A idealização da miséria e o esvaziamento político da violência em Bacurau

Por Rodolpho F. Borges

“Mas é claro: os democratas acreditam no toque das trombetas que fez ruir as muralhas de Jericó[1]. E toda vez que se deparam com os muros do despotismo, procuram imitar aquele milagre.”[2]

Não podemos cobrar de “Bacurau” uma explicação nem compromisso de expressar a realidade, mas uma alegoria, apesar disso, pode construir seus significados de maneira profunda, estabelecendo uma posição crítica sujeita a interpretações em contraposição à exposição de uma narrativa uníssona. A alegoria de “Bacurau” é rasa e ruim por ser o manifesto de uma leitura de mundo que não procura as determinações históricas e sociais dos fenômenos, bastando-se nas suas expressões e manifestações. É como se a forma alegoria caísse como uma luva para quem não compreende as estruturas das opressões. Além disso, seu caráter distópico também expressa a mesma fraqueza, ou seja, dilata e distende não uma realidade, mas uma leitura ideológica oriunda de uma narrativa política de modo que presentifica e não supera a imediaticidade.  Desse modo, todas as contribuições políticas do filme de Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho, tal como certo abandono da conciliação como fundamento absoluto, abortam por não superarem a superficialidade.


“Bacurau” é importante não pelo que pretende ser, mas pelo que deixa ser entrevisto, não do Brasil, mas dos limites de uma certa esquerda que se bastou no progressismo e na defesa da democracia (liberal) como uma instituição absoluta e fundamentou seu entendimento da realidade e sua prática política na negação das experiências socialistas e revolucionárias em função de alçar consciência subjetiva à pressuposto da totalidade. Em um primeiro momento, vamos refletir sobre o caráter da alegoria e depois nos ateremos mais aos limites mencionados e como são expressados pela forma com a qual o filme trata da miséria e da violência.

Como Karl Marx escreve em seus textos compilados por Friedrich Engels na obra “18 de Brumário de Luís Bonaparte”[4] sobre quando o proletariado organizado, por motivos de derrotas e falta de maturidade política, desiste de suas pretensões revolucionárias em 1849:

Ao se deixarem conduzir pelos democratas frente a um acontecimento como esse e ao esquecerem o seu interesse revolucionário por força de uma sensação momentânea de bem-estar, eles renunciaram à honra de ser um poder conquistador, submeteram-se à sua sina, comprovaram que a derrota de junho de 1848 os havia incapacitado para a luta por muitos anos e que o processo histórico, num primeiro momento, necessariamente voltaria a desenrolar-se por cima das suas cabeças.[5]

Foi a luta de classes que se desenrolou por cima das cabeças dos que acreditaram que é possível construir um Brasil emancipado sem romper com a ordem capitalista e oligarquias nacionais.

A miséria (a nossa e a de Bacurau)

A miséria constitui o elemento sobre o qual é colocada a responsabilidade de subverter, na alegoria de “Bacurau”, a estética da espetacularização. No entanto o movimento é o contrário, é a espetacularização que toma conta da miséria e esse é um dos motivos pelo qual o filme foi aclamado. “Bacurau” não toca na ferida da pobreza, desigualdade e exploração sob a qual o Brasil está sujeito, de modo que basta ao espectador reverberar um discurso que toma forma de uma promessa de vingança que não transcende a sala de cinema, pois os mesmos expectadores saem de lá com o sentimento de dever cumprido: “agora basta que a narrativa, ou o discurso, faça seu trabalho e que, um dia, os oprimidos se entendam na sua condição e se revoltem.” Há aqui uma interessante semelhança com a reação dos democratas e social democratas pequeno-burgueses do partido francês da Montanha, em 1848, descrita por Marx no “18 de Brumário”. Após serem escorraçado do parlamento pelo partido da burguesia coligada e terem sua imprensa perseguida e fechada, todo o seu fervor político se resumiu a promessas de vingança jamais efetivadas. Aliás, o movimento foi o inverso, a contrarrevolução ganhou força culminando com o coup d’etat de Luís Napoleão.

