Patriarcado-capitalismo: Heleieth Saffioti a partir de “A Ideologia Alemã”

Por Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, via UNESP (1984).

Professora universitária, militante e teórica feminista marxista, Heleith Saffiotti nasceu em 4 de janeiro de 1934 e faleceu em 13 de dezembro de 2010. Filha de uma costureira e de um pedreiro, nasceu em uma pequena cidade do Estado de São Paulo. Graduou-se em Ciências Sociais pela FFLCH/USP em 1960, quando começou suas primeiras pesquisas acadêmicas sobre a condição feminina no Brasil, tema que seria objeto de sua tese de livre-docência para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, da UNESP, intitulada “A mulher na sociedade de classe: mito e realidade”, sob orientação do professor Florestan Fernandes. O artigo abaixo foi apresentado em 1984 em um encontro internacional organizado pela UNESCO na Iugoslávia.


Qualquer modo de produção, como fenômeno histórico que é, não surge inteiramente acabado, nem se realiza de forma pura. Em cada uma de suas concreções singulares, o tempo requerido para sua plena realização varia em função de numerosos fatores sócio-culturais específicos de cada sociedade. Observam-se, entretanto, certas invariâncias no que respeita à absorção retardada e jamais plenamente realizada de determinados contingentes demográficos por parte das atividades organizadas em moldes tipicamente capitalistas, nas formações sociais estruturadas segundo as determinações de modo de produção capitalista (MPC).

A condição de homem livre do trabalhador nas sociedades competitivas, requisito essencial para a realização histórica do modo de produção capitalista [1], não se efetiva, imediatamente, para todos os membros da sociedade. Não somente durante o período de constituição da sociedade de classes, mas também no seu próprio funcionamento, enquanto sociedade competitiva plenamente constituída, interferem fatores aparentemente desvinculados da ordem social capitalista (aparentemente meras sobrevivências de formações sociais já superadas) e em contradição com ela (também aparentemente). Fatores de ordem natural, como sexo e etnia, operam largamente no próprio seio das formações sociais capitalistas, colocando a nu a violenta contradição entre o princípio nuclear do capitalismo — A ACUMULAÇÃO — e a proposta ideológica deste, mesmo sistema — A EQUIDADE.

Dado que a estrutura de classes é altamente limitativa das potencialidades humanas, há que se renovarem, permanentemente, as crenças nas limitações impostas pelos caracteres naturais de certo contingente populacional (contingente este que pode variar e efetivamente varia segundo as condições sócio-culturais de cada concreção singular da sociedade de classes) como se a ordem social competitiva não se expandisse suficientemente, isto é, como se a liberdade formal não se tornasse concreta e palpável em virtude das desvantagens maiores ou menores com que cada um joga no processo de luta pela existência. Do ponto de vista da aparência, portanto, não é a estrutura de classes que limita o desenvolvimento das potencialidades humanas, mas, ao contrário, a ausência de potencialidades de determinadas categorias sociais que dificulta e mesmo impede a realização plena da ordem social competitiva. Na verdade, quer quando os mencionados fatores naturais justificam uma discriminação social de fato, quer quando justificam uma discriminação social de jure, não cabe pensá-los como mecanismos autônomos operando contra a ordem social capitalista. Ao contrário, uma visão globalizadora da sociedade de classes não poderá deixar de percebê-los como mecanismos coadjutores da realização histórica do sistema de produção capitalista.

Rigorosamente, o modo de produção capitalista resulta simultaneamente da incorporação-superação dos modos de produção que historicamente o antecederam. Como afirma o próprio Marx, “grosso modo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados de épocas progressivas de formação social econômica” (Contribuição à Crítica da Economia Política). Esta formação soe econômica refere-se ao advento do capitalismo que, de certa forma, traz em seu bojo as determinações e contradições das sociedades anteriores, embora estas sejam de difícil reconhecimento na medida em que se apresentam sob novas formas e interagem de maneira inédita com as determinações específicas do MPC. Ainda que de forma estiolada ou mesmo travestida, relações sociais típicas de sociedades anteriores podem ser reencontradas nas sociedades burguesas, constituindo estas últimas a chave para a compreensão das formações sociais que a precederam historicamente.

Embora muitos adeptos do materialismo histórico tenham compreendido o conceito de modo de produção de forma economicista, as obras de Marx e Engels não autorizam este tipo de entendimento. Na tentativa de não alongar muito esta discussão, optou-se pela transcrição de um texto coletivo, de autoria dos pensadores referidos, cuja riqueza pode ser aferida.

“Produzir a vida, tanto a sua própria, através do trabalho, quanto a vida do outro, através da procriação, nos aparece pois, desde agora, como uma dupla relação: de uma parte, como uma relação natural, de outra parte, como uma relação social — social no sentido da ação conjugada de muitos indivíduos, pouco importando em que condições, de que maneira e com que objetivo. Disto decorre que um modo de produção determinado (…) está permanentemente vinculado a um modo de cooperação determinado (…), e que este modo de cooperação é, ele próprio, uma ‘força produtiva’…” (A Ideologia Alemã).

Este excerto permite verificar o caráter não-economicista do conceito de modo de produção, na medida em que:

  1. A produção da vida envolve:
  2. a) A produção da vida material propriamente dita, ou sejam, os meios de subsistência necessários à satisfação das necessidades humanas;
  3. b) a reprodução dos seres humanos;
  4. c) relações sociais ou um modo de cooperação entre os indivíduos, capazes de permitir a produção e a reprodução da vida;
  5. d) o conceito de força produtiva ultrapassa os limites do mundo meramente material, englobando as próprias relações sociais que se desenvolvem entre os seres humanos.
  6. O determinismo econômico em última instância implica a compreensão ampla de força produtiva derivada do duplo caráter de produzir a vida: a relação dos homens com a natureza e a relação dos homens entre si. Logo, as representações que os homens fazem do seu modo de produzir a vida funcionam também como forças propulsoras da produção da vida em sentido lato.
  7. Os autores não hierarquizam produção e reprodução da vida. Quer a produção, quer a reprodução da vida apresentam uma dupla dimensão: natural e social. O fenômeno da reprodução da vida é aqui encarado pelos autores em sentido muito mais amplo do que a reprodução que tem lugar no interior da família. Esta sim, na p. 20 da mesma obra, é considerada como uma relação subalterna face às novas relações sociais engendradas pelo aumento das necessidades e face às novas necessidades geradas pelo aumento da população. O fenômeno da reprodução não se confunde, portanto, com a instituição FAMÍLIA.

