras sobre o caminho que estamos a seguir.” (CABRAL, apud SANTIAGO, 2023)

Em Burkina-Faso, Thomas Sankara também teve de lidar com a formação de um partido como solução para a dispersão política. Em entrevista concedida à Rádio Havana em agosto de 1987, Sankara defende a construção de um partido de vanguarda para dirigir a revolução:

“Claude Hackin: Você considera necessário criar um partido de vanguarda em Burkina Faso?

Thomas Sankara: Precisamos construir um partido de vanguarda. De fato, é necessário criar uma organização estruturada, porque os sucessos registrados até agora permanecem frágeis se não tivermos meios de preservá-los e se não conseguirmos educar as massas para conquistar novas vitórias. Nós não vemos mais a criação de um partido como algo inacessível ou distante. Estamos bastante perto de realizar este objetivo. É evidente que ainda existem diversas concepções grupistas, frente às quais devemos realizar uma séria ação de consulta, reagrupamento e unidade. A natureza do partido, seu desenho e construção certamente não serão os mesmos como se o tivéssemos criado antes de chegarmos ao poder. Muitas precauções devem ser tomadas para não cair no oportunismo de esquerda; não podemos decepcionar as massas. Devemos, portanto, ser muito cautelosos, seletivos e exigentes.” (SANKARA apud JONES e LANDI [orgs.], 2020)

Nas três experiências africanas mencionadas, assim como na experiência cubana, percebemos que as Frentes foram temporárias. Foram formadas enquanto tal devido a um contexto conjuntural determinado. Não por ser o instrumento adequado, mas por ser o instrumento possível para o momento histórico em questão. Para continuar cada revolução, os revolucionários optaram por mudar a forma do instrumento dirigente, coerentes com a leitura de Marx, Engels e Lênin sobre a direção dos processos e sobre a indispensabilidade dos partidos.

Cabe considerar que uma degeneração política certamente pode acontecer tanto na relação partido-massas quanto na relação partido-Estado, como aconteceu de fato em várias experiências socialistas. Optar pela forma-partido não significa se blindar de todo e qualquer problema. A convivência humana e a gestão da coletividade sempre foram no mínimo complicadas na história da humanidade. Entretanto, a queda de governos e partidos socialistas explica-se muito mais pela pressão imperialista, conflitos locais e erros de direção propriamente política, do que pela incapacidade da forma-partido, uma vez que os partidos por si só, enquanto instrumento e enquanto forma, continuam sendo determinantes no cenário político de vários países do mundo, mesmo naqueles que foram “restaurados” pelo capitalismo.

Em Multidões e partido, Jodi Dean faz um profundo diagnóstico sobre os limites e as novas perspectivas da forma-partido nos marcos atuais. Na introdução da obra, a autora faz uma leitura sobre o quadro de fragmentação e pluralização das lutas políticas das últimas décadas, entendendo o partido comunista como um modo de associação apropriado para organizar novas demandas populares. Ao descrever suas vantagens, ainda que no plano formal, é possível perceber o caráter tecnológico da forma-partido frente aos desafios do nosso tempo.

“Os partidos costumam se ramificar articulando patamares locais, regionais, nacionais e, por vezes, internacionais. Evitando ao mesmo tempo ficar preso às particularidades locais e confinado às abstrações do global, o partido é uma forma organizacional que opera em diferentes escalas; na verdade, seu sucesso – eleitoral ou extraeleitoral – depende dessa capacidade. Além disso, os partidos são portadores dos conhecimentos produzidos pela experiência política. Quer seja esse conhecimento mais local (…) quer seja ele mais amplo (…), os partidos reconhecem a amplitude e a profundidade do conhecimento que importa para a luta política e para o exercício do poder político. Na medida em que dá corpo a um conhecimento que excede aquilo que qualquer pessoa individual pode saber, o partido assume uma posição em relação a tal conhecimento. Questões e pautas são acomodadas em uma plataforma, deixando, assim, de ser preferências contraditórias e individuais para converterem-se em uma visão mais ampla em prol da qual o partido lutará. Aquilo que é muitas vezes desprezado como burocracia partidária, portanto, precisa ser revalorizado como uma capacidade institucional necessária para a luta política e para o exercício do poder político em uma arena complexa e desigual” (DEAN, 2022, p. 38)