Voltemos ao filme. Expressada como algo negativo, a miséria, no entanto, no decorrer da trama não suscita demais problemas, pelo contrário – e aqui está o movimento que melhor expressa a cretinice de certo pensamento que não se propõe a debater os problemas da exploração e que melhor expressa a pobreza de nossa experiência política e acadêmica recente: a miséria elevada à virtude. A miséria em “Bacurau”, suposta alegoria da sociedade brasileira, não mata, não deixa doente, não desagrega, não marginaliza e não submete, pelo contrário, é o fator de união. É a falta de recursos que une a população do vilarejo numa assembleia auto organizada pela distribuição e divisão, que parece bastante harmônica, dos alimentos deixados pelo prefeito. Apesar da miséria; bandidos, professores, putas e comerciantes convivem em relativa harmonia, união e equilíbrio. A narrativa não enfrenta a miséria como elemento negativo que estrutura uma violência endógena, pelo contrário, a celebra. Aliás, a violência concretamente endógena surge, no filme, apenas como produto do preconceito e o ódio dos fascistas do sudeste, como se tudo o que movesse as estruturas que geram violência no Brasil fosse resultado de uma decisão moral de certo grupo e como se os comportamentos orientados por essa suposta decisão moral não estivessem e relação dialética com problemas da realidade material. Miséria e violência, no filme, não estão ligadas, muito menos são problemas dignos de ser problematizados.

A aclamação disso é sintoma da um pensamento que não busca a raiz dos problemas, mas apenas uma mediação que os torne suportáveis; que visa a representatividade da miséria e dos miseráveis em vez da superação da sua condição. Aliás, os moradores de “Bacurau” parecem estar satisfeitos com o fato de que alguns parentes saíram dali para virarem cientistas, professores, artistas etc. (uma clara alusão à expansão universitária recente promovida nos governos petistas). A “representatividade” é um dos conceitos que move o filme – e aqui poderíamos discorrer sobre todos os problemas relativos à esse conceito, sobre os quais o principal é o fato de que não há lugar ao sol para todos no capitalismo de modo que para os poucos que se sentem representados no espetáculo da industrial cultural sobram outros muitos que se percebem na condição de fracassados. Mas a ideia de representatividade do filme, e podemos ampliar esse caráter ao conceito de modo geral, não é a da condição real, mas daquela desejada, no caso, pelos diretores, produtores e roteiristas.

A violência

Apesar de propor um contraponto ao Brasil como sociedade cordial, como defende Thiago Mendonça em sua crítica publicada na revista Época, o filme age de forma ambígua, pois há a violência, mas no geral a comunidade se relaciona numa harmonia que é quebrada por vilões exógenos que são personagens sem nenhuma profundidade. A própria falta de profundidade dos vilões é bastante reveladora, pois, ironicamente, é a alegoria de uma certa esquerda que não conhece seus inimigos concretos, nem procura entendê-los, muito menos compreender as razões de seu fracasso, gestado numa prática política insuficiente que é evidenciada no próprio modo como o filme trata da violência. João Rodrigues e Laura F. afirmaram que o filme faz uma caricatura do inimigo, e nisso concordamos, no entanto, o que sai dali é uma caricatura de uma esquerda que, quando não nega que exista, não entende nada sobre o que é imperialismo. Ao contrário do que foi defendido na crítica agora mencionada, acreditamos que o problema não reside na caricatura não ter sido levada às últimas consequência, mas de não ter sido derivada de nenhuma determinação mais concreta – é uma caricatura da caricatura.

“Bacurau” eleva a violência como potência transformadora em si, ou melhor, como o enredo do filme não sugere transformação nenhuma que não transponha a disputa eleitoral, ele a eleva como força de resistência em si. A violência é alçada à sujeito, e pior, heroicizada. É uma violência que não estabelece nenhuma relação com uma luta efetiva de resistência, pois é esvaziada de seu conteúdo em função de sua espetacularização, ou seja, uma violência que será apenas aceita e celebrada na forma espetacular. Não é uma alegoria de uma violência real, mas a alegoria de um devir desejado. Como se o pensamento, fundando num desejo vingativo que alimenta a imaginação, ou seja, pura ilusão, fosse: “a violência no Brasil em si é assim maravilhosa, há uma essência de resistência nela, então construiremos uma alegoria a celebrando”. É uma alegoria da ilusão, de um desejo rasteiro, que evidência não a violência no Brasil, mas a nossa pobreza política, que é tanta que leva a sua celebração, não sua crítica, caminho necessário para o seu entendimento.

