Cena política, Estado e capitalismo: para além da “repressão-ideologia”

Por Lucas Barroso Rego

POULANTZAS, Nicos. “Os aparelhos ideológicos: o Estado, repressão + ideologia?”. In: SILVEIRA, Paulo (Org.). Poulantzas: sociologia. São Paulo: Ática, 1984. p. 77-83.

Inserido na dicotomia entre aparência e essência, Marx (2006, 2015) apresenta uma conceituação interessante de “cena política”. Em sua concepção, esse conceito estaria relacionado ao “espaço de luta entre partidos e organizações políticas, como uma espécie de superestrutura da luta de classes e de frações de classe, que formam aquilo que poderíamos denominar a base socioeconômica da cena política” (BOITO, 2007, p. 139). 

Na visão marxista, a cena política moderna possuiria especificidades que a diferenciariam, por exemplo, das instituições representativas das sociedades pré-capitalistas. Ela seria, portanto, resultante, segundo Boito (2007), das características gerais do próprio Estado capitalista moderno, o que, por sua vez, demandaria a existência de uma aparência universalista que minimamente sirva para garantir as trocas no sistema burguês.

A figura estatal, portanto, é central nesse debate. De acordo com Aron (2002), o Estado seria um corpo político que abrigaria regimes de leis determinantes para práticas sociais e de seus julgamentos morais. Além disso, esse mesmo Estado seria, nos sentidos jurídico, moral e histórico, uma personalidade e, por isso, detentora de uma vontade própria, o que resultaria em sua própria pluralidade e diversidade (ARON, 2002). É nesse ponto que Skinner (1996) afirma que o Estado Civil teria sido o elemento fundante da modernidade em escala ocidental.

No cerne dessa discussão, cabe apontar que esfera do Estado foi e continua sendo central para o desenvolvimento capitalista. Entender os aparatos estatais, portanto, é um caminho interessante para entender o próprio capitalismo em si e a cena política moderna. Nessa direção, destaca-se o clássico texto “Os aparelhos ideológicos: o Estado, repressão + ideologia?” (1984), escrito por Poulantzas e publicado pela primeira vez em 1978. O texto é o objeto que será analisado criticamente pela presente resenha.

O autor Nicos Poulantzas (1936-1979) nasceu na Grécia e radicou-se na França a partir da década de 1960. Formou-se em Direito pela Universidade de Atenas. Lecionou na  Sorbonne e foi um dos editores do jornal Les Temps Modernes. Destacou-se, juntamente com outros intelectuais franceses, dentre os quais Louis Althusser e Étienne Balibar, pelas investigações realizadas no campo do marxismo que, até aquele momento, passava por um longo período de hibernação.

O texto analisado está inserido nos debates poulantzanianos acerca da natureza e da crise atual do Estado capitalista, a partir de sua perspectiva marxista em torno das classes sociais e das lutas de classe. Nessa análise teórica, Poulantzas (1984) concentra seus esforços em entender o papel dos aparelhos estatais para além da repressão e da organização da ideologia dominante. Nesse caminho, as principais referências utilizadas pelo pensador resenhado rondam em torno de Louis Althusser e Perry Anderson.

Em primeiro lugar, o autor apresenta a sua concepção a respeito do papel estatal nas sociedades capitalistas. Para Poulantzas (1984), a ação do Estado não se limitaria ao mero exercício da repressão física organizada. Para além da mera repressão, os aparelhos estatais, em sua visão, atuariam também na constituição das relações de produção, na delimitação e reprodução das classes sociais e na organização das relações ideológicas e da ideologia dominante.

Em seguida, o pensador aborda a questão ideológica e sua relação nesse processo. Para Poulantzas (1984), a ideologia estaria revestida por um viés político de classe, sobretudo o da classe dominante, no qual, por isso, influiria na organização dos próprios aparelhos de Estado. Em suas palavras, “a ideologia não é algo neutro na sociedade: só existe ideologia de classe. Em especial, a ideologia dominante consiste num poder essencial da classe dominante” (POULANTZAS, 1984, p. 77). 