Desde seus primeiros teóricos científicos, é a partir dos dilemas e limites que se deram no terreno da prática que os comunistas entenderam que o apartidarismo é menos avançado do que o partidarismo. Em diferentes batalhas, os marxistas venceram seus oponentes defendendo essa linha no interior das organizações. Não foi à toa ou por vontade própria que Lênin dedicou parte de sua vida defendendo um partido forte e o centralismo democrático. Pelo contrário, Lênin apenas deu continuidade a Marx e Engels e aperfeiçoou com maestria seus princípios organizativos.

O problema é que, com a intenção de fugir da parte “chata”, há quem prefira não reivindicar as contribuições de Lênin, acreditando que com Marx e Engels não precisará se preocupar em construir um partido, pois bastaria estar “organizado coletivamente”. A exposição acima busca ajudar a quem tem dúvida sobre a necessidade de um partido para disputar e buscar dirigir o processo revolucionário. Notáveis marxistas no decorrer da história já defendiam a partidarização da classe e já lutavam pela unificação das lutas. Seria sinal de submissão à espontaneidade e ao democratismo vulgar rejeitar o partido enquanto forma mais avançada, seja diante da iminência da criação de um novo partido após o triunfo de uma frente ou movimento, seja diante da existência de partidos comunistas já atuantes.

O revolucionarismo sem cunho partidário

O revolucionarismo sem cunho partidário no Brasil contemporâneo entrou em cena nas lutas populares e no debate político depois das jornadas de Junho de 2013. A composição geral de uma das manifestações em São Paulo foi analisada por uma pesquisa da Folha. A pesquisa nos ajuda a entender alguns pontos importantes. No ato registrado, havia 65 mil pessoas. A pesquisa revelou que 53% dos manifestantes eram jovens com menos de 25 anos, 84% não tinham preferência partidária e 71% estavam em seu primeiro protesto da vida. O apartidarismo era a marca da jornada. O Movimento Passe Livre (coletivo que organizou as os primeiros atos), que assumia a organização dos atos, seguia oficialmente o princípio do “apartidarismo, mas não anti-partidarismo”. A maneira como os atos se deram expressaram as capacidades organizativas da classe trabalhadora naquele começo de década.

Nos primeiros atos, a convivência foi pacífica entre os próprios manifestantes, mas, à medida que o movimento crescia e agregava mais pautas, atraía setores cada vez mais espontaneístas e fora do eixo de alcance das organizações e mídias de esquerda. No início das jornadas, a imprensa burguesa profissional condenava o caráter violento das manifestações, apoiava a polícia e criticava a “baderna”, mas logo mudou de posição. Ao notar que cabia ali, naquelas jornadas, uma dose de radicalização das críticas ao governo do Dilma, essa imprensa passou a acompanhar os atos com discursos democratista, fez parte parte da campanha com slogans como “vem pra rua”, “o gigante acordou”, setores cada vez mais reacionários apareceram nos atos. À medida que o movimento cresceu e abarcou setores reacionários, ocorreram conflitos entre manifestantes partidarizados versus manifestantes sem-partido em diferentes cidades.

O MPL divulgou notas condenando as pautas reacionárias que surgiam nos atos que convocavam. A nota não foi capaz de deter o crescimento da direita (certsmente), até que foram surgindo manifestações diretamente contra o PT, partidos comunistas, contra o aborto e pela redução da maioridade penal. Passou a ser cada vez mais comum gestos de hostilização às esquerdas partidárias que construíam os atos.

