Mercado no Socialismo? Por quê? Como?

Por Pedro Felipe Narciso

“Se o mercado persiste à revolução política socialista, como ele pode ser útil ao socialismo? Basicamente, o mercado nas formações sociais socialistas cumpre duas grandes funções. A primeira é funcionar, tal como preconizado por Oskar Lange, como indicador econômico, possibilitando o cálculo econômico racional dos órgãos planejadores. E segundo, desenvolver as forças produtivas incipientes, preparando as condições para uma dominância cada vez mais ampla do modo de produção comunista. Dessa maneira, na medida em que as forças produtivas se desenvolvem, a massa de valor aumenta e a grandeza de valor diminui fazendo com que os setores capitalistas da produção entrem em crise.”


Acabo de ler aqui no Lavra Palavra um pequeno texto de Beto Silva, camarada que não conheço, defendendo a tese segundo a qual o mercado é uma relação social anterior ao capitalismo e cuja existência persistirá para além dele, ou seja, durante o socialismo. O argumento desse autor passa por três pontos principais: primeiro, a definição do mercado como uma relação específica “entre produtores através da qual são conhecidos os valores de troca de seus respectivos produtos que se tornam, assim, mercadorias”. Segundo, que é somente “quando a força de trabalho passa a ser comprada e vendida como uma mercadoria é que estão dadas as condições históricas e materiais para o surgimento do capital e do capitalismo.” E terceiro, que, sendo a lei do valor uma lei da produção mercantil e não do capitalismo, o mercado e a lei do valor continuarão existindo de modo “transitório e controlado”, podendo, “inclusive, ser útil para a consolidação do socialismo”.

Os três argumentos que sustentam a hipótese do autor estão corretos, demonstrando assim que a existência do mercado não tem vinculação necessária com a existência do capitalismo e que a existência do capitalismo tem vinculação necessária com a existência (e eu diria dominância) de um mercado específico, o mercado de força de trabalho. Concordando com o autor busco complementar e desenvolver alguns dos pontos indicados e não tão desenvolvidos por ele, a saber: por que e como o mercado se faz útil ao socialismo? Para responder a essa questão central preciso, antes disso, partir de uma definição de socialismo.

O que é socialismo?

O socialismo é o período no qual se estabelece a transição à dominância do modo de produção comunista no interior de uma formação social dada. Portanto, o socialismo corresponde aos períodos históricos singulares de formações sociais diversas que se particularizam por compartilhar duas características invariantes: a ditadura do proletariado (tipo de Estado) e o desenvolvimento orientado das forças produtivas no rumo do estabelecimento de relações sociais de produção típicas do modo de produção comunista.

Essa compreensão que diferencia o objeto abstrato-formal, o modo de produção, do objeto concreto-real, as formações sociais, bem como o entendimento da coexistência de diferentes modos de produção com dominância de um deles nas formações sociais é o que enseja e justifica a necessária existência da transição socialista e, portanto, o que separara o Socialismo Científico (Materialismo Histórico e Materialismo Dialético) dos movimentos anticapitalistas diversos de cunho romântico e arbitrário, que imaginam a realização de um “comunismo” como ato jurídico volitivo e imediato, desconsiderando as restrições e possibilidades do mundo realmente existente. Se as leis da economia política pudessem simplesmente ser anuladas – em vez de superadas pelo desenvolvimento orientado das forças produtivas – Marx, certamente, não teria estudado a estrutura lógica do modo de produção capitalista, mas simplesmente os meios necessários para o estabelecimento da hegemonia política do proletariado.

Por outro lado, a perspectiva que inverte o “anticapitalismo voluntarista” supracitado é aquela que assevera a conhecida tese do colapso, segundo a qual o modo de produção comunista floresce a partir do autodesenvolvimento das forças produtivas no seio do capitalismo, as quais entram em contradição com as relações de produção desse modo de produção, inviabilizando, assim, a sua reprodução. O equívoco dessa hipótese está no fetichismo mecânico que absolutiza o econômico, se não como única região existente, pelo menos como região que determina de modo mecânico o político, que se constitui como fenômeno simples desdobrado linearmente da dinâmica econômica autônoma. No esteio dessa concepção mecânica que absolutiza o econômico, há também uma absolutização de uma lei de tipo histórico – tendencial e condicionante – como lei física causal, em que a presença de A causa invariavelmente B, ou seja, grau x de desenvolvimento das forças produtivas implica sempre em colapso completo e total do capitalismo e, portanto, realização do socialismo.