Sob a égide de uma ideologia dominante, as relações ideológicas seriam, segundo Poulantzas (1984), basilares na reprodução do capitalismo, pois atuariam na constituição das relações de propriedade e na divisão social do trabalho. Seriam essas relações que garantiriam, por exemplo, uma dominação econômica sobre as classes pauperizadas. Nesse cenário, a perpetuação dessa relação também garantiria uma dominação política, no qual seria a partir daí que o Estado burguês mostraria sua verdadeira face na luta de classes. 

Nesse sentido, o autor aponta que os aparelhos estatais, para além da repressão, força e violência, também apelariam para a ideologia, enquanto legitimadora das suas próprias ações repressivas e criadora de consenso entre classes e frações dominadas. Assim, a imbricação entre ideologia dominante e Estado garantiria a própria organização do capitalismo, visto que, em sua visão, seria imprescindível, por exemplo, na constituição e na reprodução da divisão social do trabalho, das classes sociais e da dominação de classe (POULANTZAS, 1984). Eis aqui o motivo da formação dos aparelhos ideológicos de Estado, tais como os aparelhos religioso, militar, escolar, cultural e de informação.

Uma vez que o corpo não seria uma mera naturalidade biológica mas sim uma instituição política, a relação do Estado com ele, segundo Poulantzas (1984), seria complicada, extensa e coerciva. Um dos registros disso pode ser visto em torno do controle de corpos a partir de instituições estatais que utilizam de meios físicos, da manipulação, do constrangimento corporal e da permanente ameaça de mutilação, como é o caso da prisão, do exército e da polícia, por exemplo. 

Não é à toa que, após a eclosão da Revolução Francesa, em 1789, Clausewitz, em Da guerra (1996), percebeu a influência decisiva do povo na guerra, desde que ela se tornou uma questão de Estado no século XIX. A partir do século XIX, as guerras, por exemplo, passaram a ser produto de toda uma nação, encabeçadas pelos Estados nacionais, que desempenham um papel central de domínio interterritorial. Consolida-se, assim, a famosa tríade clausewitziana: “Estado-exército-povo” (CREVELD, 1991)

Outro elemento dessa coerção pode ser visto a partir da instauração de uma ordem corporal que atuaria tanto na delimitação quanto na reprodução dos próprios corpos sociais. Quanto a esse controle concreto e subjetivo de poder sobre a vida, o que vem primeiro à mente é Foucault (1979) e Mbembe (2016), mas, aqui, Poulantzas (1984) traz uma contribuição substancial para o pleno entendimento da noção de “biopolítica” – mesmo que ele não use esse termo foucaultiano – e seu impacto na cena política capitalista.

Nesse contexto, o autor aprofunda acerca da repressão. Em linhas gerais, Poulantzas (1984) entende “repressão” como uma violência física organizada direcionada à ameaça a partir da coerção dos corpos, sendo esta última “um dos aspectos essenciais do poder, a condição de sua instauração e de sua manutenção” (POULANTZAS, 1984, p. 78). Nessa direção, para o autor, não haveria uma grande distinção prática entre os aparatos repressivos e ideológicos de um Estado.

Nesse caminho, o pensador, porém, critica a antiquada “filosofia jurídico-política” que vê os órgãos estatais apenas como agentes restritivos e enganadores. Nessa direção, o autor aponta que, de modo ampliado, o Estado não age apenas pela repressão desmedida e inculcação ideológica, mas também pela criação de consensos, organização de equilíbrios, transformações de relações e reprodução ativa do capital. Para entendê-lo plenamente, seria preciso, portanto, apreendê-lo para além do binômio “repressão-ideologia”.