No calor de Junho de 2013, um texto publicado mo site do PCB, “Apartidarismo e anti-partidarismo”, identificou três grupos que reproduziam os coros anti-partidários: pessoas que recentemente aderiam às discussões políticas de forma independente (a maioria), pessoas que performavam uma estética de anonimato (na época usavam máscaras inspiradas no filme V de Vingança) blocados com alguns anarquistas, além de uma pequena parcela da extrema direita nacional.

A desilusão com relação aos partidos, nos marcos contemporâneos, por um lado se deu pelo fato de termos vivido um período de apassivamento das lutas populares, por outro lado por termos acompanhado durante anos uma forte campanha conspirativa contra o PT e seus aliados. Quando o bloco democrático-popular esteve no poder federal e liderou parte das entidades representativas dos trabalhadores e dos estudantes, em busca de sustentação e governabilidade, optou sistematicamente pela redução de suas bandeiras às negociações de gabinete, ao carreirismo político e à conciliação de classes. A geração que viveu as lutas operárias dos anos 1970 e 1980, na altura do ano de 2013, não era mais tão jovem. Os que nasceram nos anos 1990 não viram de perto grandes mobilizações operárias lideradas por partidos e sindicatos, nem a influência direta do bloco soviético na cultura e na política mundial. Isso deixou marcas na atual geração de jovens com senso crítico, principalmente nas periferias.

Junho de 2013 é um bom exemplo contemporâneo para refletirmos sobre o quanto precisávamos, naquele momento, de um instrumento que literalmente organizasse e centralizasse as lutas nos termos do marxismo. Os partidos comunistas naquele ano eram pequenos e inexpressivos, os partidos da ordem estavam desmoralizados. Trabalhadores frequentavam os atos, mas não se sentiam representados por nenhum programa unitário, nenhuma organização que visasse a tomada do poder político. Aos olhos da grande burguesia, seu inimigo (o povo) estava disperso, sem sigla, sem sindicato, sem liderança. Apenas com sua vontade de luta e suas pautas dispersas. O palco (a rua) passou a ser tão “livre” quanto prega o conceito liberal de liberdade, atraindo, no final, inclusive, setores fascistas.

Hoje temos a devida distância histórica para concluir que o anti-partidarismo e o apartidarismo, em todas as suas formas de manifestação, há de ser superado antes que uma nova onda de protestos aconteça e seja novamente cooptada; antes que uma nova jornada esteja na ordem do dia sem que estejamos preparados. Aprendemos que, quando tais princípios norteiam um movimento ou frente, tanto este pode se disseminar em massa e nos provocar esperança, como pode tomar uma forma de democratismo sem cunho partidário cujo limite já vimos qual é: quebrar agências bancárias sem impactar os bancos, subir no prédio do Congresso sem impactar o Poder Legislativo, provocar o recuo temporário da burguesia mas não travar uma luta contínua, gritar “não é só pelos 20 centavos” mas não ter um programa nacionalizante para propor, etc. No plano da propaganda revolucionária, portanto, quaisquer estímulos à não-partidarização da classe trabalhadora pode ser mais despolitizante ainda frente ao nosso momento histórico.

1. Marxismo apartidário

Mesmo depois das jornadas, o apartidarismo se manteve presente no debate político, nas manifestações culturais (alguns círculos do movimento hip-hop por exemplo) e nas periferias. Muitos que se aproximaram da luta popular na última década desenvolveram certo receio de entrar em partidos por terem sido contaminados por essa desilusão. Ainda é comum ver personalidades políticas e até mesmo coletivos estimulando o apartidarismo nos novos simpatizantes. É o caso de um estudante e palestrante conhecido nos círculos de esquerda e na juventude. Neste texto não irei me referir a ele utilizando seu nome verdadeiro para evitar maiores perseguições, pois nos últimos meses a justiça burguesa e seus defensores fascistas têm tentado prejudicá-lo pessoalmente. Não pretendo contribuir com o clima perseguição. O objetivo do meu texto é apenas contrapô-lo política e respeitosamente. Por isso, o chamaremos de palestrante.