A violência é, portanto, esvaziada de sua potência transformadora. A sua representação sob uma determinada estética de apologia rasa e espetacularização promove o exato oposto da aceitação de seu emprego na prática. Ao contrário do que pregam os religiosos mais fundamentalistas, um filme violento não torna o seu espectador necessariamente mais violento, nem o priva do choque ao presenciar a violência na sua forma real. De certo modo, a representação espetacularizada é uma forma na qual os poucos indivíduos que experienciam a mentira civilização ocidental na sua positividade conseguem conceber a violência. Para ilustrar, basta pensar em como aqueles que floreiam sobre uma revolução espontânea digna de roteiro de filme de Hollywood, que concebem a possibilidade de uma “autoconscientização” do povo longe da “alienação dos marxistas” e a existência de uma revolta essencialmente transformadora, julgam a organização política popular da Venezuela em sua luta contra o imperialismo, que tem sim suas contradições mas que é legitimada pelo povo venezuelano.

Desse modo, quando a violência transformadora emerge em sua forma real, determinada concretamente, politizada, plena de contradições e de humanidade e dotada de potência para atingir as estruturas das sociedades, os apologistas de Tarantino e companhia torcem o nariz. Até os que defendem a tal violência do oprimido sem procurar entendê-la, como se o jogo fosse entre uma violência justa destes para com os opressores numa disputa binária formalizada a partir de decisões de um ou outro, como se não fosse a própria violência do modo de reprodução natural do capitalismo que dotasse de violência a reação, como se as revolução fossem violentas pela percepção de sua justeza não como reposta a todo um processo sanguinolento de dominação anterior. Aquela própria conversa de “espancar nazista” ilustra bem tanto o esvaziamento da violência quanto de certo pensamento da esquerda: não se trata mais de engajamento, teoria e prática política, mas de, ao ver um suposto fascista, dar-lhe um soco na cara, ou pior, simplesmente fazer apologia disso. Aliás, quase todos param na apologia, não por não serem são militantes o suficiente, mas porque essa retórica da violência em si não serve de nada.

O próprio museu de Bacurau atesta um esquecimento da realidade. Retomemos o que já foi exposto, sobre como não são construídos nexos entre a história e Bacurau que não seja o próprio embrutecimento do gênero humano. Isso representa a própria subjugação da história à memória, ou seja, o que ligaria os moradores da comunidade ao passado cangaceiro não perpassa uma condição socio histórica material, mas apenas uma lembrança, construída sumária e arbitrariamente. Como se não fosse suficiente, essa lembrança é idealizada e, pior, constrói-se uma imagem do cangaço como um irromper espontâneo de uma violência quase que naturalizada nos indivíduos do sertão. Mais uma vez o filme atesta um pensamento que não age em nada que não seja no conjunto das representações, intencionalizando e as esvaziando de modo a dotá-las de toda a responsabilidade.

A questão aqui não é ser contra o emprego da violência na luta contra o fascismo, mas defender o seu entendimento bem como das estruturas do fascismo. Precisamos ter a consciência de que no plano do simples emprego da violência estamos em desvantagem, tanto por causa dos mecanismos jurídicos quanto pelo próprio aparato militar e repressivo. Além disso, não existe uma violência de resistência ou revolucionária inata que não a construída no próprio debate político. Já sobre o fascismo, não devemos o tratar como um desvio histórico do caminho da civilização, mas entender que a barbárie é o modo no qual a própria civilização se reproduz. Como Walter Benjamin afirmava, no olho do furacão do nazismo alemão: a catástrofe é o pressuposto do progresso[6], ou seja, ela não é resultado de uma escolha nascida de uma ignorância sobre a qual devemos pregar uma elevação moral, mas o elemento fundamental de um progresso que necessita da exploração para se reproduzir. Quanto à possibilidade de que defendam que não posso cobrar esse aprofundamento no filme pois se trata de uma alegoria, fica a réplica: a alegoria precisa ser simplificação da realidade ou é justamente o que ela não deve ser?

