Por Yuri Freire
Fugindo do debate a respeito do processo de cambio boliviano ser reformista (como defendem diversos cientistas políticos brasileiros) ou revolucionário (como defende García Linera), o fato é que o governo popular de Evo Morales atiçou a contrarrevolução e foi derrubado por ela. O reformismo fraco petista, do mesmo modo. Nenhum dos dois governos conseguiu (ou quis) destruir a ordem capitalista dependente, gestante de contrarrevoluções (por sua própria natureza classista).
A tragédia que se passa na Bolívia é mais um capítulo da triste história das veias abertas da América Latina. O que hoje se desmonta no país vizinho é um projeto ousado, radical, com a cara do povo camponês e indígena boliviano. Forjado nas batalhas árduas da luta de classes, o proceso de cambio é produto, entre outras coisas, da Guerra da Água (2000) e da Guerra do Gás (2003). Evo Morales e o MAS, seu partido, mostraram aos povos camponeses e indígenas que, se a revolução nacional de 1952 foi posteriormente derrotada, em 2006, os trabalhadores voltariam ao protagonismo político.
Após a agenda neoliberal deixar rastros de devastação no país e os protestos promovidos pelos setores populares derrubarem dois presidentes, Evo, líder sindical rural, se elegia em 2005 com 54% dos votos. Com horizonte socialista, preocupação com aPacha Mama (Mãe Terra) e o Bem-Viver, García Linera – intelectual marxista e vice-presidente do país até o golpe de 2019 –, definia o governo como um promotor de um “capitalismo andino-amazônico”. Malgrado as contradições que aparecem ao longo do tempo, o processo foi responsável pela Constituição do Estado Plurinacional, marco de inclusão e reconhecimento dos povos tradicionais (em um país profundamente racista) e do chamado novo constitucionalismo andino. O governo Evo-Linera também nacionalizou os hidrocarbonetos, o que, entre outras coisas, permitiu ao governo empreender diversos programas de distribuição de renda.
A educação boliviana também passou por grandes transformações. No segundo capítulo da lei educacional “Avelino Siñani – Elizardo Pérez”, onde se descrevem os objetivos da educação plurinacional, se lê que a educação daquele país é “descolonizadora, liberadora, revolucionária, anti-imperialista, despatriarcalizadora e transformadora das estruturas econômicas e sociais; [é] orientada à reafirmação cultural das nações e povos indígenas originários campesinos, às comunidades interculturais e afrobolivianas na construção do Estado plurinacional e do Bem-Viver”.
O projeto boliviano, portanto, encarou com certa radicalidade seus compromissos históricos, haja vista que foi um governo fruto das lutas populares das massas indígenas, camponesas e trabalhadoras. Dessa forma, porém, o proceso boliviano enfrentou um dos monstros mais temíveis da sociedade de classes: a contrarrevolução. Empreendida por velhas oligarquias brancas, classes dominantes locais e estrangeiras racistas e pelo imperialismo do norte, na América Latina, a contrarrevolução tem caráter permanente.
Assim não deixam mentir os seguintes processos da história recente: a tentativa de golpe contra Chávez, em 2002; o golpe contra F. Lugo, no Paraguai, em 2012; o golpe contra Dilma, em 2016; a prisão arbitrária de Lula, em 2018; a traição de Lenín Moreno, no Equador; e a mais recente tragédia que foi o golpe contra Evo Morales, em 2019.
Como se pode perceber em alguns dos eventos citados acima, não é preciso fazer um governo revolucionário para ser alvo da contrarrevolução. Como dito, na América Latina a contrarrevolução é permanente, e, mais do que isso, preventiva. Mesmo governos moderados e conciliadores, como o petismo brasileiro, precisam ser contidos de modo arbitrário e contundente quando ganham autonomia demais ou quando já não servem aos interesses conjunturais das classes dominantes locais ou estrangeiras. Nesse sentido, as sabotagens, os factoides, as prisões arbitrárias e os golpes são as faces concretas de um processo contrarrevolucionário.
O horror das classes dominantes para com projetos políticos de orientação popular, mesmo os mais moderados e comprometidos com a ordem capitalista, é descrito já na obra de Marx, quando ele descreve a repressão à insurreição proletária de junho de 1848, na França: “toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como ‘atentado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’”[1]. Assim, mesmo a mais sutil e superficial das mudanças microeconômicas, já é razão suficiente para que as classes dominantes respondam com toda fúria, tirania e violência que têm, “tudo em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem” [2]. Foi assim na França de 1848, no Brasil de 1964, no Chile de 1973 e no Brasil e na Bolívia de hoje.
Para Ruy Mauro Marini, importante intelectual marxista brasileiro, “o reformismo, pelo próprio fato de abalar a sociedade burguesa até seus alicerces sem se atrever a destruí-la, acaba se transformando na antessala da contrarrevolução” [3]. Fugindo do debate a respeito do processo de cambio boliviano ser reformista (como defendem diversos cientistas políticos brasileiros) ou revolucionário (como defende García Linera), o fato é que o governo popular de Evo Morales atiçou a contrarrevolução e foi derrubado por ela. O reformismo fraco petista, do mesmo modo. Nenhum dos dois governos conseguiu (ou quis) destruir a ordem capitalista dependente, gestante de contrarrevoluções (por sua própria natureza classista). Assim, deixaram viver – e muitas vezes empoderaram – seus algozes. O único projeto popular de esquerda dos últimos vinte anos, na América do Sul, que não capitulou ante os golpes, sabotagens e factoides foi o bolivarianismo venezuelano – chamado de “ditadura” por não esperar singela e pacificamente a contrarrevolução chegar.
Assim, fica a lição: todo aquele projeto político popular que não quiser ou não conseguir superar a ordem capitalista dependente, mais cedo ou mais tarde, enfrentará um processo contrarrevolucionário menos ou mais contundente, menos ou mais evidente. Quando chegar esse momento de enfrentamento, que García Linera chamou de “Momento jacobino” [4], a luta de classes se mostrará de forma crua e violenta. Se o governo de esquerda é derrotado, todas as conquistas das massas trabalhadoras são rapidamente revertidas, como mostra o caso brasileiro – e como, provavelmente, acontecerá na Bolívia, uma vez consolidado o golpe. Para a sorte dos trabalhadores e trabalhadoras, chegado o “Momento jacobino”, é bom que as esquerdas estejam preparadas. Do contrário, todos os projetos populares, dos mais moderados aos mais radicais, serão dizimados pela contrarrevolução e nenhuma de suas conquistas durará mais do que 10 ou 15 anos. Sem um projeto socialista revolucionário, poderoso e intransigente, o destino da esquerda latina seguirá sendo o do choro pelos golpes e o da saudade de um passado menos ruim.
Notas
[1] Ver O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
[2] Ibid.
[3] Ver O reformismo e a contrarrevolução: estudos sobre o Chile.
[4] Ver O que é uma Revolução?