No Youtube, quando critica as mazelas do capitalismo e explica a política em termos básicos aos trabalhadores e estudantes, palestrante cumpre um papel admiravel. Mas em sua rede social mais frequente, o Instagram, revelou seu lado estimulador do apartidarismo em diferentes momentos. Respondendo a pergunta de um seguidor, disse que a revolução brasileira não será dirigida exclusivamente por um partido de vanguarda. Mas não para por aí. Ao mesmo tempo em que se coloca como um marxista, palestrante acredita que um comunista não deve priorizar a adesão a um partido, mas sim a uma “organização política”, sobretudo.

Seguidor(a): “acha que pra “ser comunista” precisa estar, necessariamente, dentro de um partido político?”

Palestrante: “Não. Eu mesmo não estou e nem pretendo. É importante que esteja dentro de alguma organização política, que pode ou não ser um partido. Eu, por exemplo, estou em um movimento social”.

Eu responderia de maneira diferente. Acredito que a revolução brasileira, num primeiro momento, pode ser obra de um bloco anti-capitalista, um bloco revolucionário do proletariado. Mas no interior desse bloco anti-capitalista certamente haverão diferentes táticas e projetos de poder. Por esse motivo, eu responderia o seguidor da seguinte forma: “Sim. Se você se considera marxista, prioritariamente, precisa querer atuar por um partido. Mas enquanto não decide, não deixe de participar de atividades diversas, não se pressione e estude com calma os partidos comunistas nacionais”. A pessoa que faz a pergunta da maneira como o palestrante recebeu, provavelmente, já se considera no dever de agir. Ela só precisa saber como e por qual instrumento. Se ela perguntou sobre a necessidade ou não de ser em um partido, é porque já sabe que deve “se organizar” em termos genéricos.

Dizer que o partido não é o instrumento central, no atual grau de acirramento da luta de classes, oferece a possibilidade a quem se aproxima da política de se afastar do partido, correndo o risco de perdê-lo para o democratismo, horizontalismo, obreirismo e anti-dirigismo. Meu receio é que no lugar de um quadro político profissional nos termos de Lênin, esse novo-militante se torne um mero tarefeiro de organizações isoladas. Meu receio é que ele se conforme com um nível organizativo menos avançado do que deveria. É como se já não estivéssemos esperimentado o gosto do apartidarismo nas ruas.

Para contrariar supostas definições estatistas e burocráticas sobre “ser comunista”, também numa caixa-de-perguntas do Instagram, palestrante respondeu aos seus seguidores em tom de conselho, que, ser comunista é “espalhar as ideias comunista pelo máximo de lugares possível” e que “o comunista é aquele que se arma da ciência marxista e com ela age para transformar a realidade”. Marx e Engels defenderam a indispensabilidade dos partidos exaustivamente como pudemos ver no decorrer do texto. Na contra-mão disso, palestrante defende a não é necessário. “Agir cientificamente para transformar a realidade”, de acordo com o marxismo, seria justamente se armar dos acúmulos do socialismo-científico, dos avanços do marxismo. Armar-se não só dos acúmulos históricos e filosóficos, mas, na mesma medida, dos princípios organizativos fundamentais.

Em “As tarefas urgentes do nosso movimento” (1900), Lênin já respondia àqueles que não eram específicos quanto ao tipo ideal de organização para a classe trabalhadora. Disse o seguinte:

“‘Organizai-vos!’, repete aos operários nos mais diversos tons o jornal Rabótcheie Mysl [Pensamento operário], e com ele todos os partidários da corrente economicista. Como é natural, solidarizamo-nos inteiramente com este apelo, mas acrescentando: organizai-vos não só em sociedades de ajuda mútua, em caixas de resistência e em círculos operários, mas também num partido político, para a luta decidida contra o governo autocrático e contra toda a sociedade capitalista. Sem esta organização, o proletariado não é capaz de se elevar ao nível de uma luta consciente de classe; sem esta organização, o movimento operário está condenado à impotência; exclusivamente com as caixas de resistência, os círculos e as sociedades de ajuda mútua, a classe operária não conseguirá jamais cumprir a grande missão histórica que lhe está reservada; emancipar-se a si mesma e emancipar todo o povo russo da sua escravidão política e económica. Nenhuma classe conseguiu instaurar o seu domínio na história, sem criar os seus próprios chefes políticos, os seus representantes de vanguarda, capazes de organizar e dirigir o movimento.” (LÊNIN, 1900)

Toda a citação acima, assim como as outras citações marxistas que apontam para a indispensabilidade dos partidos, já são o bastante para responder às colocações sobre organização.