Especificamente sobre a família, pode-se transcrever um excerto de uma obra de Engels:

“O casamento conjugai não entra, pois, na história, como a reconciliação entre o homem e a mulher e muito menos ainda como a forma suprema do casamento. Ao contrário: ele aparece como a sujeição de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito dos dois sexos, desconhecido até então em toda a pré-história. Em um velho manuscrito inédito (L ‘IDÊOLOGIE ALLEMANDE), redigido por Marx e eu próprio em 1846, eu encontro estas linhas: ‘A primeira divisão do trabalho é a que se estabelece entre o homem e a mulher para a procriação.’ E agora eu posso agregar: A primeira oposição de classe que se manifesta na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher no casamento conjugal e a primeira opressão de classe, com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. O casamento conjugai foi um grande progresso histórico, mas ao mesmo tempo ele inaugura, ao lado da escravidão e da propriedade privada, esta época que se prolonga até nossos dias e na qual cada progresso é simultaneamente um passo atrás relativo, uma vez que o bem-estar e o desenvolvimento de uns são obtidos através do sofrimento e do recalque dos outros. O casamento conjugai é a forma celular da sociedade civilizada, forma na qual nós podemos já estudar a natureza dos antagonismos e das contradições que nela se desenvolvem plenamente.” (Contradiction et subdetermination: notes pour une recherche – Althusser).

Este texto reveste-se da maior importância, na medida em que, não apenas reconhece a opressão da mulher pelo homem, como atribui ao conflito entre os sexos o estatuto de ANTAGONISMO. Por outro lado, sua pobreza reside no raciocínio analógico, que induz Engels a identificar as relações entre homens e mulheres com as relações entre as classes sociais. Se em ambos os casos está presente a natureza antagônica das relações — entre as classes e entre os sexos — pode-se admitir a identidade dos dois fenômenos no plano estrutural. Este nível, contudo, é insuficiente, sobretudo para pensadores que se propuseram, não apenas compreender e explicar a sociedade capitalista, como também atuar energicamente no sentido de sua transformação (Teses sobre Feurbach).

No que tange aos estudos sobre as discriminações sofridas pelas mulheres, interessa utilizar conceitos subversivos, capazes de desvendar as relações de poder político e econômico nas relações sociais de produção e nas relações sociais de reprodução. Como esta última tem lugar no seio da família nuclear nas formações sociais capitalistas da atualidade, cabe lidar com estes dois sistemas: o aparato da produção, geograficamente distanciado do domicílio, e o da reprodução, situado no domínio do privado. Não basta, contudo, utilizar da dialética materialista os conceitos que se revelarem adequados. Há que se ir além, formulando novos conceitos, também subversivos, capazes de apreender, na prática cotidiana dos atores sociais, se de fato se deseja transformar o mundo, muitos fenômenos, dentre os quais podem ser ressaltados:

  1. patriarcado e capitalismo são duas faces de um mesmo modo de produzir e reproduzir a vida;
  2. sendo o patriarcado, embora historicamente anterior ao advento do capitalismo, uma vez que esteve presente e atuante em todas “as épocas progressivas da formação social econômica” burguesa, consubstancial ao MPC, a formação social capitalista agudiza, sobremaneira, as contradições atuantes em qualquer sociedade centrada na propriedade dos meios de produção;
  3. as imbricações das relações entre os sexos com as relações entre as classes sociais têm consequências dramáticas para a classe trabalhadora, podendo qualquer desatenção quanto à divisão sexual do trabalho conduzir as lutas a fragorosas derrotas, em virtude de práticas políticas e mesmo objetivos conflitantes;
  4. a divisão sexual do trabalho está na base da subordinação da mulher ao homem, relação de dominação esta que coloca o fenômeno da reprodução como subordinado da produção;
  5. as classes sociais não são homogêneas – em termos de sexo, fenômeno que as Ciências Sociais têm ignorado sistematicamente;
  6. da constatação anterior derivam práticas políticas distintas e mesmo metas diferentes para homens e mulheres;
  7. se a dominação patriarcal e o despotismo do capital são faces de uma mesma moeda:
  8. a) as relações sociais de produção não se restringem ao domínio do trabalho “público”, invadindo o terre no “privado” das relações sociais de reprodução;
  9. b) as relações sociais de reprodução extrapolam o domínio “privado” do lar para penetrar vigorosamente no âmbito da produção “pública”;
  10. o antagonismo entre as categorias de sexo não pode ser pensado exclusivamente enquanto fenômeno situado no interior de cada classe social. As contradições entre as classes sociais e entre os sexos não são paralelas, mas cruzadas.

Disto pode-se inferir:

  1. a) que as alianças entre as mulheres esbarram no antagonismo entre as classes sociais;
  2. b) que as lutas políticas da classe trabalhadora trazem em seu bojo o antagonismo entre as categorias de sexo;
  3. as contradições entre as classes sociais e entre as categorias de sexo merecem o mesmo estatuto teórico, quando se deseja ultrapassar o nível estrutural e apreender a dinâmica das práticas sociais. Uma relação de subordinação entre estes dois antagonismos, qualquer que seja a direção desta sujeição, impede a apreensão da riqueza de determinações que definem um concreto histórico [2], provocando o fracasso das estratégias cujo alvo seja a superação destas contradições.

O que tem sido tratado aqui como um sistema de dominação social, cultural, político e econômico apresenta duas dimensões: o patriarcado e o capitalismo. Na medida mesma em que são inseparáveis suas faces, é preciso sublinhar:

  1. que não se trata de dois sistemas justapostos e ou interdependentes, auxiliando-se mutuamente, mas mantendo cada um deles sua autonomia relativa;
  2. que é impossível separar os tipos de dominação próprios do patriarcado, como, por exemplo, o social, o cultural e o político, caracterizando como específica do capitalismo a dominação econômica;
  3. todos estes tipos de dominação são exercidos a partir da combinação singular entre capitalismo e patriarcado, estando todos presentes quer no domínio da produção, quer no da reprodução.

