Por Santiago Armesilla, via Cronica Popular, traduzido por Rodrigo Gonsalves.
Entrevista conduzida em 26/10/2015 com Domenico Losurdo, nascido em 1941 em Sannicandro di Bari e falecido no dia 28/06/2018, também na Itália. O filósofo foi professor emérito da Universidade de Urbino e autor de diversos livros essenciais como a “Contra-História do Liberalismo”; “”Nietzsche – O Rebelde Aristocrata”; “Antonio Gramsci – Do Liberalismo ao Comunismo Crítico”; “Stalin – História crítica de uma lenda negra”; “As lutas de classes”; “Hegel, Marx e a Tradição Liberal”, entre tantas outras obras.
Santiago Armesilla (SA): Bem, antes de começar, gostaria de agradecê-lo por conceder esta entrevista ao Crônica Popular. Entrevista que será também publicada na web na Universidade Instituto Euro-Mediterrâneo e também, na Fundação de Investigações Marxistas (FIM). A Edições do Oriente e do Mediterrâneo publica este ano 2015 o seu livro Antonio Gramsci: do liberalismo ao comunismo crítico. Para mim, a primeira coisa que me chamou a atenção no livro é que é uma tradução do original em italiano de 1997. Já se passaram 18 anos desde sua primeira edição na Itália, com o que se poderia dizer que (a obra) já atingiu sua maioridade. E, no entanto, o fato de ter sido publicado agora na Espanha significa não apenas que seu texto é atual, mas que o próprio Antonio Gramsci permanece sendo um autor a ser levado em consideração no século XXI. Como você avalia o tempo decorrido desde que você o escreveu pela primeira vez até o momento atual em que foi traduzido para o espanhol?
Domenico Losurdo (DL): Acredito que Gramsci nos permite hoje, mais do que nunca, responder a uma pergunta universal: o que significa ser um revolucionário? Gramsci se torna um revolucionário na esteira da Primeira Guerra Mundial. Anteriormente, já sentia simpatia pelas classes subalternas e pelos povos coloniais. Mas, depois da catástrofe da Primeira Guerra Mundial, ele se torna revolucionário e, imediatamente, adere à Revolução de Outubro. Hoje estamos diante de uma nova crise, não tão grande como a da Primeira Guerra Mundial, mas desde 2008 estamos em um grande impasse que nos faz entender que tudo o que foi dito louvando o capitalismo era falso, era mentira. Agora, novamente, vemos movimentos rebeldes florescerem, movimentos de resposta ao capitalismo, e novamente nos deparamos com o problema: o que significa ser um revolucionário, o que significa querer transformar a realidade? Gramsci teve que explicar – porque ele viveu em uma época em que havia uma grande rebelião contra a guerra – o que significa ser um revolucionário. Eu direi isso brevemente, tudo bem? Já no primeiro Gramsci, antes mesmo da Revolução de Outubro, ele chama a atenção para a questão colonial. Ele fala acaloradamente dos crimes cometidos pelo colonialismo Europeu e Ocidental nas colônias. Ao julgar um país, por exemplo, os Estados Unidos, Gramsci fala não só da comunidade branca, mas também dos terríveis linchamentos dos negros. E, esta é a primeira lição que podemos aprender com Gramsci: ser revolucionário significa ter presente a totalidade, não apenas um aspecto da realidade, mas os diversos aspectos da realidade. Conclusão para hoje: se alguém hoje pretende ser revolucionário, mas ignora as guerras coloniais contra a Líbia, o Iraque, a Síria e o perigo da guerra em escala mundial, na realidade não é um revolucionário autêntico. Tem que se levar em conta o que acontece na Europa e o que acontece em escala global. Este é o primeiro ponto.
Mas Gramsci também explicou outra coisa para nós. É verdade que um revolucionário possui um sentimento internacionalista, mas deve ser, ao mesmo tempo, profundamente nacional.
SA: Desenvolva, por favor, essa ideia, esse elo de internacionalismo e nacionalismo…
DL: Lenin foi um grande internacionalista precisamente porque era profundamente nacional, profundamente russo. Entendia que a revolução pode ser realizada, pode ser levada adiante, somente depois de se ter entendido profundamente a questão nacional. Gramsci insiste nisso continuamente, não há revolução sem reconhecimento do terreno nacional. Mas Gramsci acrescenta outra coisa: ele é o maior crítico do anarquismo. Para Gramsci, ser revolucionário significa não se deixar contaminar pelo anarquismo. O anarquismo pode produzir o rebelde, mas não o revolucionário. O revolucionário não se preocupa apenas em destruir a ordem existente, ele se preocupa com a nova ordem. Todos sabem que a nova ordem é uma categoria central do pensamento de Gramsci. Gramsci insiste que o anarquismo é a continuação do liberalismo. Gramsci, pode-se dizer que, exclui o anarquismo da esquerda e o considera como a continuação do liberalismo. Gramsci prossegue dizendo que, quem não inclui o Estado não tem uma autêntica consciência de classe.