Passemos, então, a um outro ponto: a composição sócio-racial dos partidos.

Em outra postagem e num outro dia, diante de uma pergunta parecida com aquela que já tratamos – sobre um partido de vanguarda ser necessário para guiar a revolução brasileira – palestrante respondeu:

“Quando olho pros ditos ‘partidos de vanguarda’, repletos de universitários brancos de classe alta da Santa Cecília, só consigo achar engraçado que essas pessoas pensem que um mlk favelado, motoboy do iFood morador da Cid. Tiradentes vai parar pra obedecer um panguão desses que não sabem nem pegar a linha 11 Coral pra chegar em Guaianases ou a mina preta que mora em Parelheiros…”

Não concordo com essa visão. Na zona leste de São Paulo as ideias socialistas não chegaram ontem, ou seja, existem células socialistas há muito tempo (eu só não posso ser mais específico e falar nome de locais por questões de segurança e privacidade partidária). Entre os militantes ‘de quebrada’ e de vanguarda que eu conheço na zona leste, existe entregador, desempregado(a), artista independente e outros setores precarizados. Além da atuação por outras frentes, esses trabalhadores precarizados costumam fazer panfletagem em seus bairros convidando a população a conhecer seus partidos de vanguarda. E eu garanto ao palestrante que eles sabem muito bem o que estão fazendo e que eles não “obedecem” ninguém em particular. Diferente disso, eles se submetem a rígidas regras coletivas, regras que podem ser construídas por eles mesmos através de congressos e afins. São periféricos que constroem o instrumento-guia da revolução, sua própria burocracia partidária. Não o fazem passivamente.

É curioso o fato do palestrante receber aulas na USP de vários universitários da classe média, gostar de Che Guevara e divulgar Engels, mas, no momento oportuno, colocar como “panguão” o simples universitário que adere a um partido de vanguarda. Quando o palestrante aprende os conteúdos dos universitários médios de sua faculdade, é como se estivesse se emancipando. Mas quando são outros periféricos acreditando em outros universitários – seguindo a lógica do palestrante – é como se esse periférico estivesse “caindo nas ideias de um panguão”. Por que a diferença? Isso não me parece um tratamento científico.

E, francamente, a Santa Cecília nem é um bairro de classe alta.

Em torno disso tudo, existe uma premissa correta. Talvez seja por isso que o palestrante costuma convencer algumas pessoas nesse ponto. A premissa é: no movimento comunista partidarizado há menos pretos e periféricos do que deveria e isso se reflete na limitada produção política e intelectual. Já é sabido que o movimento comunista se “desproletarizou” no século XXI por inúmeros motivos. Mas eu discordo quando ele diz que um comunista não deve priorizar os partidos hoje atuantes e em seguida estigmatiza os mesmos. Pelo contrário, acredito que esse quadro de dificuldades temporárias deveria ser um estímulo para os trabalhadores pobres se lançarem cada vez mais aos partidos e eles próprios corrigirem suas “linhas tortas”.

Em outra publicação, também pelo Instagram, com a intenção de medir utilidades, o palestrante comparou individualmente o potencial de um pedreiro sem partido que espalha ideias revolucionárias versus um típico militante de classe média do movimento estudantil partidarizado. Palestrante acredita que o primeiro personagem contribui muito mais à construção da revolução do que o segundo. Ele precisou criar uma situação hipotética onde o pedreiro seria necessariamente não-estudante e o estudante seria necessariamente distante do povo. Criou um cenário que estimula a pessoa a pensar que não existem pedreiros nos partidos e que militantes de DCEs e CAs são necessariamente ruins e playboys.