Zillah Eisenstein (10) realiza uma tentativa de analisar a divisão sexual do trabalho e a sociedade no que denomina patriarcado-capitalista, concebendo dois sistemas — patriarcado e capitalismo — em permanente interação é dependência mútua. Para esta autora, do mesmo modo que o patriarcado é suficientemente maleável para ajustar-se às necessidades do capital, este também é suficientemente flexível para adaptar-se às necessidades do patriarcado. Esta concepção dual fica bastante clara através da transcrição que se segue.

“O capitalismo usa o patriarcado e o patriarcado está determinado pelas necessidades do capital. Esta afirmação não solapa o dito anteriormente, ou seja, que ao mesmo tempo em que um sistema utiliza o outro, deve organizar-se em função das necessidades deste outro precisamente para proteger as qualidades específicas do outro. De outra forma, o outro sistema perderia seu caráter específico e com ele seu valor único. Para dizê-lo da maneira mais simples possível: o patriarcado (supremacia masculina) proporciona a ordenação sexual hierárquica da sociedade para o controle político e como um sistema político não pôde ser reduzido à sua estrutura econômica; enquanto o capitalismo como sistema econômico de classes, impulsionado pela busca de lucros, alimenta a ordem patriarcal. Juntos eles formam a economia política da sociedade, não unicamente um ou o outro, mas uma combinação particular dos dois.” (Capitalist patriarchy and the case for socialist feminism).

Embora a análise de Eisenstein dê um passo adiante, na medida em que revela a imbricação do patriarcado com o capitalismo, subsiste uma concepção dualista, impondo a percepção das necessidades específicas de cada um dos dois sistemas em presença e da contribuição de cada um para a formação da economia política da sociedade. O patriarcado é concebido como sistema político, enquanto o capitalismo é captado apenas em sua dimensão econômica. O sistema de classes sociais não pode ser pensado simplesmente no plano econômico, pois se trata de uma realidade multifacética, onde também têm lugar os outros tipos de dominação: social, cultural e política, além da econômica. De outra parte, o patriarcado não se resume em um sistema de dominação política, porquanto no seu seio também fluem os outros tipos de dominação, inclusive a econômica. A necessidade de buscar característicos específicos de cada sistema em jogo nasce da própria natureza dualista de conceber a formação social capitalista.

Se o patriarcado sempre integrou as configurações históricas anteriores ao capitalismo, não há razão, pelo mero fato de o processo econômico ter aflorado à superfície da sociedade e o dinheiro ter passado a permear todas as relações sociais para deixar de concebê-lo como consubstancial ao capitalismo. [3]

O próprio título do artigo de Eisenstein, assim como o título do livro em que está inserido, contêm a expressão patriarcado capitalista. Esta expressão induz a pensar que houve um patriarcado escravista e um patriarcado feudal. Desta sorte, nas etapas progressivas da formação da sociedade burguesa, o elemento constante foi o patriarcado, ao qual foram se agregando sucessivamente diferentes modalidades de organização da produção: escravista, feudal e capitalista. A partir da análise de Eisenstein sobre o patriarcado capitalista pode-se pensar também na interdependência entre, de um lado, o patriarcado e, de outro, o escravismo e o feudalismo, em distintos momentos da história. Ainda partindo de sua análise, poder-se-ia dizer que o patriarcado sempre manteve sua autonomia relativa enquanto sistema político, ainda que em diferentes épocas serviu e beneficiou-se de seu acoplamento com os distintos modos de produção: escravista, feudal, capitalista. Não está em questão a anterioridade histórica do patriarcado em relação ao capitalismo, fenômeno já amplamente conhecido, discutido e aceito.

Trata-se de situar a emergência da supremacia masculina simultaneamente com o surgimento da propriedade privada, (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado) a fim de eliminar as dicotomias: patriarcado x escravismo, patriarcado x feudalismo, patriarcado x capitalismo. Havendo a supremacia masculina e a propriedade privada sido resultado do mesmo parto histórico, cabe pensar o patriarcado como componente intrínseca, como consubstancial ao escravismo, ao feudalismo e ao capitalismo. Cada um dos três tipos macro-estruturais mencionados organiza a seu modo a produção e reprodução. Como afirma Marx, cada modo de produção tem suas próprias leis de reprodução. [4]

O exame destes dois fenômenos — produção material e reprodução de seres humanos — ao longo da história, revela que ambos caminharam na mesma direção. Seria inconcebível nos países de capitalismo avançado hoje que os casais decidissem ter tantos filhos quantos viessem na expectativa de que sobrevivessem alguns para lhes dar amparo na velhice. Mas isto foi uma realidade no passado e ainda persiste em regiões subdesenvolvidas, onde há enormes carências alimentares, sanitárias, médicas etc. Neste tipo de circunstância, a mulher tem sido, por excelência, uma “máquina de parir”, além de contribuir para a produção de bens e serviços.