Ao contrário do que postula Thiago Mendonça, não há uma harmonia dentro da comunidade de “Bacurau” apesar das dificuldades, mas harmonia por causa delas. Já a resistência, tão conclamada nos últimos tempos (e que não era tão mencionada enquanto os governos progressistas promoviam o encarceramento em massa da juventude negra pobre, para dar um exemplo), é como que inata nos indivíduos que compõem a comunidade. Entendendo o filme como alegoria de certo pensamento da esquerda progressista, é como se os que partilham e defendem esse pensamento acreditassem que existe uma essência revolucionária no brasileiro explorado, moldada por séculos de sofrimento e escassez. Como se diante de tanta exploração, miséria e marginalização, nos basta esperar que essa essência aflore como revolução. No entanto, no Brasil, país conservador e violento, essa revolta e ódio geralmente toma outro lado, que enxerga no próximo mais vulnerável a razão dos problemas, a reação. Muita gente foi descobrir só agora que o Brasil é um país conservador e violento.

Já o historiador Jones Manoel, em sua crítica, identifica a ausência do “típico progressista pequeno burguês”  e do acadêmico que se acha intelectual e tem que ensinar o povo a lutar. Realmente, no enredo do filme tais personagens não aparecem, mas apenas no enredo. Sobre o progressista pequeno burguês, ele está em duas posições nas quais talvez ele cause mais danos do que se fosse representado positivamente na alegoria: na direção, produção e roteiro e na condição de espectador e divulgador do filme e sua narrativa. O filme se propõe a ter a cara do povo brasileiro, mas do povo idealizado em sua miséria pelos diretores, progressistas, que promovem um fetichismo que agrada à militância de salas cinemas blockbusters, Instagram e Starbucks que apenas consegue conceber a violência na forma espetacularizada. O pequeno burguês progressista sai satisfeito de seu duro trabalho de clamar pelos oprimidos. Em contraponto à outra figura indicada por Jones, o acadêmico que pretende ensinar o povo a lutar, acredito ser mais problemática a do acadêmico que, por acreditar que os intelectuais orgânicos manipulam as oprimidos, se afasta da militância para estabelecer sua relação com a sociedade na condição de contemplador ou estudioso, ou pior, aquele que está na relação apenas para ouvir e, desse modo, talvez provocar certa discussão que não passa do fomento de “políticas públicas”, que nada incidem nas estruturas de opressão, exploração e dominação (e aqui quero salientar que essa prática pode contribuir, mas não é suficiente e tem que ser superada). É esse um dos comportamentos que movem, de certo modo, as pretensões do filme, bem como as práticas (ou não práticas) de uma certa esquerda, ainda dominante.

Conclusão

Pode-se evocar, contra tudo o que foi defendido até aqui, o fato de que o filme é interpretativo. No entanto, é aqui que reside o principal elemento do problema fundamental que é tratado neste texto: o debate político já está saturado da narrativa política que orienta o filme, além disso, parte da sociedade brasileira tem se cansado das mediações de uma realidade miserável. Desse modo, o conteúdo político do filme cai, infelizmente, na famigerada e temida “bolha”, pois é significante apenas para quem compartilha da crença na narrativa de que os problemas atuais do Brasil surgem plenamente apenas a partir de uma suposta ruptura total que acontecera com o golpe ou por causa de certo atraso moral de alguns brasileiros (57.796.986, para ser exato). Como se antes caminhávamos juntos no sentido do avanço da civilização brasileira e ele fora interrompido pela ignorância e extremismos de fascistas, sejam daqui ou estadunidenses. Isso é sintoma, dentre outras muitas coisas, da mistificação – por parte de certo pensamento up to date na academia – do debate fundamental do progresso e da civilização, bem como da certa negligência da academia e da política dominante na esquerda à teoria marxista da dependência. Para eles, basta que paremos de entender o desenvolvimento do capitalismo como progresso criando outros conceitos, ou nenhum, como é o caso. Quanto à necessária exploração que continua implacável: “exploração é um conceito ultrapassado”. De certo modo, colhemos hoje os frutos disso, ou seja, da falta de entendimento de que, na lógica do capitalismo global, não há lugar para o desenvolvimento do Brasil enquanto nação soberana que não perpasse uma ruptura com a ordem mundial. O PT tentou e, infelizmente, fracassou.