Não acho justo comparar o melhor pedreiro “propagandista” com o pior estudante médio partidarizado. Assim fica fácil! Ppor que não comparar o potencial revolucionário do comunista periférico partidarizado versus o pedreiro sem partido? Por que não comparar os potenciais de um playboy apartidário versus playboy comunista e partidarizado? Isso, sim, seria justo. Palestrante sabe que os partidos comunistas têm formado quadros nas periferias, embora em ritmo lento. Ele sabe que “ontem” quase não haviam quadros periféricos, “hoje” há alguns e “amanhã” haverá bem mais. Mas na hora de alfinetar a tal playboyzada, trata os partidos como se a vida fosse um eterno “ontem”. Esse tipo de comparação, da maneira como costuma ser feita, provoca o novo militante a se desencantar de qualquer tipo de admiração que ele possa ter criado pelos partidos, sem que dê tempo de ao menos conhecê-los com a profundidade necessária. Essas comparações diminuem o nível do debate. Ao invés de debatermos a tática e a estratégia adequada para a revolução brasileira, perdemos tempo tentando provar que existe trabalho na periferia e que nem todo partidarizado é playboy.

Se todos os trabalhadores envolvidos nos primeiros encontros da Liga e da Internacional Comunista tivessem essa mesma postura de um “revolucionarista anti-classe média”, o movimento proletário mundial mal teria começado devido a um preconceito mesquinho. O quadro de militantes de um partido ou de uma corrente comunista pode ser tão dinâmico quanto a luta de classes. Pode ser fluido. Tudo pode mudar com uma polêmica pública, com a difusão de um jornal, com o aprofundamento dos trabalhos, com a mudança radical da conjuntura, com uma reorganização interna, com um trabalho de base. Num país politicamente dinâmico como o Brasil, eu pensaria duas vezes antes de desacreditar dos partidos marxista-leninistas.

Nós, periféricos de partidos comunistas, não construímos esses partidos porque somos masoquistas ou algum tipo de massa de manobra, como pode parecer. Construímos porque entendemos que a tarefa central, a tarefa de classe, deve estar acima do nosso “ranço” com o partido A, B ou C. Construímos partido porque compreendemos que os momentos de dispersão não são eternos, mas uma situação histórica provavelmente passageira. É ingenuidade acreditar que nós, negros periféricos, exercemos, via de regra, um papel passivo no interior dos partidos. Para além de uma ofensa, é ingenuidade achar que nós somos “cota do partido” – ofensa que, meses atrás, o palestrante dirigiu a mim.

O próprio Marx, seus antecessores utópicos e tantos outros comunistas eram intelectuais de classe média. Engels foi o filho rebelde de um industrial rico, era um homem de classe alta. No tempo de Marx e Engels (para não citar egípcios e gregos antigos), enquanto alguns escreviam sobre o presente e o futuro, os trabalhadores trabalhavam, na maioria das vezes manualmente e por mais de 14 horas por dia. Enquanto jornalistas, estudantes, advogados, industriais, políticos e filósofos produziam ciência, os trabalhadores mal tinham tempo para ler sequer um panfleto. Isso é triste, mas não é algo novo na história da humanidade. Mas nem por isso deixamos de colher as contribuições desses intelectuais para construir nossa visão de mundo e nosso próprio mundo.

É certo que nós, comunistas, ainda temos muito trabalho pela frente no que diz respeito à disciplina organizativa, propaganda, diversidade sócio-racial e de gênero. Enraizar-se nos bairros populares, nas grandes empresas e no campo, há cerca de vinte anos, é a meta de todas as organizações comunistas do Brasil a fim de corrigirem sua baixa relevância nas periferias, no movimento sindical e no campo. A historica fala de Mano Brown no comício de Haddad (PT) e Manuela D’Ávila (PCdoB), apelando para que voltássemos para base “pra aprender”, não foi dirigida a um partido específico. A mensagem foi dirigida para o conjunto dos partidos. Naquele momento, não éramos só nós, os comunistas, que estávamos pendentes com esse enraizamento. Era toda esquerda.