Nesta questão não se pode esquecer a mediação do Estado, enquanto organismo aparentemente neutro, mas, na verdade, implementando políticas favorecedoras dos objetivos da classe dominante. Em outros termos, o Estado filtra as pressões da classe dominada, cedendo, às vezes, nas minudências, mas levando a cabo políticas conducentes às metas econômicas dos donos do poder no patriarcado-capitalismo. O Estado, além de auxiliar a classe dominante a disciplinar a força do trabalho, também direciona o processo de reprodução humana. A implementação de uma mesma política pode dar conta das duas tarefas mencionadas. Grosso modo, o capitalismo concorrencial tem um pronunciado interesse pela reprodução da força de trabalho, enquanto o capitalismo monopolista, face à abundância de mão-de-obra, interessa-se por limitar o número de nascimentos, prevendo as pressões que os futuros excedentes demográficos desencadearão no mercado de trabalho. Rigorosamente, trata-se do profundo medo das massas famintas ou, em outros termos, da ameaça política que estas constituem. Os países de capitalismo central difundem métodos contraceptivos para a periferia do sistema capitalista internacional, ainda que se possam presumir seus efeitos deletérios e mesmo que estes já tenham sido comprovados. Basta lembrar que as portorriquenhas serviram de cobaias para o desenvolvimento do anticoncepcional oral e que mais de cinco milhões de mulheres já foram atingidas, nestes últimos 15 anos, em 70 países das regiões subdesenvolvidas, pelo acetato de medroxiprogesterona, comercializado sob o nome da Depo-Provera, droga esta não aprovada pelo Food and Drog Administration enquanto contraceptivo, em virtude da alta incidência de câncer de endométrio, de mama, diabetes, anemia, redução imunológica etc. que provoca em animais. Embora as pesquisas sobre o assunto no Brasil recaiam sobre universos empíricos restritos, sabe-se ser amplo o uso dos anticoncepcionais orais e de Depo-Provera, tendo sido liberada no corrente ano a utilização do dispositivo intra-uterino (DIU). Um método muito utilizado no Brasil consiste na laqueadura de trompas, operação até o presente irreversível. Sabe-se, oficiosamente, que mais de 40% das mulheres do Estado do Piauí foram esterilizadas definitivamente através da laqueadura de trompas. O crescimento assustador de operações cesarianas pode estar vinculado, dentre outros fatores, à laqueadura de trompas, momento ideal para a esterilização, porquanto a proporção de cesáreas em relação ao número total de partos passou de 15% em 1971, para 30% em 1980, e para 43,4% em 1981.

Recentemente, o Ministério da Saúde surpreendeu-se com o gigantesco número de agências estrangeiras  praticando controle demográfico no Brasil. Sabe-se que apenas uma destas agências — a BEMFAM — conta com mais de três mil postos em operação no país. A previdência social no Brasil pratica, há tempo, o planejamento familiar, embora as posições dos diferentes governos posteriores ao golpe de Estado de 1964 tenham sido suficientemente ambíguas para dar à população a ilusão de liberdade, no terreno da reprodução, e, ao mesmo tempo, fechar os olhos para as agências estrangeiras de controle de natalidade que aqui operam. No corrente ano, teve início a implantação, por parte do Ministério da Saúde, do programa Assistência Integral à Saúde da Mulher, contemplando a questão do planejamento familiar e, desta forma, assumindo publicamente uma política definida em matéria de população. Não há, entretanto, consenso no seio dos vários braços do Estado brasileiro quanto às metas da política demográfica, quanto aos métodos a serem utilizados e quanto ao subaparelho de Estado mais capaz de levar a bom termo objetivos previamente fixados. Enquanto o Ministério da Saúde começa a implementar seu plano — e o planejamento familiar deve estar afeto ao braço do Estado destinado a cuidar da saúde — o Ministro do Estado Maior das Forças Armadas, Waldir Vasconcelos, promete que o atual Presidente da República, antes de terminar seu mandato a 15/3/85, decretará a criação do Conselho Nacional de Política Demográfica, que terá como função a implementação do Programa de Planejamento Familiar e que ficará subordinado ao Conselho de Segurança Nacional. Trata-se, pois, da militarização da função disciplinadora da reprodução humana, desde sempre desempenhada por um braço civil do Estado.

No que tange ao fenômeno reprodução da força de trabalho no Brasil, as políticas implementadas por empresários e pelo Estado variaram amplamente, indo desde a importação de mão-de-obra, passando pelo custeio da qualificação, da moradia, do vestuário e da alimentação do trabalhador, e chegando até a posição acima referida do controle militar da reprodução da força de trabalho.

Já em 1966, Juliet Mitchell (Women: the longest revolution) indicava os domínios nos quais as mulheres desempenhavam suas funções, ou seja, produção, reprodução, sexualidade e socialização das gerações imaturas, esferas estas que a autora denomina de estruturas. Embora haja apreendido corretamente as esferas em que atuam as mulheres, deixou de marcar as diferenças que separam, de um lado, a produção, e, de outro, a reprodução, englobando o exercício da sexualidade, a reprodução biológica e a reprodução social ou socialização dos imaturos. Desta sorte, ao invés de investir seus esforços no desvendamento das interrelações e interdependências entre a produção e a reprodução, preferiu enveredar pela utilização dos conceitos althusserianos [5], como o de sobredeterminaçâo e o de unidade de ruptura.

“E somente nas sociedades altamente desenvolvidas do Ocidente que uma autêntica liberação das mulheres pode ser enfrentada hoje. Mas, para que isso ocorra, deverá haver uma transformação de todas as estruturas nas quais elas estão integradas, e uma unidade de ruptura. Um movimento revolucionário deve basear sua análise no desenvolvimento desigual de cada estrutura, e atacar o elo mais fraco na combinação. Isto pode então tornar-se o ponto de partida para uma transformação geral.” (Women: the longest revolution)

Para Mitchell o elo mais fraco situa-se no domínio da sexualidade, na medida em que a liberalização dos costumes sexuais já havia minado, na época (1966), a instituição do casamento. Quase duas décadas decorreram desde então e a reprodução de seres humanos continuou a se fazer, seja através do casamento, seja através de múltiplos arranjos que, se contrariam as regras clássicas do exercício da sexualidade, já estão quase inteiramente absorvidos por todas as camadas sociais. A bem da verdade, diga-se que Mitchell não postulava a liberação da mulher a partir exclusivamente da ruptura de um elo mais fraco da referida cadeia. Segundo ela, era necessário que se criassem as condições que Althusser denominou de unidade de ruptura. Parece que o rompimento do elo da cadeia revela-se insuficiente para tanto.

Embora Mitchell, há quase duas décadas, tenha detectado pontos fundamentais nas funções desempenhadas pelas mulheres, dado o universo conceituai em que se situou, ateve-se ao plano estrutural, deixando de examinar as relações sociais entre as categorias de sexo e entre as classes sociais. Recentemente, duas pesquisadoras francesas enfocaram a questão da produção e reprodução, ultrapassando o nível estrutural e tentando captar as interrelações entre as práticas das categorias de sexo e das classes sociais (LE SEXE du travail). Por se tratar de uma das mais bem sucedidas tentativas de analisar o problema e ser extremamente estimulante no que tange à formulação de novos conceitos destinados a captar realidades obscurecidas pelas categorias conceituais convencionais, dar-se-á amplo espaço a este artigo no presente trabalho.