E, portanto, o que significa ser um revolucionário? Não fazer a transfiguração da sociedade civil. Parece que hoje em dia, para ser revolucionário se deve problematizar contra a casta política e idealizar a sociedade civil… Mas Gramsci tem uma tese fundamental. Atenção: a sociedade civil é, em si mesma, uma forma de Estado. Eu enfatizo: a sociedade civil é em si mesma uma forma de Estado. Além disso, Gramsci diz que a sociedade civil e o Estado se identificam.
SA: Qual é o significado dessa identificação que Gramsci faz entre a sociedade civil e o Estado?
DL: O que significa? O marxismo, o marxismo de Antonio Gramsci, distingue-se claramente do liberalismo por isso. No liberalismo, o lugar da dominação, do poder, da opressão é sempre, somente, o Estado. Portanto, basta livrar-se do Estado, basta parar de oprimir a sociedade civil, para alcançar a emancipação. Mas este não é o ponto de vista de Gramsci. A própria sociedade civil pode ser o lugar da dominação e da opressão. Para dar um exemplo, se tomarmos a história dos Estados Unidos de uma maneira particular, em primeiro, ao programar a expropriação dos índios, sua deportação, sua dizimação, sua aniquilação, estava lá a sociedade civil branca. Às vezes, o estado federal estava até tentando limitar o expansionismo da sociedade civil branca. A sociedade civil branca era o lugar da dominação e da opressão brutal contra os índios. Também, no que diz respeito à história das relações com os negros, com os afro-americanos, foi a sociedade civil branca que organizou os linchamentos, com assembleias, com infinitas torturas e um grande espetáculo. Às vezes, o Estado, apesar de fechar não só um olho, mas ambos, tentou conter as formas mais brutais. Não é verdade que a sociedade civil é necessariamente o lugar da emancipação. Eu acredito que devemos ter isso em conta hoje. Hoje existem muitos jovens rebeldes, sinceramente rebeldes, que devemos apreciar, mas que falam da transfiguração mitológica da sociedade civil. É um erro muito grave do ponto de vista de Gramsci. Até mesmo o fascismo na Itália foi uma expressão da sociedade civil.
Para mencionar um último ponto: Gramsci pensou o comunismo, a sociedade que deve pôr fim ao capitalismo, em termos não-messiânicos, a “desmessianização” o comunismo. Eu enfatizo esta expressão: comunismo “desmessianizado” [desmesianizado]. Ele tirou os elementos messiânicos que o comunismo tinha.
SA: Em que termos, portanto, Gramsci realizou essa “desmessianização” do comunismo?
DL: É normal que um grande movimento revolucionário, sobretudo depois da catástrofe da Primeira Guerra Mundial, tenha expressado o desejo de renovação em termos messiânicos, em termos escatológicos. Se olharmos para um grande filósofo marxista do século XX, Ernst Bloch que, após o horror provocado pela Primeira Guerra Mundial, nos diz que da Revolução de Outubro é esperado não só o fim de uma economia privada, e não apenas o fim do espírito mercantil, mas “a transformação do poder em amor”. É claro que é uma utopia messiânica. Não haveria nem sequer a necessidade de uma norma jurídica porque haveria desaparecido qualquer distensão, qualquer contradição, qualquer luta teria desaparecido. Esta é uma visão religiosa do comunismo. Mas, em Gramsci, dizer que o Estado se extingue, dizer que o Estado está dissolvido na sociedade civil, não significa nada, porque a própria sociedade civil é uma forma de Estado, a própria sociedade civil pode ser o lugar de opressão, de poder e de domínio. Gramsci, na verdade, desmessianiza o comunismo. O comunismo não é a extinção do Estado. Já em Marx e Engels se falava, às vezes, da extinção do Estado enquanto tal, e falava-se da extinção do Estado em seu atual sentido político. E essa segunda definição é diferente da primeira. Elas não são idênticas. Para dizer que o Estado se extingue no sentido político atual significa dizer que, de alguma forma, o Estado continua a sobreviver mesmo que sem o caráter de opressão e dominação que são próprios de uma determinada classe.