Por fim, o autor traz um debate sobre a pluralidade estatal. Em oposição à noção limitada de Estado unificador, Poulantzas (1984) atribui um caráter plural e diverso a ele, aos moldes de Aron (2002). Em sua concepção, a sua multiplicidade resultaria na extrapolação do mito de discurso unificador atribuído a ele. Em seu lugar, residiriam diversas estratégias de criação de consenso e seria, para isso, que ele formularia múltiplos discursos voltados às camadas que se quer reproduzir um determinado poder.

A partir de uma importante reflexão teórica, o texto traz contribuições substanciais à historiografia e sociologia contemporâneas. Se antes do ingresso do capitalismo no estágio imperialista, o Estado, enquanto ferramenta econômica, agia esporadicamente como “cioso guardião das condições externas da produção capitalista” (NETTO, 2009, p. 24, grifos do autor) e intervia apenas de forma emergencial para garantir a produção capitalista e a propriedade privada dos meios burgueses de produção, agora, com a reformulação monopolista e imperialista, o Estado, em sua nova modalidade de intervenção, tem suas funções políticas imbricadas indissociavelmente com funções econômicas. Isto é, agora ele age sistematicamente e continuamente na organização e na dinâmica econômicas, sociais e organizacionais da cena política moderna. 

Conclui-se, portanto, que, além da manutenção física e repressiva da força de trabalho, o Estado também age por meio da organização simbólica, coesiva e consentida das classes dominadas. Essa intervenção é um elemento novo no cenário social, porque, se antes, no capitalismo comercial, a intervenção estatal era básica e coercitiva às lutas das massas exploradas e/ou à urgência de preservar a propriedade privada burguesa; no capitalismo moderno, controlar e preservar a força de trabalho é função estatal de primeira ordem. Ou seja, ele precisa, para além da repressão, gerenciar a reprodução e a manutenção da mão de obra, bem como ser responsável por garantir o consumo e a sua alocação em função das necessidades dos grupos dominantes.

Entretanto, é sempre importante pontuar que mesmo com mudanças e adaptações, a essência contraditória do capitalismo, analisada por Marx (2006, 2015), mantém-se intocável e é até potencializada, a partir da combinação de novas contradições e antagonismos, agora impactados pela ideologia e repressão, mas não só. A cena política moderna sim é um “campo de luta” (BOITO, 2007, p. 139), mas também um lugar distensionado de construção de consensos, organizações simbólicas e elaboração de equilíbrios.

REFERÊNCIAS

ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

BOITO, Armando. Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos. São Paulo: Editora UNESP, 2007. 

CARRILHO, Maria. Principais tendências na sociologia militar: literatura e selecção bibliográfica. Nação e Defesa, Lisboa, p. 157-169, 1978.

CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

CREVELD, Martin van. The transformation of war. Nova York: The Free Press, 1991.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979

LASSWELL, Harol. The Garrison State. American Journal of Sociology, v. 46, p. 455-468, 1941.

MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006.

MARX, Karl. As lutas de classes na França. São Paulo: Boitempo, 2015.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, p. 123-151, dez. 2016.

MENDONÇA, Sônia Regina. O Estado ampliado como ferramenta metodológica. Revista Marx e o Marxismo, v. 2, n. 2, 2014. Disponível em: https://niepmarx.blog.br/revistadoniep/ index.php/MM/article/view/35/32. Acesso em: 05 ago. 2022. 

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2009.

POULANTZAS, Nicos. “Os aparelhos ideológicos: o Estado, repressão + ideologia?”. In: SILVEIRA, Paulo (Org.). Poulantzas: sociologia. São Paulo: Ática, 1984. p. 77-83.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

TREMONTE, Thiago. “Clausewitz e o senso nacional”. In: CHAGAS, Fabíola Maria da Silva; LOUREIRO, Marcello José Gomes; PAULA, Luiz Carlos Carneiro de; RESTIER JUNIOR, Renato Jorge Paranhos (Orgs.). A Guerra e a Formação dos Estados Nacionais Contemporâneos. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013. cap. 1. p. 13-32.

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