De sua primeira proposta — análise materialista das relações sociais — resulta o resgate da onipresença do político em todas as relações humanas. O patriarcado, enquanto sistema sociopolítico, interfere quer na produção material, quer na produção de seres humanos. O capitalismo, assim penetrado pelo sistema sociopolítico da supremacia masculina, ao invés de produzir para satisfazer às necessidades humanas, submetendo, desta sorte, a produção à reprodução, opera exatamente em sentido oposto, subjugando a reprodução à produção. As autoras levantam a hipótese de que esta subordinação da reprodução à produção apoia-se em outra submissão, ou seja, a das mulheres aos homens, tendo como respaldo a divisão sexual do trabalho. Em consequência desta hipótese, as mulheres são destinadas prioritariamente à reprodução, fenômeno sempre acompanhado de perda no campo sociopolítico. Evidentemente, não se podem separar as mulheres na esfera da reprodução e os homens na esfera da produção, porquanto ambos são agentes sociais nos dois domínios, reproduzindo-se em ambas as esferas a divisão sexual do trabalho que subordina as mulheres aos homens.

Em virtude da separação entre local de trabalho e local de domicílio e de novas formas de produzir bens materiais, introduzidas pelo MPC, este reorganiza a reprodução, que passa a ser cenário simultaneamente da luta de classes e da luta entre os sexos. De outra parte, a reprodução passa, desde logo, ao domínio público, sendo gerida pelo Estado. Como ficou anteriormente mencionado para o Brasil, as autoras registram a penetração do Estado, por delegação dos capitalistas, no conjunto dos aparelhos atuais de reprodução, nos quais se verifica a onipresença do poder político, reforçando a aguda despossessão das mulheres e provocando a interiorização de regras de conduta de sexo e de classe. Suspeitam as autoras que seja exatamente neste nível “que se manifesta mais fortemente a osmose capitalismo-patriarcado, que se cria e recria mutuamente”.

Dada a coincidência de certas ideias, vale a pena transcrever mais um excerto das referidas autoras:

“A relação antagônica entre os sexos exprime-se aqui e lá, na produção e na reprodução. Ela não está, de maneira alguma, circunscrita à família; tampouco, aliás, a relação social entre o capital e o trabalho é circunscrita à produção. É preciso, pois, banir toda visão idílica de uma aliança dos sexos na luta de classes… É preciso também abandonar a alternativa: luta de sexos ou luta de classes. As mulheres, em sua prática, jamais se confrontam com tal dilema, pelo menos nestes termos. Elas não podem, embora quisessem, conduzir eficazmente uma sem a outra e, neste sentido, são duplamente exploradas onde se encontram.”

A questão do cruzamento, por oposição a paralelismo, das relações entre os sexos e entre as classes sociais, assim como as desvantagens da priorização de uma das lutas — de sexo e de classes — estão abordadas em outros textos.

As autoras refutam a tese da autonomia relativa da família, uma vez que as relações de classes operam também no seio dos aparelhos de reprodução. A tentativa de abordar, enquanto unidade, a produção de bens e a produção de seres humanos, apoiando a análise das formas sociais da reprodução sobre as relações sociais de produção para delas apreender a evolução de acordo com as formas de desenvolvimento do capitalismo, as autoras denominam enfoque “anthroponomique”.

Vale a pena, ainda, transcrever mais um pequeno excerto do artigo em pauta:

“Do ponto de vista de uma análise estrutural, com efeito, pode-se dizer que as relações entre os sexos na produção e na reprodução, não são de natureza diferente; relação de dominação ideológico-política e de apropriação — que situam as mulheres em situação de inferioridade, de serviço e de submissão. Mas, percebe-se claramente que a análise estrutural não permite dar conta nem das lutas levadas a cabo aqui e lá no interior destas relações, nem daquilo que realmente se passa entre a produção e a reprodução.” (LE SEXE du travail)

A observação pertinente aqui incide sobre a própria concepção de patriarcado e a distinção entre uma análise estrutural da produção e da reprodução e uma análise das relações sociais de sexos e de classes. Ao tentar mostrar a simbiose entre patriarcado e capitalismo, sobretudo no seio dos aparelhos de reprodução, as autoras definem patriarcado como um sistema sociopolítico, profundamente atuante tanto na produção de bens quanto na produção de seres humanos. A nível estrutural, imputam a responsabilidade pela inferiorização da mulher, quer na produção, quer na reprodução, a uma relação de dominação ideológico-política e de APROPRIAÇÃO. Ora, se as relações de apropriação e, por conseguinte, de despossessão da mulher, estão presentes e atuantes na produção e na reprodução, só restam duas alternativas:

  1. o patriarcado não se resume a um sistema sociopolítico-ideológico, mas apresenta também uma forte dimensão econômica;
  2. as relações de produção, na medida em que operam também no domínio da reprodução, respondem pelas relações de apropriação que subordinam a mulher ao homem.

Na segunda alternativa está presente a adesão à determinação, ainda que em última instância, do econômico, tese à qual as autoras não aderem, como se pode verificar pelo excerto que se segue.

“Para nós a especificidade do MPC reside algures, nas formas de subordinação da reprodução à produção, na extensão das práticas de dominação de uma classe ao conjunto do campo social, na coerência e na imbricação das relações sociais de classes e de sexos, na extensão das lutas que animam o processo de despossessão. Dizer que este movimento se origina na produção não significa para nós uma adesão, ainda que em última instância, ao primado da economia. Não se trata mais de se interrogar sobre os efeitos das relações sociais de produção na reprodução, mas de tentar mostrar como o desenvolvimento das modalidades capitalistas de produção de bens reforça em todos os domínios a despossessão e a luta contra a despossessão.”