Hoje, no Brasil, consideradas as particularidades nacionais e alguns avanços nos direitos trabalhistas, vivemos esse mesmo dilema da luta de classes. A literatura, os meios de produção intelectual e os debates filosóficos ainda são mais comuns nas faculdades de ciências humanas. As universidades, especialmente as da rede pública, são predominantemente brancas e de classe média, desde sempre. E indo de encontro a essa dimensão do problema, contribuiu para a baixa proletarização das fileiras comunistas a dura repressão sofrida durante a ditadura empresarial-militar. A ditadura prendeu, torturou e matou lideranças populares importantes, que tinham inserção nos bairros e sindicatos. Enquanto movimento comunista, entramos no presente século fortemente desfalcados.

2. Os autonomistas

Existem diferentes tipos de apartidários: anarquistas, comunistas em formação inicial, comunistas “perdidos”, comunistas dispersos, comunistas com medo do “stalinismo”; revisionistas, garveystas, anarco-comunistas e anarco-sindicalistas. Sobretudo, autonomistas. Por estarem dispersos entre si, os motivos que os levam a desacreditar dos partidos comunistas são diferentes um do outro. Quando não se colocam abertamente contra os partidos no geral, estimulam o apartidarismo implicitamente fazendo generalizações ruins como, por exemplo, o uso da noção de “esquerda institucional” no lugar de “esquerda reformista”, colocando os leninistas na mesma panela dos pelegos. Os autonomistas, suas vulgarizações e análises imprecisas, quando conseguem, afastam os lutadores sociais não do reformismo, mas dos partidos leninistas. Se por um lado, em contato com o marxismo-leninismo, o novo comunista costuma superar esses preconceitos sem perder seu ódio de classe, por outro lado, em contato com o autonomismo, ele encontra um ambiente favorável ao revolucionarismo sem cunho partidário.

Uma organização chamada F.O.B., identificada com o anarquismo federalista, é exemplo de plataforma estimuladora do apartidarismo. Em seu estatuto, proíbe a filiação de membros de partidos que participam das eleições (art. 96), mas permite a filiação de pessoas “independentemente de suas convicções políticas, religiosas e filosóficas” (art. 93). Trata como potencialmente revolucionárias pessoas com qualquer convicção ideológica, mas proíbe a entrada de quem faz parte de uma organização que usa o momento eleitoral. É aí que surgem duas dúvidas: quais partidos revolucionários no Brasil poderiam entrar nessa lista, uma vez que os comunistas minimamente relevantes participam do momento eleitoral? Com qual tipo de revolucionário a F.O.B. pretende lutar? Não consigo pensar em boas respostas. Seria mais coerente a F.O.B. se render de vez ao anti-partidarismo e proibir todos os partidarios.

O risco de cair no radicalismo esquerdista através dessa tendência é tão real que durante a eleição mais importante da história recente, entre Lula e Bolsonaro, a F.O.B. defendeu o boicote eleitoral como um “instrumento de luta” para derrotar o fascismo. Se abstiveram diante da escolha simples entre um governo de conciliação petista versus um governo liberal-fascista, como se o grau de perseguição política, anti-comunismo e negacionismo científico fosse o mesmo entre os dois blocos; como se as possibilidades de conquistas políticas para os trabalhadores fossem as mesmas.

Partidos revolucionários identificados com o leninismo também boicotam eleições burguesas, mas apenas quando submetidas ao cálculo da correlação de forças. Contra o esquerdismo abstencionista nas eleições burguesas, Lênin disse em 1920:

“na combinação das formas de luta legais e ilegais, parlamentares e extraparlamentares, é, às vezes, conveniente e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares. Mas transportar cegamente, por simples imitação, sem espírito critico, essa experiência a outras condições, a outra situação, é o maior dos erros.” (LÊNIN, 1920)

Diferente dos leninistas, na sede de parecer mais radical, mais à esquerda, os autonomistas no Brasil costumam boicotar as eleições burguesas em todas as suas edições.