A hipótese do colapso ignora um princípio teórico caro ao Materialismo Dialético, a desigualdade no desenvolvimento das contradições. Tal princípio pode ser verificado no desenvolvimento desigual das forças produtivas sob o capitalismo. Dessa maneira, sendo o desenvolvimento das forças produtivas assimétrico e assincrônico, as relações de produção costumam entrar em crises desse tipo em setores e tempos diferenciados entre si, colapsando sempre partes do sistema, mas não inviabilizando-o como um todo. Tal característica permite que o aparelho de Estado, responsável por garantir a unidade da formação social sob a dominância do modo de produção vigente, atue no sentido de restaurar, sempre que possível, os ciclos de acumulação do capital por meio de estratégias diversas.

O anticapitalismo voluntarista reduz, como vimos, a revolução social à revolução política, enquanto o economicismo mecânico, por sua vez, reduz a revolução social à revolução econômica. A tais proposições teóricas falta um conceito adequado de modo de produção, que não pode ser reduzido nem à estrutura política e tampouco à estrutura econômica.

O que é um modo de produção e o que é o modo de produção capitalista?

 Um modo de produção é um objeto abstrato-formal constituído pela correspondência entre uma estrutura econômica (forças produtivas + relações de produção correspondentes), uma estrutura jurídico-política (responsável por garantir a unidade da formação social sob a dominância desse modo de produção produzindo as condições de sua reprodução) e uma estrutura ideológica que interpela os indivíduos como sujeitos do modo de produção (engajando, pelo imaginário, os indivíduos em relações sociais objetivas).

O modo de produção capitalista é especificado no econômico pela propriedade privada dos meios de produção nas mãos de não produtores e pelo não controle dos produtores diretos sobre o processo de produção. No político por um tipo de Estado especificado pelo direito igualitário e pelo burocratismo. E no ideológico pelos efeitos de a) isolamento, que interpela os indivíduos como sujeitos autônomos dotados de responsabilidade e vontade subjetiva; e de b) representação da unidade, que estabelece uma comunidade simbólica imaginariamente solidária entre esses indivíduos autônomos, o povo-nação composto por cidadãos atomizados e abstratos representados no Estado.

A dinâmica desse modo de produção cria as condições materiais necessárias à realização do modo de produção comunista. Em linhas gerais e de modo esquemático busco apresentar logo abaixo esse grande movimento do modo de produção capitalista, que fora estupendamente teorizado por Marx em O Capital.

  1. A competição entre os capitais individuais para a realização da sua autovalorização enseja um incremento da exploração por meio da extração de mais-valia absoluta.
  2. O aumento da exploração de mais-valia pela expansão do tempo de trabalho tem restrições instransponíveis e tende a levar os trabalhadores à luta pelo estabelecimento de limites à jornada de trabalho.
  3. A competição entre capitais e a resistência operária obriga os capitalistas a um incremento tecnológico que permite a extração de mais-valia relativa.
  4. Esse impulso ao desenvolvimento das forças produtivas implica numa alteração da composição orgânica do capital, no qual se tem uma parcela cada vez maior de trabalho morto em relação ao trabalho vivo.
  5. Essa realidade implica uma diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à produção dos artigos diversos.
  6. A diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário enseja um aumento na massa de valor produzida que, ao inundar o mercado, reconhece uma diminuição de sua grandeza de valor.
  7. Essa realidade implica uma queda tendencial das taxas de lucro.
  8. Tal tendência exige uma massa de capital cada vez maior para tornar praticáveis taxas de lucro cada vez menores.
  9. Disso depreende-se um alto grau de monopolização da economia, da qual se origina o esgotamento das funções históricas do mercado como relação capaz de impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas.

Portanto, na medida em que se aumenta a massa de valor tem-se a diminuição da grandeza de valor. Os capitais, então, têm que possuir meios para destruir as capacidades produtivas da sociedade no sentido de garantir um grau de escassez da massa de valor compatível com grandezas de valor que garantam a praticabilidade e a permanência das relações sociais de produção de tipo capitalista. Isso quase sempre é feito por meio da ação do Estado burguês. É dessa maneira que o econômico caduca a funcionalidade do princípio da competição capitalista criando as condições materiais potenciais do modo de produção comunista, não garantindo, no entanto, a sua realização, pois tal operação depende de uma revolução política.