Se não mais se trata de se indagar sobre os efeitos das relações sociais de produção na reprodução, mas de revelar o caráter expropriatório do capitalismo, em todas as suas realizações históricas, em relação às mulheres, a partir da produção de bens materiais, fica patente o primado da economia, ainda que ele seja quase negado.

Como justificar a não adesão ao determinismo econômico, em última instância, se o patriarcado é concebido como sistema sociopolítico ou como sistema ideológico-político e se “a produção e a reprodução são indissociáveis; uma é impensável sem a outra, cada uma é condição da outra”?

Ora, ou se situa a origem das relações de apropriação no campo da produção material, admitindo-se uma autonomia relativa entre a produção e a reprodução, ou se concebe a unidade produção-reprodução, simultaneamente com a simbiose entre o patriarcado e o capitalismo. Esta última hipótese parece ser a mais plausível e heurísta, desde que o patriarcado seja concebido como um sistema de dominação social, cultural, política, ideológica e econômica. Concebido com todas estas dimensões, que também estão presentes no capitalismo, elimina-se a necessidade da busca das origens da sujeição da mulher pelo homem, exclui-se a hipótese da autonomia relativa, de um lado, da produção de bens, e, de outro, da produção de seres humanos, e, sobretudo, deixa-se de pensar em eventuais tensões entre o patriarcado e o capitalismo, já que o raciocínio encaminha-se para a compreensão da simbiose entre estes dois sistemas. Desta maneira, facilita-se a apreensão das relações de produção no interior dos aparelhos de reprodução, da mesma forma como se torna mais fácil a apreensão das relações de reprodução no seio dos aparatos da produção material. Em outros termos, parece ser este o caminho mais adequado para analisar o CRUZAMENTO das relações sociais entre as categorias de sexo e das relações sociais entre as classes sociais.

Embora se saiba há tempo ser impossível um feminismo de todas as mulheres, uma vez que esta categoria de sexo — como também a outra — é atravessada pela divisão da sociedade em classes sociais, Combes e Haicault, dentre as numerosas contribuições que apresentam no artigo examinado, trazem uma de inestimável valor para a formulação de estratégias, visando à instauração de uma sociedade em que homens e mulheres sejam, efetivamente, iguais do ponto de vista social. Realmente, na tentativa de apreender simultaneamente as relações de sexo e de classes e a atuação de ambas nos aparelhos de produção e de reprodução, o problema deixa de ser a priorização de uma luta em detrimento da outra ou de colocar uma na dependência da outra, para transformar-se na natureza das alianças entre homens e mulheres de uma mesma classe social. Ou seja, estas alianças trazem em seu bojo a oposição.

“Homens e mulheres estão sempre e em todos os lugares em uma relação antagônica, na medida em que eles pertencem a uma ou a outra categoria de sexo (opressora e oprimida), e ao mesmo tempo em uma relação de aliança construída sobre uma base desigual, visto que eles pertencem à mesma classe social, isto é, a uma ou a outra das duas únicas classes aqui em questão, definidas pela relação de exploração.”

Isto mostra quão eficaz é a simbiose do patriarcado-capitalismo. Visto que a dominação de classe, caracteristicamente uma relação vertical, é atravessada pela subordinação de um sexo ao outro, relação também vertical, mas permeando horizontalmente a estrutura de classes, ambas as relações de dominação-subordinação potenciam-se pela simbiose acima mencionada, só permitindo, no interior da mesma classe social, relações sociais ao mesmo tempo de aliança e de oposição.

Disto decorre que o capitalismo não pode ser pensado exclusivamente através da lógica do capital, ignorando-se sua outra face, ou seja, o patriarcado. O capitalismo, enquanto modo de produção, não pode, pois, ser entendido como objeto abstrato-formal, mas como o resultado de uma progressiva explicitação histórica, através dos modos de produção que lhe precederam, da mais desenvolvida forma de organização da unidade produção-reprodução, sob o signo da separação entre o produtor imediato e os meios de produção.

Uma vez bem explicitada a simbiose entre patriarcado-capitalismo, utilizar-se-á doravante a expressão mais simples CAPITALISMO, tendo-se sempre no espírito que o sistema patriarcal é consubstancial ao MPC.

Este referencial teórico explica a desigual incorporação das mulheres na força de trabalho de qualquer nação capitalista. Convém insistir que a referida incorporação das mulheres na força de trabalho é desigual em dois sentidos: quantitativo e qualitativo. Quanto à primeira desigualdade, cabe lembrar que:

“A dona-de-casa emergiu, simultaneamente, com o proletário — os dois trabalhadores característicos da sociedade capitalista desenvolvida.'” (Capitalism, the Family and personal life).

Embora o MPC não seja o único modo de produção centrado na propriedade privada dos meios de produção, distingue-se dos que o antecederam não só pelo fato de haver completado o processo de separação entre o trabalhador imediato e os meios de produção, como também por haver generalizado a categoria mercadoria, transformando a própria força de trabalho em mercadoria a ser comercializada entre seus possuidores e os detentores do capital. Mais do que isto, o MPC foi o primeiro modo de produção a criar tecnologia capaz de multiplicar a capacidade produtiva dos seres humanos. À medida que se processava a sofisticação tecnológica — processo ainda em curso — certos contingentes humanos deixavam de ser necessários para a produção de bens materiais. Embora muito se tenha dito e escrito sobre a capacidade da tecnologia de gerar empregos, o contrário ficou provado no setor industrial, com máquinas poupadoras de mão-de-obra e com robôs, em seguida nas atividades agropecuárias, com a introdução de diversas tecnologias capazes de substituir centenas de trabalhadores, e, finalmente, no setor terciário das atividades econômicas, com o enorme avanço da tecnologia da informática.

Para deixar de lado o fato de que a economia capitalista opera por ciclos de prosperidade e ciclos de recessão, o desemprego tecnológico constitui fato de fácil constatação. Enquanto nos modos de produção anteriores ao MPC, não se podia prescindir de muitos braços para produzir os meios de subsistência necessários à produção e à reprodução da força de trabalho do trabalhador e das camadas parasitárias, as tecnologias desenvolvidas pelo MPC substituem, com vantagens econômicas e políticas para o capitalista, enormes contingentes humanos aptos a trabalhar. Estes contingentes são integrados por homens e mulheres e podem ser mobilizados nos momentos de expansão das atividades econômicas. Neste sentido, constituem força de trabalho reserva para uso oportuno do capitalismo.