Nos últimos 20 anos, os partidos leninistas defenderam diferentes agendas de luta, criaram programas eleitorais, chapas sindicais, conferências, congressos, amadureceram recursos materiais, se inseriram em ocupações urbanas, se inseriram em comitês de bairro, aumentaram a influência entre os artistas, cresceram nas mídias digitais, nas universidades públicas, dentre outros feitos. Fez menos do que precisávamos, mas rendeu o acúmulo teórico e prático que, na última década, os autonomistas só puderam ter em menor escala. Futuramente essa mesma práxis será a referência-base para novos programas, novas leituras de conjuntura, novas denúncias políticas e novos materiais teóricos para novos militantes.

Um novo militante deve entender que disputar eleições burguesas, possuir quadros de classe média e evitar participar de ações diretas mal organizadas não são sinônimos de “menos radical”. Um novo comunista não deve sentir receio de entrar em um partido por tais caraterísticas.

Considerações finais

Devemos incentivar, sim, o novo militante da causa dos trabalhadores a construir um partido, para através dele atuar nos diferentes movimentos, coletivos, frentes, entidades, associações e afins. E caso esse militante não se sinta preparado, não precisa se sentir pressionado, basta continuar atuando nas atividades que julgar necessárias. Mas jamais negar ou renunciar completamente à necessidade de militar em um partido revolucionário. Jamais cair no vício horizontalista de pautar os partidos pela ótica da autoridade. A história do socialismo nos demonstra o limite da negação aos partidos e isso não deve ser tratado por nós apenas como história, mas sim como acúmulo político-organizativo.

Se as fileiras dos partidos comunistas hoje também não retratam exatamente a diversidade sócio-racial da classe trabalhadora, se as lutas de massa acontecem a todo vapor fora do controle e da direção de um partido comunista, isso não deve ser motivo para considerar superada a forma-partido; pelo contrário, isso deve ser apenas mais um motivo para que os trabalhadores se lancem em uma intensa partidarização. A malícia, a fissura de um comunista periférico, assim como de qualquer trabalhador de luta, deve ser justamente a de consertar as linhas tortas de um partido revolucionário. Não devemos nos comportar como os “de baixo” contra a esquerda e a direita, mas sim como os de esquerda que vieram de baixo!

A forma-partido continua atual e necessária. Entendo que a tarefa de todos os trabalhadores de luta é aderir um partido comunista, enriquecê-lo e fortalecê-lo. Numa situação revolucionária, no decorrer das disputas operárias mais intensas, os trabalhadores mais profissionalizados e mais maduros disputarão a liderança da revolução. O tempo das causas justas, do “performismo” revolucionário e das boas intenções será uma mera página virada. A Comuna de Paris e a Greve Geral (brasileira) de 1917 são saudosas, mas deixaram suas lições organizativas com relação a isso. A contra-revolução burguesa direta, assim como o oportunismo de esquerda, é sempre muito forte. E para evitar desastres, no momento oportuno, o proletariado brasileiro deve estar armado com seu instrumento forte para golpear o inimigo com firmeza, da forma menos dispersa possível.

Deixo a minha humilde sugestão: construa o PCB e seus coletivos de luta.

Objetivamente:

Devo me organizar em um partido comunista para me considerar comunista?

Prioritariamente, sim. Mas você mesmo(a) pode determinar seu próprio tempo de reflexão e estudo necessários para escolher com segurança. Estude com atenção e procure falar apenas sobre aquilo que conhece no mínimo em termos básicos. Se seu interesse for se colocar como marxista, seja consequente com os princípios gerais do marxismo.

Precisaremos de um partido para organizar a revolução?

Sim, porque, independentemente do interesse dos apartidaristas, os partidos comunistas continuarão crescendo e serão, sim, determinantes em um eventual processo revolucionário, seja no primeiro momento ou nos demais estágios revolucionários.

Referências bibliográficas

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