Por Philippe Campos
O texto vai de encontro à visão que propõe significar o cenário político atual sob o epíteto “neofascismo”. Acredito que essa alcunha fixa observador e objeto analisado em vez de nos permitir fazer perguntas interessantes sobre o porquê de nos encontrarmos nesse atual estado. Não pretendendo analisar toda a massa predicada por “neofascista”, é certo que há, ali, fascistas, há também gente revoltada, homem ressentido etc. o foco será numa parcela considerável (possível ser até a maioria) proveniente das igrejas evangélicas, o neopetencostalismo. Num primeiro momento encontramos a análise do neopetencostalismo como um movimento de gente iludida, uma lavagem cerebral, uma sandice, contudo, se observado mais de perto, o objeto se revela mais complexo, ou pior, racional.
Religião: o elogio de Marx e o materialismo de Hegel
A comparação entre ópio e religião é anterior a Marx, a coisa já havia sido feita por uma porção de gente – Novalis, Heine, Kant, Sade etc. –; para esses autores, a religião operava como um anestésico. A ideia da metáfora é a de que, numa existência terrena atroz, a religião anestesia o sujeito, o faz suportar a vida.
Ao contrário dessa galera, Marx, um sujeito de bases dialéticas, oferece como que um twist ao efeito torporífero da religião. Dirá: “A religião é suspiro da criatura oprimida, a alma, a disposição [Gemüt] de um mundo sem coração, assim como o espírito [a mente] dos estados de coisas sem mente, insanos [geistloser]”: a religião não só anestesia ou faz alucinar, ela é, também, o suspiro, a alma e a mente de um mundo sufocante, embrutecido e insano. Só depois de dizer do direito e do avesso, no fim da linha, o Marx vai dizer, é o ópio do povo.
A coisa não para por aí. As coisas que existem no mundo não podem simplesmente não existir, nenhuma formação antropológica existe ali como apêndice social ou é descartável. De modo que podemos dizer que, se a religião existe, é porque ela responde a necessidades estruturais de uma cultura – daí Marx continuar: “A supressão da religião como felicidade ilusória do povo, é a exigência da felicidade real [do povo]”. O que a religião realiza ilusoriamente? Além da felicidade, já mencionada por Marx, a religião realiza ilusoriamente a justiça – posto que, se não há justiça entre os homens, há a justiça divina –, a religião realiza ilusoriamente a igualdade – se no mundo reina a desigualdade e os privilégios, todos somos iguais perante Deus. Daí, ele continua: “A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição, é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões”; ou seja, a menos que se resolva no plano da realidade aquilo que a religião resolve no plano imaginário, seguiremos construindo soluções imaginárias para problemas reais.
Assim, Marx faz ver o outro lado da comparação entre religião e ópio, a religião não só eteriza o povo, mas é, igualmente, uma espécie de avesso do ópio, é razão, alma, coração…
Hegel nota um aspecto mais materialista presente nas religiões que Marx. A obra ou a materialização do espírito: o templo, o monumento, a estátua… cada povo constrói uma obra que é a representação do Espírito desse povo, Espírito aqui entendido como uma forma que compreende a sociedade, o psiquismo ou, se quiser, a cultura daquele povo. O que eram as religiões egípcia e grega? Eram representações de um estatuto da própria sociedade egípcia e grega. No Egito, segundo Hegel, temos uma sociedade onde muito se trabalha e pouco se produz, o tempo de fruição da vida é abreviado pelas dificuldades impostas pela aridez do ambiente, logo, esse povo constrói monumentos que só são habitados depois da morte, porque a vida é a vida de penúria. Por outro lado, os deuses gregos, representações ideias ou idealizadas do homem, habitam os templos, o filósofo conclui daí que é uma vida dedicada ao culto do homem, ao artista que tem tempo livre para produzir linhas curvas e colunas onduladas, em oposição à linha reta egípcia, que é simplesmente útil. Na primeira sociedade se trabalha, é o artesão, na segunda, se goza, é o artista.
Enquanto essas religiões afirmam o caráter da sociedade, a peculiaridade do cristianismo reside em seu aspecto de transcender a sociedade na qual encontra-se inserido, a ideia de paraíso, de justiça divina, amor, igualdade, não replica o estado de coisas, antes, promove uma adulteração desse estado, uma imaginação melhorada do mundo. Reprodução essa que nega o mundo: a) virtualmente, posto que o paraíso não se encontra no sublunar; e b) materialmente, isto é, os cristãos, a partir dos ensinamentos de Jesus, devem realizar a comunidade cristã, sendo esta a obra de cristo, pois é ela que garante a entrada no paraíso celeste. Assim, o “outro mundo” imaginado pelo cristianismo não pode, somente, estar num outro lugar, deve ser empreendido terrenamente. – Um paralelo entre o judaísmo e o cristianismo, o primeiro não é militante, pois se trata de um povo escolhido pela linha do sangue, o segundo é militante, espalhar a palavra de salvação e efetuar a conversão é trabalho de todo cristão.
Sumarizando, a religião, o cristianismo, no caso, é razão (coração e alma), e, também, obra.
