Chile: O golpe contra o governo popular

Por Edward Boorstein, traduzido por Ana Carolina Hengles

Em artigo de 1974 publicado pela UNAM no México, o economista estadunidense Boorstein que foi assessor do governo de Allende no Chile avalia com detalhes o então recente golpe militar de onze de setembro e a derrocada do projeto de criação do socialismo pela via democrática com a Unidad Popular.


O golpe foi executado pelas Forças Armadas chilenas e por ‘carabineros’ (polícias), mas por trás havia o imperialismo dos EUA e a oligarquia chilena. Desde o princípio, esses grupos queriam evitar que o socialismo triunfasse no Chile. Os monopólios gigantes norte-americanos – como Kennecott, Anaconda e ITT (International Telephone & Telegraph) – tinham grandes propriedades no território. O governo dos EUA não quer que exista nenhum exemplo a mais de socialismo triunfante em nenhuma parte e, especialmente, perto de países como Bolívia, Uruguai e Brasil. As classes dominantes chilenas queriam proteger seu próprio poder político e econômico no Chile, seus privilégios econômicos, seu direito de gozar de enormes casas luxuosas, vários automóveis e frequentes viagens ao estrangeiro, enquanto as populações marginais que lotam Santiago e outras cidades grandes e pequenas vivem em chiqueiros, geralmente sem água corrente, sem banheiros, sem drenagem nem aquecedor.

Todos os setores dessa oposição estavam de acordo com a necessidade básica de conter o socialismo no Chile, mas haviam diferenças em relação à tática e ao momento oportuno.  A ITT estava impaciente: a mesma ITT que presenteou Fulgêncio Batista, o ditador de Cuba, com um telefone de ouro puro em agradecimento pelos seus serviços; a mesma ITT que mantinha relações amistosas com Adolf Hitler e produzia materiais de guerra ao mesmo tempo para a Alemanha nazista e para os aliados durante a Segunda Guerra mundial. Depois da eleição de Salvador Allende, a ITT ofereceu um milhão de dólares para ajudar a financiar a ação destinada a evitar que o presidente tomasse posse de seu cargo. O General Viaux, das Forças Armadas chilenas, também estava impaciente e organizou o complô que conduziu ao assassinato do General Schneider, chefe de comandantes do exército chileno, contrário ao golpe militar.

Mas a estratégia dos principais setores do imperialismo norte-americano e das classes altas chilenas foi mais calma, mais paciente. A estratégia do governo dos EUA foi a de esconder a cara, evitar a hostilidade aberta e óbvia em direção ao governo chileno, mas por debaixo dos panos, onde ninguém o via, estrangular o Chile economicamente, produzir caos político para enfraquecer o país antes de dar o golpe. Os imperialistas norte-americanos haviam aprendido com a experiência cubana que o ataque aberto a uma revolução poderia ser prejudicial, pois talvez resultasse em um aprofundamento da consciência revolucionária do povo chileno e serviria para atiçar os sentimentos anti-imperialistas no restante da América Latina e nos Estados Unidos.

Por isso, o governo dos EUA falou o menos que pôde. Mas os bancos norte-americanos reduziram rapidamente seus créditos ao Chile de 230 a 30 milhões de dólares. As instituições internacionais de crédito, dominadas pelos EUA, negaram os empréstimos. Os provedores de equipamento, de peças de maquinaria e de matérias-primas se negaram a conceder um simples crédito comercial. Eu mesmo, pois trabalhava nesses tempos no escritório de Nova Iorque da Corporação de Fomento, fui para a Ford de Detroit para pedir crédito comercial para a compra de peças de maquinaria, mas meu pedido foi rejeitado de imediato.

A Kennecott e a Anaconda solicitaram em Nova Iorque, no começo de 1972, o resgate dos saldos de suas contas em banco chilenos para dificultar e deixar arriscado para o Chile a operação de compra nos Estados Unidos. O comentário de um dos juízes que atuou nas audiências ajuda a ilustrar como trabalha a justiça nos EUA: “Eles se apoderaram do nosso cobre, não é assim?”, quer dizer, do cobre de Kennecott, da Anaconda e dele. Em setembro de 1972, a Kennecott levou suas ações judiciais até os juízes da França e de outros países da Europa. Não foi coincidência que isso aconteceu ao mesmo tempo em que ocorreram as desordens nas ruas de Santiago, fomentados por uma organização abertamente fascista chamada Patria y Libertad.

Durante todo esse tempo, a CIA trabalhava secretamente: planejava, organizava e treinava os grupos de oposição com técnicas para criar distúrbios nas ruas, sabotagem nas linhas de energia elétrica, etc. Durante a paralisação de patrões e donos de caminhões contra o governo em outubro de 1972, foi notável a caída da taxa do mercado ilegal para o câmbio do dólar.

