Capital sem Capitalismo (parte I)

Por Sandino Nuñez, traduzido por Daniel Fabre.

Sandino Andres Nuñes é um importante filosofo e escritor latino-americano, pouco conhecido no Brasil. Especializado em epistemologia e filosofia da ciência pela Universidad de la Republica, o autor investiga a possibilidade de crítica da cultura contemporânea, identificando nela o caráter a-simbólico do capitalismo tardio. Busca ainda revitalizar a teoria do sujeito e a psicanálise, colocando a subjetividade como uma ferramenta da socialização política.

Sandino ficou conhecido ao apresentar o programa de TV “Prohibido Pensar”, dedicado a filosofia e que foi exibido nas telas uruguayas pelo Canal 5. Sua instigante analise do capitalismo contemporâneo se baliza em autores como Alain Badiou, Slavoj Zizek, Walter Benjamin, Louis Althusser, Michael Foucault, entre outros.

Abaixo publicamos a primeira parte de um artigo em que Sandino debate como o “giro neoliberal” do capitalismo contemporâneo alterou suas coordenadas ideológicas e repressivas, inaugurando uma era do Capital sem Capitalismo. 

  
Artigo publicado pela primeira vez pela Revista de Ensayos. Año I, nº 6 – Mayo-Junio. Montevideo, pp. 39-54


1.

Para poder explicar o mistério da auto-conservação e da reprodução do capitalismo clássico (chamemos assim o capitalismo que se ocupa de organizar ou administrar estatal ou centralmente a força de trabalho, as energias sociais e os modos de vida), se recorreria aos aparatos de estado repressivos ou ideológicos. O assunto é: como se explica que um sistema que explora, aliena e escraviza as maiorias siga contando de todas maneiras com certos consensos fáticos que fazem com que o povo se mantenha disciplinadamente trabalhando, reproduzindo-se e administrando sua energia em favor do sistema e contra seus próprios interesses? A repressão ou a ideologia eram procedimentos, dispositivos ou aparatos especializados que se voltavam sobre as pessoas para colocá-las em posição de servidão: obrigatória através do poder coercitivo, voluntária através do engano ideológico. O povo seria, por definição, indócil: a intervenção positiva do poder é o que o conduz ao estado de docilidade funcional desejado.

Mas o capitalismo foi mudando nas últimas décadas. O chamado “giro neoliberal” (e pós-neoliberal) – um Estado que se retira do lugar de representação ou da cobertura político-ideológica explicita de interesses econômicos para ser um ator econômico a mais, sujeito às regras do mercado; laissez-faire e concessão a organização espontânea (é dizer, mercantil) das forças produtivas e da economia da troca; dispositivos tecnológicos massivos de segurança e prevenção, de cuidado e bem-estar, etc. – isso aparece hoje como um simples “momento ideológico” do capitalismo (e nem sequer como sua evolução a uma fase superior): põe o capitalismo no lugar de um ideal objetivo, um estado terminal eterno. O capitalismo alcança seu ponto cego de universal abstrato não na ideologia e no mito, senão no fetichismo da mercadoria e da tecnologia, e na exaltação da economia e da pragmática como a lógica própria da vida. Empurra com sua própria mecânica metabólica, em um mínimo de reinversão ideológica ou repressiva para se conservar e reproduzir-se a si mesmo. Em outras palavras, a pergunta de como fazer um sistema injusto para conservar-se e reproduzir-se naqueles de quem se explora e prejudica já não procede, é do tipo “não há lugar”, tanto em conceitos histórico-dialéticos como no “sistema capitalista”, “modo de produção”, “exploração” e, por certo, “justiça”, parecem ter desaparecido da ontologia (ou da “ôntica”) surda e a-subjetiva do capitalismo global contemporâneo. As coisas são já assim, e assim foram sempre: a força de conservação e reprodução do superorganismo capitalista é inerente a sua própria vida, é seu torque mecânico, seu real.

As consequências filosóficas deste “giro” são, em minha opinião, enormes e profundas: tanto para uma “teoria” do ambiente capitalista que nos determina como para entender qual deve ser o ato anticapitalista fundamental capaz de ser proposto política e subjetivamente. Em suma, o giro neoliberal é muito mais que um “giro” se tomarmos essa expressão como certas características novas do estilo ou da época, ou certas orientações doutrinarias sempre transitórias e – em definitivo – quase ornamentais já que não tocam o núcleo duro do sistema. O giro neoliberal é uma brutal e definitiva consagração e naturalização do real do capital.