Os progressistas, democratas e geralmente liberais, que costumam chamar de utópicos os comunistas, acreditam que sua luta está além da luta de classes, quando não a negam. Eles postulam que devem vencer pois defendem o que é certo. Desse modo bastaria informar o povo disso  e esperar que se junte à luta. Os democratas de hoje ficam perplexos quando o povo não enxerga a sua luta como a luta de todos pelo que é certo. “Como pode meu semelhante não lutar comigo se defendo exatamente os seus interesses?”. A explicação mais cômoda é a ignorância alheia ou a tal falta de consciência de classe. Também existem os que se aplicam na formulação de uma melhor didática ou outra estética. O que não entendem é que o povo é que sofre e, ideologicamente, mistifica as raízes de sua miséria política, social e econômica e expressa isso de determinadas maneiras, de acordo como uma correlação de forças, formas culturais, situação econômica-social e base histórica, dentre outros fatores. De certo modo, parte da população brasileira percebeu que as instituições democráticas burguesas estão falidas e já não respondem mais as demandas da sociedade, nem são capazes de promover certo progresso. Quanto a isso, não nos basta esperar que a revolução aflore da miséria como vingança violenta contra os poderosos. O trabalho é muito mais difícil e o processo mais demorado. O comunista entende que não são tempos piores e mais miseráveis que, necessariamente, formarão uma necessidade e uma consciência revolucionária, muito menos é a simples revolta que as promovem. A revolução nasce, antes de tudo, de um trabalho contínuo, árduo e nada bonito aos padrões de Hollywood, mas plenamente belo para os que buscam a emancipação dos explorados.

Relacionado a tal ilusão progressista, Marx postulou, em meados do século XIX:

Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo. Por conseguinte, não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. Não teriam necessidade de sopesar com todo cuidado os seus próprios meios. A única coisa que precisariam fazer era dar o sinal para que o povo se lançasse sobre os opressores com todos os seus inesgotáveis recursos.[7]

Para fazer frente a esse esvaziamento, trata-se de rejeitar qualquer mistificação no sentido de se bastar em entender as manifestações dos oprimidos. Rejeitar o entendimento do mundo como representação, para compreender as razões materiais da exploração, da dominação e do silenciamento. Rejeitar a ideia de que nos basta trazer para a academia as demandas dos oprimidos e entendê-las, de que ouvir é o suficiente, enquanto partimos do observatório privilegiado da academia. Segundo Walter Benjamin: “o assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis não é um assombro filosófico.”[8] O espanto não filosófico em relação aos acontecimentos que vivemos em pleno século XXI só se configura nos que ainda acreditam que a nossa ação reside em alcançar as consciências e promover uma espécie de progresso moral (que geralmente é guiada por uma concepção presentificada).

A nova acedia, diferentemente da acedia postulada por Walter Benjamin,[9] não nasce da empatia para com o vencedor do modo como faziam os historicistas, que negavam a tradição do oprimido em função da celebração dos monumentos de cultura, mas se manifesta na idealização do oprimido de modo que o processo de exploração sobre o qual se edificam suas manifestações culturais permanece intocado. Os explorados e oprimidos precisam e merecem mais, merecem compreender politicamente as razões da sua condição miserável e precisam de mais do que narrativas e alegorias. Grande parte do provo brasileiro clama por uma transformação radical da realidade de modo que não podemos responder à crise com retorno, reconciliação e mediações, mas como propostas concretas de mudança. Quanto a isso: “passou o tempo em que o grasnar dos gansos podia salvar o Capitólio”[10]


* Rodolpho F. Borges é graduando em História na Unifal/MG, estuda o pensamento marxiano e a filosofia da história de Walter Benjamin e pesquisa sobre o conceito de progresso a partir do materialismo histórico dialético.


Notas:

[1] Antigo Testamento, Livro de Josué, 6:20.