Como bem mostra o excerto extraído de Zaretsky, o processo de proletarização não se deu de forma igual para homens e mulheres. Os trabalhadores proletarizam-se. Quanto às mulheres, parte sofre o mesmo processo de proletarização, conjugando a jornada fora do lar com a jornada doméstica; a outra parte transforma-se em dona-de-casa, ou seja, é confinada aos afazeres domésticos, prestando serviços no domínio da reprodução e alijada da esfera da produção.

A separação geográfica entre local de trabalho e local de residência teve um peso notável neste processo, mas não foi o único fator a contribuir para o alijamento de parcela das mulheres do campo da produção. O papel desempenhado pela tecnologia na inovação dos métodos de produção foi certamente decisivo. Talvez possa-se afirmar que ainda o é.

Em comparação com os modos de produção historicamente anteriores, o MPC absorve menor quantum relativo de força de trabalho. Nem se faz necessária a consulta às estatísticas para demonstrar tal discrepância, na medida em que apenas instrumentos de trabalho rudimentares eram utilizados antes da revolução industrial. Estes instrumentos, no máximo, prolongavam os membros do trabalhador e ou aumentavam sua força física. Não há, pois, paralelismo entre estes instrumentos de trabalho e as máquinas, que crescentemente multiplicam a capacidade produtiva do trabalhador, reduzindo o número de seres humanos necessários à produção, e os robôs, que substituem trabalhadores.

Por mais imperialista que seja um país capitalista — e isto lhe permite exportar um certo quantum de desemprego — jamais conseguiu oferecer trabalho a todos os seus cidadãos adultos e aptos a trabalhar. As taxas desemprego flutuam, obviamente, segundo a conjuntura vivida pela nação, não se conhecendo situação de pleno emprego da força de trabalho.

No caso específico das mulheres, esta questão torna-se mais complexa, já que as alocadas exclusivamente ao campo da reprodução não são consideradas desempregadas. Trabalham sem remuneração e este trabalho é considerado não-trabalho, já que se situa no âmbito da reprodução e não no terreno da produção. É a partir desta última esfera que se constrói a noção de trabalho; por conseguinte, as categorias censitárias a obedecem, dificultando sobremodo a análise das atividades femininas. Do uso destas categorias e da correlata desconsideração por formas de trabalho que, embora situadas no campo da produção, não se enquadram nos moldes da produção tipicamente capitalista, por parte das agências encarregadas de coletar dados estatísticos e divulgá-los, decorrem falácias, que é preciso combater. Tomando-se qualquer YEAR BOOK OF LABOUR STATISTICS, constata-se que a taxa de atividade feminina é muito inferior nas regiões subdesenvolvidas que nas regiões desenvolvidas. Podem-se fazer dois comentários a respeito do diferencial verificado:

  1. Dada a utilização de categorias de trabalho formuladas a partir da produção organizada em moldes capitalistas típicos, uma grande parcela das mulheres que trabalham na produção nas regiões subdesenvolvidas deixa de ser enumerada nas estatísticas. Em virtude, portanto, do uso de um método inadequado à captação de formas de trabalho amplamente difundidas em regiões subdesenvolvidas, as mulheres trabalhadoras são subenumeradas, não se tendo ideia precisa desta subestimação.
  2. Embora o segundo comentário não possa ser desvinculado do conteúdo do primeiro, só se pode trabalhar a partir dos dados com os quais se conta. O fulcro desta segunda observação constitui o próprio critério de agrupar nações em função de seu desenvolvimento ou de seu subdesenvolvimento. Este critério oculta diferenças gigantescas no que tange à participação das mulheres na força de trabalho, quer se tomem as regiões desenvolvidas, quer se examinem as subdesenvolvidas. A título de ilustração, tomar-se-ão os dados internacionais mais recentes, a fim de expor as diferenças ocultadas pelo uso do critério ideológico de reunir em dois blocos separados os países que compõem as regiões desenvolvidas e as nações que integram as regiões subdesenvolvidas, com a finalidade de medir a taxa de atividade feminina. Deixando de lado os países socialistas, cujas taxas de incorporação da mulher na força de trabalho são muito altas, tomar-se-ão os extremos encontrados dentro de cada um dos dois blocos referidos. No conjunto de países considerados desenvolvidos, pode-se destacar a Irlanda, com uma taxa de atividade feminina de 19,7% (1977) e a Dinamarca, com 45,7% (1981). No seio do bloco subdesenvolvido, as discrepâncias são ainda mais significativas, apresentando o Alto Volta uma taxa de atividade feminina de 1,7% (1975) e Ruanda, 55,3% (1978). Embora as diferenças sejam maiores no bloco subdesenvolvido, não deixam de surpreender por seu gigantismo aquelas detectadas no seio do bloco desenvolvido. As diferenças encontradas no que respeita à taxa de atividade feminina não podem ser imputadas exclusivamente ao grau de desenvolvimento da nação. Outros fatores, tais como tradições nacionais, religião dominante, regime político, grau de estabilidade do grupo familiar, poder aquisitivo dos ganhos masculinos suficiente ou não para manter a família, mercado formal e informal de trabalho etc, interferem fortemente na taxa de atividade das mulheres.