Apoiado neste “giro”, o capitalismo pode evoluir com certa liberdade em direções diversas. O poder e o Estado podem deixar de jogar a democracia e a permissividade, por exemplo, e passar a assumir posições explicitamente verticalistas e decretalistas, parecidas ao desenvolvimento chinês, para conseguir eficazmente tais ou quais objetivos econômicos específicos. Tal é o caso, com certa perversidade variante, dos filhos mais frágeis, pobres e atrasados da União Europeia como a Espanha ou a Grécia. A Espanha, por exemplo, esteve introduzindo reformas jurídicas e administrativas no direito civil e penal que abertamente lesionam as “cordas democráticas”, dando a entender que o matrimônio entre o capitalismo e a democracia liberal chega ao seu fim por dificuldades econômicas. Na nova lei de segurança cidadã aprovada pelo parlamento espanhol e conhecida como “lei da mordaça”, se penaliza com multas de até 30 mil euros as consideradas “faltas graves” (impedir despejo, negar-se a dissolver uma manifestação ou concentração, gravar operações policiais sem autorização). Se castiga com sanções administrativas e econômicas aquele que antes era parte do processo penal e se da mais valor probatório às denúncias feitas pelas forças de segurança. Coletar e sobretudo impedir que algo escape da lógica econômica. Nada de álibis ideológicos: pragmática pura: a falta reinscreve a indocilidade civil no próprio sistema como valor de troca através da sanção e da multa. Nada mais correto, mais puritano, mais radicalmente protestante. A figura quase arcaica de “falta” não aparece – como quer se fazer pensar – contra a figura do “delito”, para introduzir uma simples distinção entre graus de gravidade e inclusive mostrar certa piedade punitiva. A falta, nova estrela no baixo céu jurídico do capitalismo contemporâneo, brilha com sua própria luz positiva: substitui a pena ou o castigo pela sanção ou multa. Porquê esvanecer com ideologia, política, filosofia ou moral (natureza do castigo, incomensurabilidade de medidas como a privação de liberdade, épica de resistência contra a repressão política, etc.) aquilo que é economicamente puro? Porquê introduzir um perigoso distúrbio simbólico no tranquilo quadrilátero territorial da comunidade-mercado que convive, trabalha, troca e compete? Porquê não deixar que viva tranquilo o homo economicus, sem as amarras neuróticas patológicas do zoon politikon?

Esta redução ao plano do valor de troca de questões heterogêneas (filosóficas, políticas, éticas, morais) parece o reverso exato do conto “A loteria na Babilônia” de Borges. No conto ocorre a alguém uma modificação na popular loteria (os babilônicos adoravam jogos) e introduz prêmios ou castigos não pecuniários ou econômicos: o prêmio por ter ganhado um sorteio já não é simplesmente dinheiro, senão, digamos, encontrar “por azar” a mulher de nossos sonhos e o mesmo vale para as sortes adversas: não só uma multa em dinheiro senão um acidente, uma doença, o presídio. Mas, o considerando menos superficialmente, as duas medidas têm o mesmo efeito: abrir (ou fechar) o sistema de jogo em uma totalidade abstrata e ilimitada, do tipo “tudo é jogo”, não há nada além de jogo, não há senão economia e valor de troca, não há senão uma sequencia ilimitada de jogadas de dados incapazes de abolir o azar. Primeiro através de uma redução de todo o complexo universo simbólico a uma mecânica de multas e compensações; segundo uma ampliação da mecânica das multas e compensações até fazê-la simular toda a complexidade do universo simbólico. Jaz aqui então, em seu estado mais grotesco e infantil, o carácter das novas operações do capitalismo: imanência radical da mecânica do sistema, imanência do jogo, imanência da máquina econômica, imanência da vida. Nem repressão nem ideologia (qualquer das duas mostra uma brecha heterogênea perigosamente transcendente do sistema – sujeito, política, soberania, etc.): forclusão, o crime perfeito, um crime sem rastros, sem pistas, sem cadáver, sem assassino, e em suma, sem crime. Vamos do ethos protestante como o núcleo do “humor capitalista” em Weber, à hipótese muito mais radical de Benjamin do capitalismo como estado religioso absoluto e ilimitado – a hipótese de Benjamin, me parece, não anula a observação original de Weber: a empurra para um extremo radical e a abre já sem retorno, mas a contém.

2.