[2] MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo : Boitempo, 2011. P. 66

[4] Tenho insistido nessa obra, tanto pelas continuidades que podem ser identificadas entre a política do bonapartismo, no século XIX, e no capitalismo tardio, quanto pela desconstrução dos espantalhos do pensamento marxiano e marxista. “Bolsonaro, o anacronismo genial-idiota” é o outro texto no qual relaciono a mesma obra.

[5] MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo : Boitempo, 2011. P. 85-86

[6] Walter Benjamin. Passagens. Org. Willi Bolle. Belo Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. P. 515

[7] Karl Marx. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo : Boitempo, 2011. P. 67-68

[8] Walter Benjamin. Sobre o conceito de história. In. Obras Escolhidas Vol. I. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Ed. Brasiliense S.A., 1985. P. 226. Benjamin trata aqui do espanto causado pelas ações do regime nazista na Alemanha em crítica ao conceito de história e às políticas que se fundamentavam na ideologia do progresso.

[9] O termo está presente na Tese VII sobre o conceito de história de Walter Benjamin, presente na obra citada acima (p. 225)

[10] A expressão é de Karl Marx em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” (op. cit., p. 31). Reza a lenda que o grasnar dos gansos do tempo de Juno acordou os guardas do Capitólio que tinha dormido, salvando Roma em 390 a. C. da invasão dos gauleses.


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9 comentários em “A idealização da miséria e o esvaziamento político da violência em Bacurau”

  1. “apenas como produto do preconceito e o ódio dos fascistas do sudeste, como se tudo o que movesse as estruturas que geram violência no Brasil”

    Mas esse é o fundo do pensamento identitário: existiria uma batalha entre pessoas moralmente superiores e puras de coração contra pessoas demoníacas que nasceram com o coração maculado pela maldade.

    É uma visão de mundo de quinta série do fundamental. De filmezinho de heróis e brucutus.

    Como se os grandes problemas da sociedade da mercadoria fossem causados pela má índole de algumas pessoas.

    É infantil e risível.

    Responder
  2. “apenas como produto do preconceito e o ódio dos fascistas do sudeste, como se tudo o que movesse as estruturas que geram violência no Brasil”

    Mas esse é o fundo do pensamento identitário: existiria uma batalha entre pessoas moralmente superiores e puras de coração contra pessoas demoníacas que nasceram com o coração maculado pela maldade.

    É uma visão de mundo de quinta série do fundamental. De filmezinho de heróis e brucutus.

    Como se os grandes problemas da sociedade da mercadoria fossem causados pela má índole de algumas pessoas.

    É infantil e risível.

    Responder
  3. Um concepção risível que norteia a narrativa da esquerda liberal no Brasil e, de certo modo, é a linha do filme Bacurau. Vou conferir seu texto, Liane! Obrigado!

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  4. Texto do c**, camarada, muito bom mesmo.
    Acho que dialoga muito bem com esses textos ilusionados da pequeno-burguesia que você citou (um exemplo crasso é esse do Chirstian Dunker https://blogdaboitempo.com.br/2019/10/07/oniropolitica-alegorias-da-violencia-no-brasil-contemporaneo/ ; ou este outro aqui: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/05/cultura/1570306373_739263.html)
    O que me estranha é o grande camarada Jones manoel citando esse filme como uma “ode à violência revolucionária” (https://revistaopera.com.br/2019/10/09/e-quando-a-violencia-revolucionaria-nao-e-no-cinema-a-linguagem-politica-e-a-crise-do-marxismo-academico/) Não seria o caso de promovermos um debate com ele?

    Por fim, Liane, seu texto é genial também! Precisamos de camaradas como você!!!!!
    Grande abraço aos dois!

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    • Olá Felipe. Obrigado pelo elogio! O do Dunker eu ainda não tinha lido quando escrevi o meu artigo, já o do Rodrigo Nunes eu já tinha em mente. Quanto ao camarada Jones, ele enxerga no filme uma crítica potencial ao pacifismo de esquerda e identifica bem as determinações políticas dessa posição, mas sua análise estética é muito limitada, de modo que não entrevê no filme a idealização que virou práxis de certa esquerda. Tentei um debate com ele, mas sem sucesso.

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