Sacerdotes da palavra e do canto

Por Eduardo Bonzatto*

“A cultura negra é discursiva. E o que ela está dizendo é traduzido pelo canto, pela dança e pelo tambor. O agudo fala do ambiente, o médio, do que tem no ambiente e o grave, do que está acontecendo ali”, afirma Carlos Negreiros.


O século XX conheceu dois sacerdotes curadores da manutenção dos rituais dessa cultura, no seu sentido bem amplo. Um deles foi Agigail Moura (1904 – 1970), fundador da Orquestra Afro Brasileira; o outro, Mateus Aleluia (1942), dos Tincoãs e que ainda vive a sofisticação de sua juventude vigorosa, conduzindo o cetro que é a tarefa maior dos sacerdotes da palavra e do canto.

Curiosamente, o nascimento da Orquestra Afro Brasileira e de Mateus Aleluia são praticamente coincidentes. Não há coincidência nenhuma.

A africanidade barroca de Aleluia e a sonoridade originária do opanijé e do alujá convocada por Abigail Moura convergem com uma proximidade mágica.

Como o oxigênio necessário à combustão, os cânticos celebrados por esses sacerdotes conduzem uma força que atravessa o mundo e contagia uma infinidade de memórias para muito além dos limitantes contrafortes religiosos ou racistas/antirracistas.

Essas vozes percussivas que transitam da África ao Brasil e retornam numa velocidade tão típica da natureza, de seus tempos e movimentos, construindo uma linhagem que tocou Donga, Pixinguinha, Moacyr Santos, dentre tantos.

“O maestro Abigail Moura fundamentava suas composições e arranjos como um religioso cuja vocação tem por mister reverenciar a divindade. Deveria ser extraordinário assistir a uma performance de Abigail, que, antes da apresentação da sua Orquestra Afro-Brasileira, agia como um sacerdote invocando antigos deuses, como se o palco de um teatro ou um auditório fosse de fato um espaço sagrado”, diz Emanoel Araujo, diretor curador do Museu Afro Brasil.

Em certa medida, foi o primeiro a entender-se como um sacerdote. O primeiro disco da Orquestra que havia fundado em 42 é uma aula das sonoridades africanas da diáspora: Obaluaiê! (1957), dá pra sentir as oferendas aos orixás e o perfume do banho de ervas que Abigail utilizava nas apresentações. Em 1968 lançam seu último disco, Orquestra Afro Brasileira, em que o arranjo de vozes causa a sensação de que o que estamos ouvindo são orações à divindade.

Há sempre uma pedagogia nessas expressões do sacerdócio, mas não aquela pedagogia de tomar pela mão e conduzir o ser, senão a que convida o corpo a dançar, respondendo a vibrações íntimas de paz, alegria e felicidade. E essa migração da heteronomia para as zonas imprevisíveis da autonomia tornam esses rezadores do canto símbolos únicos no tecido do ocidente, pois operam quase que exclusivamente pelo sentimento, se afastando do pensamento limitante e constrangedor.

Dadinho, com sua voz aguda e nítida em sua cristalina impostura dialoga com Mateus, de voz grave e grandiosa nas pautas dos Tincoãs. Mas ao mesmo tempo seguem os passos de Abigail Moura, que para além da fusão entre a instrumentalidade africana e os sincopados do jazz, une voz e coro de modo igualmente em quase contraponto, agudos e graves, fundindo as rítmicas dos cultos africanos com as sonoridades do jazz.

Os Tincoãs, por sua vez, unem as rítmicas de instrumentos africanos com o clima barroco católico que estava tão presente no cotidiano de Cachoeira, na Bahia.

Nessas fusões virtuosas se expressam os sacerdotes como se a mensagem que realmente importa de ser conduzida pela música estivesse no entremeio, enraizada em qualquer tempo, pois que vem de tempo nenhum, ou melhor, vem das temporalidades fluidas que rompem com a linearidade.

A enorme complexidade que testemunhamos na audiência, e vou reforçar o conceito de complexidade que me interessa aqui, do tecer juntos, do fazer juntos, como se o música estivesse incompleta sem os ouvintes de sua magia, como diria, essa enorme complexidade que confronta o individualismo moderno e convoca a todos para os ritos coletivos trans humanos, envolvendo todas as manifestações da vida e todas as suas formas telúricas e cósmicas.

Os Tincoãs nasceram nos anos 50 em Cachoeira, na Bahia e lançaram seu primeiro disco em 61, um disco de bolero. Com a saída de um dos componentes, entrou Mateus Aleluia e o grupo vocal singular para a época, com três vozes, foi assumindo sua vocação. Seu próximo disco foi lançado em 73, já com suas leituras barrocas das sonoridades percussivas africanas.