Neste ponto do capitalismo é necessário introduzir certo “giro teórico” (digamos, para respeitar certa simetria com o “giro neoliberal”), tanto com respeito às análises da ideologia e da repressão, como com respeito às propostas clássicas do biopoder e da biopolítica em Foucault. A proposta em uma retórica mais bem axiomática.

  1. Podemos começar por explicitar um paradigma elementar, cuja vantagem é nos permitir intuir graficamente o questionamento: a massa, o corpo, o imaginário e o privado do homo economicus devem ser entendidos contra o sujeito, o povo, o universal e o público do zoon politikon.[1]
  2. Chamemos “vida” ou “metabolismo” tanto a mecânica e o funcionamento do sistema ou do organismo social (crescimento, desenvolvimento, expansão) quanto a força mínima capaz de conservar e manter esse funcionamento.
  3. Chamemos “economia” (ou pragmática, ou, de acordo com Aristoteles, proaíresis) a sua lógica.
  4. Definimos a conservação do sistema ou do organismo como uma força inercial inscrita em (e indissociável de) seu funcionamento ou sua vida. Assim prefiro adotar uma perspectiva que não põe ênfase em nenhum recurso ou procedimento especifico complementar ao funcionamento do organismo-sistema destinado a assegurar sua continuidade, seu crescimento e sua reprodução. A conservação, em princípio, é algo inerente ao funcionamento mesmo: é ele próprio funcionamento. Coesão, continuidade e reprodução indefinida já estão aí, inscritos no próprio viver, e se expressam no conceito da primeira lei de Newton: todo corpo permanece em seu estado de repouso o movimento uniforme e retilíneo a não ser que seja obrigado a trocar seu estado por forças impostas sobre ele. Conservar a vida do organismo ou a mecânica do sistema, então, não requer operações adicionais, especificas ou diferenciais. É implicitamente uma lógica do mesmo e de mais do mesmo: mais vida, mais mecânica, mais pragmática, mais sistema, mais organismo.[2]
  5. A massa, o corpo, o imaginário ou o privado são, em essência, forças inerciais: a força do mesmo, a conservação e reprodução da mecânica funcional da vida. O corpo e a massa são parte, produto e resultado desse funcionamento. A massa e o corpo não são então, nesta perspectiva, forças subversivas ou revolucionárias. São, em princípio, exatamente o contrário: são forças ou lógicas conservadoras. A massa não é enganada ou reprimida para ser posta em uma posição de docilidade funcional à máquina; a mecânica pratica imanente do todo, o próprio sistema, a própria máquina. Corpo-massa-privado são então forças, ou melhor, estados econômicos, é dizer, pertencem plenamente a lógica econômica. Enquanto que sujeito-povo-público são basicamente um corte e uma superação da continuidade imanente da economia em uma lógica heterogênea que para não complicar as coisas chamaremos, sem originalidade alguma, política.

Um corolário: a massa exerce contra o povo e o corpo exerce contra o sujeito a mesma resistência passiva que exerce o privado contra o público e o econômico contra o político.

Este giro então discutiria simultaneamente com dois interlocutores que por sua vez discutem entre eles: um foucaultiano, e outro althusseriano.[3] O foucaultiano, ainda que não explicite ou formalize, não pode deixar de postular o caráter inerentemente subversivo da vida e do corpo. O poder (o capital?) é uma máquina voltada sobre e contra a vida, destinada a ordená-la, discipliná-la e administrá-la, ainda quando essa energia negativa de disciplinamento e docilização suponha a produção positiva da própria vida, sua multiplicação, sua potencialização e seu estimulo, a produção de saber, etc. Para o foucaultiano, goste ou não, a massa, o corpo e o privado são reservas de uma energia utópica sempre já em posição de resistência ou combate ao poder e ao capital: a força múltipla e vital dos sentidos, os dialetos e os corpos. O foucaultiano não aceitaria de nenhum modo a política como um corte no continuo virtual do biopoder e tenderia a entender de forma imanente como uma mera astúcia do poder. O althusseriano, em outro plano, postula que o sistema capitalista se reproduz pela ação positiva e especializada do aparato ideológico ou do repressivo, em nível de reprodução das relações de produção e nos da a entender que uma vez criticados, “desconstruídos” ou neutralizados estes aparatos, o que sobra é a objetividade neutra do sistema produtivo frente ao qual não cabe senão ter uma posição subversiva, que é também uma posição a-ideológica e a-subjetiva: a força absoluta e glacial de uma verdade (científica) sem sujeito. Entre a a-subjetividade (pré-subjetividade) das táticas, das estratégias e das posições pragmáticas e singulares, e a a-subjetividade (pós-subjetividade) da ciência e da estrutura, o que se perde é uma posição politicamente radical ante o capitalismo. É a própria discussão entre esses dois interlocutores o que, em parte nos distraiu: ao excesso verticalista de uma ciência que se entende capaz de superar definitivamente e enclausurar as posições ideológicas do sujeito, se responde com a vitalidade nietzschiana da multiplicidade imaginária e heteroglósica dos sentidos, as resistências e as lutas parciais. Um movimento quase obrigatório é trazer essa discussão para uma matriz hegeliana: a primeira negação se substancializa e absolutiza como uma elevação definitiva e totalitária da razão ou a verdade por cima das determinações ideológico-imaginárias do sujeito (o althusseriano), e agora a segunda negação aparece como uma recaída, não como uma negação da negação senão como um ‘desmentir’ da primeira negação (o foucaultiano): o ideológico-imaginário, no lugar de reaparecer como o dano e o “osso” da negação (a determinação mesma, o que faz com que a negação não deixe de ser negação), se reinstala como um horizonte definitivo cuja força gravitacional reabsorve sem resíduo todo o esforço prévio de negação. Mas esta observação formal não é suficiente.