O Secretário geral do Banco Central me deu a explicação: o grande montante de dólares introduzidos pela CIA para financiar os grevistas

A estratégia da oposição chilena se juntou com a dos imperialistas norte-americanos. O principal elemento dessa estratégia foi trazida pelos democratas-cristãos; trata-se de algo que um de seus teóricos chamou de “a estratégia dos marechais russos”. Os democratas-cristãos se enfrentavam com um problema político: seus principais dirigentes pertenciam à ala direita, mas muitos de seus seguidores estavam a favor de uma mudança estrutural e em alguma medida eram anticapitalistas. Se o partido democrata-cristão tivesse atuado muito rápido e abertamente em oposição, parte de seus seguidores os teriam deixado para apoiar a Unidade Popular. Assim, à maneira dos marechais russos frente a Napoleão, o Partido Democrata-cristão ordenou a retirada momentânea. Sim, eles também queriam a nacionalização do cobre devido ao que a “chilenización” (a enganosa nacionalização que tentaram durante o governo de Frei) reconheceu apropriadamente como o caráter de iniciação do processo de nacionalização. Também estavam a favor da mudança estrutural e contra o capitalismo, desde que se fosse feito tudo constitucional, legal e cuidadosamente. Mas que pensavam em um golpe desde o início, isso se mostra no seguinte fato fundamental: antes da votação no Congresso para decidir se Allende tomaria a presidência, insistiram na garantia constitucional de que o povo não se armaria e que as Forças Armadas tradicionais manteriam seu caráter de monopólio do poder armado no Chile.

Um ano depois que Allende tomou posse, começaram a se apresentar as dificuldades econômicas devido ao bloqueio invisível dos EUA, à uma drástica caída no preço do cobre, que reduziu enormemente as entradas de moeda estrangeira, e às alterações inevitáveis em qualquer revolução que é verdadeira. Isso permitiu que democratas-cristãos mudassem sua tática de retirada para se alinhar às do Partido Nacional em uma ofensiva já muito preparada. A tática era simples: sabotar o governo e depois reprovar os resultados da sabotagem; operar para tirar do governo todo poder e autoridade deliberadamente, enquanto se incumbia do controle da economia para manter a ordem nas ruas. A oposição controlou o Congresso, as Cortes, a Controladoria (ou algo assim, como uma Secretaria Geral de Contabilidade que decidia se os decretos, atos e atas governamentais eram legais) e fizeram uso de tudo isso para colocar em prática suas táticas. O Congresso votou uma lei de despesas atrás da outra, mas não quis votar pelo financiamento desses gastos. Então, a oposição reprovou ao Governo a existência de um enorme déficit orçamentário e de uma inflação galopante que tinha continuidade.

Muitas das empresas privadas que ficaram, começaram a esconder suas mercadorias para deixá-las deliberadamente fora do mercado e criar escassez. O governo acudiu ao Congresso para que fosse emitida uma lei contra os delitos econômicos, mas o Congresso rechaçou a iniciativa. As Cortes sabotaram a aplicação das leis que já existiam.

As greves foram fomentadas pelos motoristas de caminhões, pequenos comerciantes, médicos, dentistas e por empregados de supervisão da mina de cobre El Teniente. Estas greves foram custosas: a greve dos caminhoneiros fez com que toda economia caminhasse a passos de tartaruga, ao interferir na plantação, nas semeaduras e colheitas, na paralisação da distribuição do combustível e matérias-primas para a indústria e no fornecimento de alimentos e outros bens essenciais de consumo; a greve do cobre por sua parte, causou sérias perdas em moeda estrangeira. Se via que as greves formavam parte da sedição e que, com isso, se tentava criar condições para derrubar o governo. Em circunstâncias normais, qualquer governo no mundo teria recebido o apoio do Congresso, das Cortes e de outros setores de aparato estatal para desfazer rapidamente essas greves. Nesta ocasião, pelo contrário, o Congresso serviu de fórum para os empregados de supervisão que estavam em greve na mina de El Teniente. As Cortes emitiram normas para estender e proteger os direitos dos grevistas. Quando o governo quis confiscar os veículos dos donos do caminhões na greve a Controladoria deteve os processos administrativos e técnicos de modo que fosse impossível cumpri-los. E o mais nefasto de tudo, durante a greve de El Teniente, poucas semanas antes do golpe, o militares se mobilizaram lentamente para proteger aos operários da mina que não estavam em greve.           

A sabotagem econômica foi coordenada com sabotagem política. A constituição prevê o caso de acusações a ministros do governo por ofensas sérias, crimes e coisas desse tipo. Mas agora, a oposição no Congresso iniciou um processo contra alguns ministros por razões políticas, e assim começou a acusar um ministro atrás do outro.

O governo estava forçado a entrar em um processo de constante e ininterrupta mudança de gabinete que dificultava na concentração de assuntos normais e ajudava a criar uma sensação de desordem geral.

As manifestações e outras desordens nas ruas foram fomentadas. Primeiro, apareceram as manifestações de respeitáveis damas da classe alta contra as escassezes. Depois, os distúrbios nas ruas produzidos por grupos pequenos, bem organizados e bem treinados de jovens agressivos que utilizavam rádios-comunicadores portáteis e táticas profissionais que claramente denunciavam serem treinados pela CIA. Até o final, se criaram deliberadamente distúrbios cotidianos nas ruas de Santiago e outras cidades: grupos de agressores que lançavam pedras e às vezes disparavam seus gases lacrimogêneos e, durante horas inteiras, partes da cidade se tornavam intransitáveis. Tudo foi planejado para trazer a sensação de que se desmoronava a autoridade com o peso da anarquia, o caos.