Não apenas neste caso, as médias ocultam imensas variações. Um problema relevante, por exemplo, consiste em desvendar o número de horas semanais que as mulheres trabalham. Embora o YEAR BOOK aqui utilizado não traga este dado desagregado por sexos para os Estados Unidos, sabe-se que se trata do país por excelência do trabalho em tempo parcial para a mulher. Ademais, como são em pequeno número as mulheres que lá fazem carreira, muitas das que apenas têm um emprego, trabalham apenas durante alguns meses por ano. Desta sorte, não é suficiente verificar que em 1981 39,8% dos trabalhadores norte-americanos eram do sexo feminino. É preciso verificar em que setores da economia situam-se estas trabalhadoras, os cargos que ocupam na hierarquia ocupacional, o número de horas semanais que trabalham, o número de meses por ano em que detêm o emprego, que salários recebem etc. Não obstante as falhas no que tange à mensuração do desemprego, nos Estados Unidos, pode-se recorrer a outra fonte da OIT, a fim de dar uma ideia, ainda que grosseira, do comportamento deste fenômeno naquele país com relação a homens e mulheres. O documento utilizado reúne dados para o período 1978-1981. Os dados são apresentados ano a ano, mês a mês e desagregados por sexo. Exceção feita dos meses de janeiro, fevereiro, março e abril para o ano de 1981, em todos os demais meses e anos o desemprego feminino ultrapassou, muitas vezes de forma significativa, o desemprego masculino. Em percentuais relativamente pequenos, que variam de 4,5 a 8,3, as mulheres chegaram a apresentar quase dois pontos acima dos homens, em matéria de desemprego. Certamente estes percentuais de desemprego feminino subiriam astronomicamente, se as cifras fossem construídas com a inclusão das donas-de-casa desejosas de desempenhar uma atividade econômica extra-lar. Isto mostra que a atribuição de papéis domésticos às mulheres não é inocente. Enquanto uma boa parcela da população feminina em idade de trabalhar continuar alocada ao campo da reprodução, as taxas de desemprego feminino também continuarão baixas, ainda que superiores às masculinas. E esta estratégia é amplamente utilizada nos países capitalistas, independentemente do fato de se tratar de país desenvolvido ou subdesenvolvido. A diferença que vale a pena registrar entre estes dois tipos de nações, para os propósitos deste trabalho, consiste na magnitude do espaço econômico recoberto pelo MPC. Ainda que o capitalismo jamais tenha ocupado todo o espaço econômico [6] nem mesmo nos países muito industrializados, o volume das atividades econômicas organizadas em moldes não-capitalistas e, portanto, dos trabalhadores que a elas se dedicam é muito mais significativo nos países de baixa industrialização que nas nações hegemônicas. Em outros termos, o peso relativo do mercado informal de trabalho nas áreas periféricas do sistema capitalista internacional é incomparavelmente maior que nas áreas de alta industrialização. Convém lembrar, ainda, que há uma intensa dinâmica entre os mercados formal e informal de trabalho, não apenas em termos do intercâmbio de produtos e de agentes do trabalho, mas também em termos de formalização do informal e de informalização do formal. Em outras palavras, as atividades organizadas em moldes capitalistas típicos desorganizam formas não-capitalistas de produzir, mas também as recriam. Sobretudo nos momentos de recessão, trabalhadoras e trabalhadores recorrem ao mercado informal de trabalho que, assim, permite ampliar a renda das famílias pobres, servindo, ao mesmo tempo, como reserva de mão-de-obra para as atividades que vierem a se organizar segundo o modelo capitalista.

Tendo sido explicitado o esquema de referência teórico que permite compreender o patriarcado-capitalismo, não será difícil entender porque as mulheres brasileiras têm sido incorporadas desigualmente, em relação aos trabalhadores masculinos, na produção industrial do país. Por outro lado, como este trabalho lidará com dados que abrangem o período 1872-1982, ter-se-á a oportunidade de comparar o tipo de participação feminina na força de trabalho brasileira antes e depois de desencadeado o processo de industrialização. Embora se planeje dispensar especial atenção ás trabalhadoras da indústria há também que mostrar a contribuição feminina no setor primário das atividades econômicas, assim como, no setor terciário.

Rigorosamente, o que resta a fazer é revelar a dinâmica da incorporação das mulheres na força de trabalho do Brasil, já que a ampla discussão anterior explica porque as mulheres são, em larga escala, alocadas à esfera da reprodução à medida que o país, não apenas deixa de explorar a mão-de-obra escrava, mas vai se libertando dos resquícios do escravismo. Ter-se-á, pois, a oportunidade de comparar a participação das mulheres brasileiras na produção de bens e serviços em duas fases bem distintas da economia do país, ou seja, de 1872, quando ainda vigorava o regime escravocrata (abolido em 1888) a 1930, quando tem início a industrialização enquanto processo, e daí até o momento contemporâneo.

*Primeira parte do artigo originalmente publicado sob o título “Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras”.

[1] “A única coisa que distingue uns dos outros os tipos econômicos da sociedade, por exemplo, a sociedade da escravidão da sociedade do trabalho assalariados, é a forma pela qual este trabalho excedente é arrancado ao produtor imediato, ao trabalhador”. (O Capital, V. 1 – Marx)

[2] “O concreto é concreto porque ele é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade”. (Contribuição à Crítica da Economia Política – Marx)

[3] A expressão consubstancial é de Danièle Kergoat e foi expressa no VIII ENCONTRO DA ANPOCS 1984 Esta autora apresenta proposta interessante para analisar as relações sociais fora dos quadros das categorias dominantes.

[4] “Portanto, ao produzir a acumulação do capital, a população trabalhadora produz também, em proporções cada vez maiores, os meios para seu próprio excesso relativo. Esta é uma lei de população peculiar do regime de produção capitalista, pois em realidade todo regime histórico concreto de produção tem suas leis de população próprias, leis que regem de um modo historicamente concreto” (O Capital, V. 1 – Marx)

[5] “Althusser lança a noção de uma totalidade complexa na qual cada setor independente tem sua própria realidade autônoma, mas cada um dos quais é, em última instância, mas só em última instância, determinado pelo econômico. Esta totalidade complexa significa que nenhuma contradição social é simples. (…) Para descrever esta complexidade, Althusser usa o termo freudiano ‘sobredeterminação’. A expressão “unité de rupture” refere-se ao momento em que as contradições tanto se reforçam umas ás outras que se condensam em condições para a mudança revolucionária”. (Contradiction et subdetermination: notes pour une recherche – Althusser)

[6] “… a acumulação capitalista tem necessidade para se mover de formações sociais não-capitalistas em torno de si, uma vez que ela se desenvolve através de trocas constantes com estas formações e não pode subsistir sem contatos com semelhante meio”. (L’accumulation du Capital – Rosa Luxemburgo)

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