Parte II.

 
[1] Devo esclarecer que este contra não deve ser lido como um enfrentamento entre duas coisas senão como um antagonismo entre duas lógicas, e enquanto antagonismo dialético ele é inclusivo: nos permite ver as lógicas enquanto lógicas, pois o sujeito, o povo ou o público contém (ou é) a brecha que permite propor o antagonismo mesmo do sujeito/corpo, povo/massa, público/privado. A política então não enfrenta a economia em um plano de equivalência substancial: é a antítese da economia e a superação e síntese do próprio enfrentamento; é uma negação ou uma objeção à economia, e também uma negação ou uma objeção a si mesma que a devolve ao núcleo resistente de sua determinação econômica. Há que se repetir com Hegel que o superado segue vivendo na superação. Enquanto a economia é, entre outras coisas, um universal abstrato, uma certa dimensão irredutível de qualquer prática humana (que se desliga na super-história abstrata da espécie por exemplo), obtura a lógica do não-todo, e é por isso que, em ultima instância, qualquer acontecimento político está contido nela, e pertence a essa imanência. Mas a política não é o forçamento de um limite externo à economia, não é o ato que decreta a existência de uma zona de heterogeneidade transcendental (Ainda que isso se faça, e, até certo ponto, deva ser feito): é a brecha mínima que há entre o ato ou o enunciado econômico e uma instância de enunciação que é uma negação desse enunciado. Em Marx podemos entender que o “capitalismo” introduz uma determinação histórica e política à economia, que o capitalismo é um modo histórico-político de dizer economia: aí esta a brecha mínima: não entre a coisa econômica e a coisa (ou ideia) política, senão entre o enunciado econômico afirmativo e sua própria negação na instância de enunciação, em sua própria autoconsciência que o nega, o objeta e o supera infinitamente. Em outras palavras, ocorre o seguinte paradoxo: por um lado a política como objeção à economia está determinada pela instância econômica negada, e por outro lado, a negação mesma consiste, até certo ponto, em dar um sentido político ou ideológico ao mecanismo econômico, em fazer aparecer o mecanismo econômico como algo sempre já determinado pela política, pensar em um sujeito por detrás do automatismo do capital.

[2] Este é um dos nós de complexidade que podemos atribuir à noção freudiana de pulsão de morte: é menos algo da ordem da destruição do que da recaída na homeostase e na conservação indefinida da vida. Desde certa perspectiva e até certo ponto, a pulsão de morte poderia ser vista como o proprio princípio do prazer recaindo permanentemente sobre si mesmo: a catástrofe heideggeriana do “esquecimento do ser” (ontologia) por um medo das catástrofes ônticas (a morte, os acidentes, a miséria, o sofrimento) que nos confina em uma dimensão puramente “ôntica”. Outro nome, talvez, para o ilimitado estado de exceção que propõe Agamben.

[3] Não me atrevo, é obvio, a dizer Althusser e Foucault. Prefiro que a proposta se resolva na remitência um pouco fantasmática a suas supostas comunidades de leitura, antes do que entrar em um problema acadêmico de leitura correta ou incorreta dos autores.

   

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