Breve esboço da arquitetura católica e neopetencostal
Qualquer um que vá a uma cidade pequena pode observar o que há no centro daquele lugar, uma igreja católica. Era em torno dessa construção que uma cidade se edificava. De modo que não é a igreja que se encontra localizada no centro, o centro é que está, ou estava, localizado na igreja. As quermesses, as festas temáticas, procissões, missa de domingo, eram o que vitalizava, escorava ou lastreava o fato daquelas pessoas coabitarem um espaço físico. Assim, a igreja não era mais uma dentre as construções, era um monumento narcísico da cidade. Era uma construção especial a qual os moradores esmeravam com dinheiro, fossem possuidores, ou com trabalho, fossem trabalhadores. Os santos escolhidos como padroeiros contavam a história de identificações do lugar (por que se apelava a esses emissários de Deus e não a outros?). Podemos dizer que tinha um pedacinho de cada um naquela coisa e cada um se constituía com um pedacinho daquilo.
As cidades cresceram, os trabalhadores foram empurrados para as periferias, as comunidades tendiam ao desfazimento, o rebanho de Cristo se separava. A solução para esse momento foram as ações pastorais. Grupos de voluntários que se propunham a não deixar o rebanho desassistido, levando o evangelho e outros tipos de ajuda. Essas ações promovem grupos de oração ou missas em lugares, por vezes, longes de uma igreja – fora da paróquia – e também ajudam com comida, roupa de frio, assistência de saúde, informação – vide o programa de redução da mortalidade infantil realizado pela Dra. Zilda Arns no município de Florestópolis. Contudo, supomos, o ritmo de crescimento das cidades foi superior à velocidade em que as ações pastorais conseguiriam alcançar.
Daí surge o contexto propício para igrejas alternativas à católica. De início, as igrejas neopetencostais se constituem alugando cômodos comerciais das periferias, por vezes cômodos muito pequenos, bares, restaurantes ou lojas de material de construção que fecharam. De início, sabemos bem que as frequenta, é gente sem esperança e gente sem a roupa da missa de domingo, mas, por algum motivo, não têm maiores problemas em entrar naquele lugar humilde em trajes maltrapilhos. Parece haver um outro clima naquele ambiente. Enquanto as igrejas católicas localizadas nos centros apresentam uma tendência à elitização, o povo dos cantos da cidade não se sente constrangido em entrar nos templos improvisados. De alguma maneira, o povo desse templo parece ser surrado como o povo que entra nesse templo, a igreja mesmo é austera, como são austeros seus habitantes. E essas igrejas são descentralizadas, como o são seus habitantes. A miríade de igrejas evangélicas pode chegar onde a igreja católica não chega.
Me refiro aqui, naturalmente, ao momento de fundação desses templos, alguns dos quais pude acompanhar.
Venha a nós o Vosso reino
Voltando a Marx e seu elogio à religião. As pessoas convertidas a essa nova corrente cristã encontram um ânimo, uma mensagem de esperança e uma racionalidade que são contrários ou negam o mundo desalentador no qual vivem. Os habitantes de áreas vulneráveis necessitam da fé, pra andar na rua, pra ir pra um trabalho de merda, pra ficar em baixo da chuva de tiro…
Por outro lado, o que esse povo ganha quando entra para a igreja, além de esperança, ânimo e compaixão? Me lembro da entrevista do Silas Malafaia dada à Marília Gabriela; ela diz que ele pega dinheiro de pessoas pobres, que estão na penúria, o Silas responde algo como: “uma pessoa, você pode enganá-la por três meses, por seis meses, mas se ela não tem retorno ela te abandona, não se pode enganar alguém por anos”. Pois bem, qual o retorno obtido por aquele que se converte?
O cara quando compra o terno, deixa de ser visado pela polícia – em certa medida, até os traficantes respeitam quem virou irmão –, quando ele entra para a igreja, ele deixa de beber – comprometer cem ou duzentos reais da renda mensal no bar é muito dinheiro e cerveja é muito caro –, os irmãos se ajudam mutuamente – se o irmão abre uma carrocinha de cachorro-quente, os irmãos vão todos lá comer para fortalecer o cara –, se, por acaso, abre um negócio, contrata os irmãos para lá trabalharem, se um irmão perde o emprego, ele vai encontrar ajuda com os irmãos da igreja (uma amiga disse certa vez que as igrejas evangélicas são como uma maçonaria de pobre); há algum tempo, o sujeito evangélico era sinônimo de bom trabalhador, alguém honesto que não roubaria seu patrão… Logo, é racional, é uma maximização de vantagens entrar para a igreja.
A menos que se enxergue o lado racional e materialista da religião, qualquer crítica empreendida, erra o alvo; e foi precisamente por essas razões, aliás perfeitamente empíricas e racionais, que o neopentecostalismo cresceu no Brasil (as projeções são de que os evangélicos, sob as atuais circunstâncias, passarão os católicos até 2040). E cresceu a ponto de o movimento mudar de escala, isto é, passaram à esfera do Estado.
É nesse ponto que nos encontramos, nós os chamamos fascistas por não disporem do jargão, do repertório esperado no pacto republicano – do qual, aliás, já não faziam parte. Não possuem os valores da gente esclarecida, até porque não precisaram de esclarecimento para se levantar pelos próprios cabelos.
Em vez de argumentar sobre o porquê de estar errado, devíamos aprender porque o movimento neopetencostal está certo.
2 comentários em “O que se pode aprender com a ascensão neopetencostal?”
Esse texto faz cada vez mais sentido