Até 1977 lançariam dois discos, dentre os quais, O aficanto dos Tincoãs.

Enquanto escrevo esse texto, ouço esses discos que não envelheceram um só dia, pois não são da ordem da provisoriedade.

Tincoã é uma onomatopéia da ave do mesmo nome cujo canto se assemelha a um gemido, daí que por vezes é conhecida também como alma-de-gato. O grupo conquistava esse som no quase contraponto das vozes de Dadinho e Mateus, no agudo e no grave em que o gemido se transmutava numa prece.

Essas harmonias vocais especialmente dedicadas às religiões africanas e aos sambas de roda trouxeram as teias do Candomblé para uma audiência que ainda não sabia do alcance que iria atingir.

Para o primeiro LP de 73, o grupo mergulhou em pesquisa dos cantos da Candomblé e contaram com a ajuda fundamental de Dona Ledinha que foi transmitindo os cantos de memória, como esse: “sou de Nanã, ê uá”.

A audácia do grupo provocou estranhamento comercial, mas os músicos souberam louvar a novidade (João Gilberto dentre outros).

No começo dos anos 80 Dadinho e Mateus foram para Angola e ali constituíram família e pesquisas aprofundadas. Com a morte de Dadinho em 2000, logo após Mateus Aleluia volta ao Brasil. Em 2010, lança seu primeiro disco solo, Cinco Sentidos, uma pérola de profundidade misteriosa. Em 2017, o segundo, Fogueira Doce e se consolida como o sacerdote que herda de Abigail Moura os símbolos daqueles que conduzem uma flama de paz em tempos de guerra. Esses cânticos nunca produzem inimigos, mas ao invés disso, tocam as almas para o abraço.

O tipo de sabedoria necessária a esse sacerdócio é algo misteriosa. Abigail Moura a tinha, mas fica muito difícil acessar nessa distância de hoje, já Mateus Aleluia, embora discreto, aqui e ali a manifesta para que possamos sentir o tamanho de sua jornada de contágio.

Seus vínculos, sua proximidade, sua sensibilidade é com os recuados, como ele chama, aqueles que, para preparar o avanço, dão um recuo no passo. Eis seu conceito de movimento, que é fundamental para o grande giro e para a dança também. Os recuados são os excluídos, os que vivem à margem e ali precisam criar e a criação se torna música e dança.

Essa expressão, todavia, consolida uma percepção muito mais forte e consistente, que é capturada de uma fala de Senghor, “Nós somos filhos do canto e da dança, que revigoramos nossos pés em contato com o rude chão”. E é Mateus quem explica numa entrevista de 2016, que esse RUDE, não é o rude de ignorar, mas aquilo que não se altera, o rudimentar que não pode ser alterado pelas contingências da vida, o chão que sempre estará lá para receber nossos pés de poeira, como diz numa de suas músicas. Sempre no mesmo instante o presente, o passado e o futuro.

Certamente devemos a este fato que suas músicas não promovem nenhum resgate, nenhum acerto, pois a ancestralidade que emanam é uma presença que não vem de nenhuma ausência, sempre esteve aí, bastava o sacerdote entoar seus cânticos para que nossas almas pudessem dançar, na mesma emoção de outrora: é o chão rude que permanece.

Seu sentido de justiça nunca é limitado pela ideologia. Não será nenhum salvador que irá nos redimir. Mateus sabe que só o sentimento pode ser a energia produtora da vida e esbanja sentimento por todos os poros.

Veja esses versos que fez em Angola e que está no disco Dadinho e Mateus (1986):

“Ó Zambi, eu peço esperança pra Namíbia, espero que esse canto sobreviva, na luta pela paz e esperança, das crianças, que sonham do seu chão nascer de flores, nos campos passarinhos em revoada”.

Nesse sentido, parece sentir-se parte das senhoras da irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, que ao tempo da escravidão trabalhavam juntas para alforriar as amigas que ainda eram escravas. Aleluia parece amparar o seu servir para libertar todos aqueles que ainda estão aprisionados, como se dissesse, “enquanto um de nós estiver preso, todos nós estamos”. Alguém precisa nos ensinar a nos libertarmos da negação de quem somos de verdade.

Essa sua plenitude diante da vida e de sua peculiar jornada carece de gestar aquele que conduzirá sua flama, atravessando os séculos, por vezes, de modo sutil, sem alarde, como um depositário modesto dos destinos mais refinados do mundo.


*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

 

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