SA: Há outra questão abordada em profundidade por Gramsci e que você destaca em seu livro, a questão nacional…
DL: Podemos dizer que muitos comunistas, imediatamente após a Revolução de Outubro, esperavam o desaparecimento das nações, o desaparecimento total das nações; eles pensaram que não haveria mais identidades nacionais. Mas este não é o parecer de Gramsci. E mais, a questão nacional está no centro de sua reflexão. Gramsci pensa em uma ordem na qual certamente tenha desaparecido o imperialismo, a opressão imperialista, mas também, onde a identidade nacional continua existindo, desenvolvendo-se mais ainda do que antes, em uma relação de coexistência pacífica e respeitosa. Deste ponto de vista, tendo em vista que você leu meu livro sobre Stalin, você pode estabelecer um confronto entre duas personalidades muito diferentes, que muitas vezes se contradizem. Mas Stalin, no final da década de 1920, diz que devemos admitir que a experiência nos mostrou a estabilidade colossal das nações. Era uma loucura contra o qual Lenin já estava argumentando, porque na Rússia eles estavam supondo que a língua russa desapareceria, e o exato oposto aconteceu porque com a alfabetização massiva que houve a língua russa nunca tinha sido tão difundida.
SA: Também destaca a consideração de Gramsci sobre o mercado …
DL: Vamos pegar a questão do mercado. Imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, compreensivelmente – devemos dizê-lo mesmo com simpatia, pensava-se que a corrida pelo máximo benefício havia estimulado a guerra – é pensado um mundo no qual não existe mais o mercado. Está claro que era um modo extremo de pensar. Gramsci diz – é um termo que insisto muito no livro – de “mercado determinado”. É uma expressão brilhante, genial. Por quê? Porque se você olhar para a história do mercado, muito brevemente, você não pode colocar tudo no mesmo plano. Para dar um exemplo, por muito tempo os negros eram mercadorias que eram vendidas no mercado, não participavam ativamente do mercado, eram mercadorias vendidas. A abolição da escravatura impediu que os negros, os escravos, fossem reduzidos a uma mercadoria. O mercado continuou, mas o mercado em que os negros eram uma mercadoria e o mercado em que a abolição da escravidão ocorrera, não é a mesma coisa. E podemos pensar que o mercado pode continuar a ter outras grandes transformações. Por exemplo, os chineses agora pensam em um socialismo de mercado, qualquer que seja o julgamento feito sobre esse processo. Creio que toda a experiência histórica demonstra a validade da tese de Gramsci sobre o mercado como um “mercado determinado”.
SA: Em que sentido Gramsci fala do Novo Homem?
DL: Eu falo muito sobre isso no livro. Às vezes, no movimento comunista, o slogan do Novo Homem é difundido. Às vezes, esta categoria do novo homem é entendido como forma verdadeiramente religiosa, messiânica, como se os homens e mulheres se tornaram transfigurados pela graça, como se não ficariam com nenhum sentimento de ressentimento ou hostilidade, como se tivesse desaparecido quaisquer fontes de conflitos. Em vez disso, Gramsci interpreta a categoria de novo homem de uma forma bastante diferente, pois novas relações de produção produzem o Novo Homem. Não há dúvida de que, por muito tempo, era “normal” considerar o negro como escrava, era um escravo por natureza, era a coisa mais óbvia do mundo que os negros poderiam ser vendidos no mercado. Quando uma grande revolução aconteceu, a revolução abolicionista, certamente um Novo Homem começou a surgir. Um homem que considera a escravidão dos negros um horror. Podemos ver como Gramsci sempre esteve certo. As relações entre homem e mulher foram muito diferentes, por certo tempo era “normal” que as mulheres fossem a escrava doméstica, mas depois a influência de Marx na Revolução de Outubro – se sabe que Marx e Engels haviam denunciado a escravidão doméstica da mulher – tornou-se então normal que a escravidão doméstica das mulheres fosse abolida.
SA: De todas estas considerações, o que é, na sua opinião, o grande mérito de Gramsci e sua influência no marxismo hoje?
DL: O grande mérito de Gramsci, que o permite formar parte integral ao marxismo do século XXI é que, pela primeira vez se pensou uma revolução socialista comunista de grande radicalidade, porém que ao mesmo tempo não significasse o fim do estado. Não é o fim do conflito, não é o paraíso da tradição religiosa messiânica. Naturalmente falei aqui apenas de alguns aspectos, mas Gramsci desmessianizou a tradição comunista. Se continuarmos a falar sobre a importância de Gramsci, eu digo que Gramsci refinou de maneira extrema a categoria da revolução, o modo como o processo revolucionário se desenrola, mas este, como eu disse, é um outro capítulo.