E qual o papel do mercado no socialismo?

Até aqui vimos que o mercado cumpre durante um largo período uma função histórica que transcende os interesses particulares de uma classe cada vez mais diminuta. Essa função é desenvolver as forças produtivas.

Vimos que em determinado momento o mercado perde a sua função histórica, neutralizando o princípio da competição que enseja o desenvolvimento das forças produtivas. Ele já não é uma rede complexa e anárquica de relações competitivas que não pode ser controlada por nenhum dos seus partícipes, o alto grau de concentração e centralização sufoca essa realidade pretérita. O mercado se torna um simulacro que atrai o pequeno e médio capital escoando-os por meios predatórios e não competitivos em direção ao grande capital monopolista. Nesse momento, o mercado passa a ser uma casca vazia que vocaliza e reivindica uma existência e uma funcionalidade que já não há, ele se descola de qualquer diacronia e cumpre única e exclusivamente a função ideológica de garantir a exploração, a dominação e a apropriação direta de riquezas pela grande burguesia.

No entanto, esse processo de esgotamento do mercado não acontece simultaneamente em todos os setores da economia, assim ele não pode simplesmente ser amputado das formações sociais em que a escassez ainda é uma realidade. Portanto, o mercado continua existindo após as revoluções socialistas. Um exemplo histórico que ilustra esse postulado é a persistência dos chamados “mercados paralelos” nas formações sociais que – heroicamente, diga-se de passagem – proclamaram o seu fim.

Se o mercado persiste à revolução política socialista, como ele pode ser útil ao socialismo? Basicamente, o mercado nas formações sociais socialistas cumpre duas grandes funções. A primeira é funcionar, tal como preconizado por Oskar Lange, como indicador econômico, possibilitando o cálculo econômico racional dos órgãos planejadores. E segundo, desenvolver as forças produtivas incipientes, preparando as condições para uma dominância cada vez mais ampla do modo de produção comunista. Dessa maneira, na medida em que as forças produtivas se desenvolvem, a massa de valor aumenta e a grandeza de valor diminui fazendo com que os setores capitalistas da produção entrem em crise. Aqui, então, aparece o Estado socialista, que não restaura as condições de escassez do modo de produção capitalista, mas incorpora o setor referido à economia socialista, universalizando as condições de consumo e satisfazendo a demanda por tais valores de uso.

Considerações finais

Com este texto pretendi responder duas questões principais: Por que o mercado pode ser útil ao socialismo? E como o mercado pode ser útil ao socialismo? A resposta à primeira questão é que não é uma escolha, enquanto houver escassez haverá mercado, logo o mercado é uma realidade que não pode ser ignorada pelos Estados socialistas. À segunda questão, respondi introduzindo dois elementos: primeiro, que o mercado pode servir como indicador para as instituições de planejamento econômico; e segundo, que o mercado prepara as forças produtivas da sociedade comunista.

No texto tentei me inserir no debate a partir de uma perspectiva que identifica e reconhece a permanência do mercado após a conquista do poder político pelo proletariado, observando as possibilidades que esse coloca à transição socialista. Obviamente, o mercado não oferece apenas possibilidades, e diria eu, antes oferece resistências do que possibilidades, portanto, na materialidade concreta da transição o Estado Socialista não pode jamais negligenciar a luta política de classes e a questão do poder.

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1 comentário em “Mercado no Socialismo? Por quê? Como?”

  1. Faço dois agradecimentos. O primeiro, pela leitura do meu texto. O segundo, pelo seu aprofundamento. De verdade, gostei muito da diferenciação que você faz entre a atuação do Estado Capitalista e do Estado Socialista nas crises de mercado. No capitalismo, o Estado atua para repor as condições para reprodução capitalista. Já no Socialismo, o Estado “não restaura as condições de escassez do modo de produção capitalista, mas incorpora o setor referido à economia socialista”.
    Parabéns e obrigado

    Beto Silva

    Twitter:@_betosilva

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