Por fim, vieram os assassinatos, a sabotagem dos serviços e outras ações. O assistente naval do Presidente foi assassinado. Um oleoduto foi incendiado. Os trens foram descarrilhados. Em uma noite, certo número de torres de distribuição de energia elétrica foram sabotadas em Santiago e em outras cidades, assim como em seus arredores, e passaram cerca de uma hora em completa escuridão.

À princípio, a oposição esperava provocar suficiente caos econômico e político e com isso ganhar para sua causa uma maioria impressionante do povo chileno e encobrir assim o golpe com um manto de legalidade. Esperava que nas eleições de março deste ano ganhariam a maioria com dois terços dos votos no Congresso, que já seriam suficientes para que pudessem acusar à Allende diante das Cortes. Mas a magnífica classe trabalhadora chilena e pessoas de outras classes sociais constituíram uma aliança que se manteve firme. A Unidade Popular ganhou mais de 44% dos votos (8% a mais que nas eleições das que Allende ganhou a presidência). Foi uma vitória. O Chile não tinha um sistema bipartidário, mas um sistema multipartidário. Os últimos presidentes tinham ganhado com somente uma minoria de voto total. E, contraditoriamente ao que havia acontecido com a Unidade Popular, sempre haviam perdido votos ao invés de ganhá-los nas eleições de meio-mandato; por exemplo, Frei que só ganhou cerca de 28% dos votos nas eleições de meio de mandato.

Com esta perda nas eleições de março, os imperialistas e a oligarquia chilena não tinham mais outra saída que não fosse realizar o golpe de estado. Não podiam esperar até as eleições de 1976; a Unidade Popular, sobretudo com uma melhoria na situação econômica, pôde ganhar então não um 44 mas 50% dos votos. A oposição não podia sequer correr o risco de esperar o plebiscito que o Presidente projetava realizar dentro de pouco tempo.

Assim foi como os militares deram o golpe. O presidente Allende e um grupo de sua guarda pessoal e colaboradores (entre os quais estava meu amigo e chefe Jaime Barrios) resistiram no Palácio de La Moneda com grande coragem (Jaime Barrios provavelmente está preso agora em alguma prisão fascista. Nós deveríamos fazer tudo o que for possível para ajudar a salvar sua vida e conquistar sua liberdade, ao mesmo tempo, claro, que a dos demais presos políticos). Foi uma luta que durou todo o dia, em que os militares tiveram que bombardear a Casa de La Moneda pelos ares para silenciar esse pequeno grupo de valentes.

O atual governo do Chile é fascista no sentido estrito do termo. Utiliza abertamente o terror. Está bombardeando e metralhando do céu os bairros da classe trabalhadora, disparando arbitrariamente sobre os prisioneiros: às vezes, os fazem correr e então os metralham pelas costas; os lares foram invadidos; os livros, queimados. Por que o terror? Porque os fascistas não podem governar sem isso. Não se trata de um golpe contra uma pequena facção. Se trata de um golpe contra a classe trabalhadora, contra a maioria do povo chileno que, seja da classe trabalhadora ou não, de todas as maneiras não quer o fascismo.

Basicamente, os imperialistas norte-americanos ainda praticam sua política de sempre. Quatro dias depois do golpe, o Banco Interamericano de Desenvolvimento anunciou um empréstimo de 65 milhões de dólares ao Chile; os bancos comerciais norte-americanos estão voltados para abrir suas linhas de crédito e as grandes Companhias estão se preparando para regressar.

O dirigentes democratas-cristãos ainda desempenham seu papel de sempre. Historicamente, sua tarefa consistiu em tratar de vacinar o Chile contra o socialismo, mas mais recentemente, sua tarefa consiste em facilitar o caminho para os violentos fascistas de uniforme. Daqui em diante, serão empregados para explicar ao mundo “o Chile incompreendido”. Não são mais que apologistas mentirosos que defendem assassinos e deveriam ser desmascarados.

A utilização do terror pelos fascistas só serve para mostrar sua debilidade. Tal como Marx notou uma vez, as revoluções se desenvolvem poderosamente frente às contrarrevoluções. Os diferentes elementos da esquerda no Chile estão se unindo como nunca. O povo está resistindo; cada vez é maior o número de pessoas que lutam contra os fascistas. A revolução chilena voltará a surgir… com fogo.


  • Traduzido para o espanhol por Juvencio Wing Shum e Jorge Carrión.
  • Edward Boorstein é economista norte-americano. Auxiliar do assessor em questões econômicas do Presidente Allende; trabalhou no Chile durante um ano, incluindo o período do golpe. Antes trabalhou durante um ano e meio em Nova Iorque, no Escritório de Corporação de Fomento do Chile. É autor do livro “A transformação econômica de Cuba, um relato em primeira mão” (Editora Nuestro Tiempo), entre outros.

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