Autofobia e liberalismo

Por Diogo Fagundes

É impressionante a repercussão toda em torno da entrevista do Caetano Veloso. Ele apenas afirmou duas coisas: i) não é mais liberal; ii) possui um respeito maior pela história do socialismo do que possuía no passado. Estas duas orientações são decorrentes da leitura de Domenico Losurdo, segundo ele. Isto foi suficiente para todo um rebuliço envolvendo a questão de Stalin, personagem histórico absolutamente ausente no relato de Caetano.

A indignação moral revela três coisas: i) é proibido relembrar o vínculo existente na história do liberalismo com o racismo, a escravidão, o colonialismo, etc.; ii) a única visão tolerável sobre a história do socialismo é aquela que avalia que tudo se resume à barbárie, portanto, o rechaço deve ser unânime e unilateral; iii) Losurdo é autor perigoso, deve ser esconjurado.

O frisson gerado, aliás, falhou em promover um debate em torno do mérito das obras lidas pelo Caetano, em particular a “Contra-história do liberalismo”. Resumir tudo a um “liberalismo é do bem” versus “socialismo é do mal” é o máximo que alguns críticos conseguiram, em geral, demonstrando uma ignorância abissal da própria história da corrente ideológica que defendem.

É importante, primeiramente, constatar que Losurdo não é novidade no meio cultural brasileiro. Há muito tempo é publicado no Brasil, já participou de palestras e debates — inclusive com trotskistas –, teve sua obra divulgada até em jornais de grande circulação, como a Folha de São Paulo (basta pesquisar). Por que, durante todo este tempo, não houve esta onda de histeria moral contra a obra do italiano? Por que não houve este esforço de “correção ideológica” (ironicamente, algo bem stalinista) no passado, se estamos falando de um revisionismo tão perverso? De alguma forma, isto revela a pouca seriedade intelectual dos seus adversários. O que importa não é uma discussão historiográfica ou teórica, mas um puro combate político. O que incomoda é que o consenso liberal foi questionado e agora há socialistas que não possuem uma relação apenas de negação e ódio com sua própria história.

A manifestação do Pablo Ortellado, ex-anarquista punk e ex-crítico da mídia convertido em bajulador dos grandes grupos de comunicação — um bom sinal da desgraça que uma visão individualista do anarquismo pode levar –, é só mais um exemplo do superficialismo que ronda a discussão. Um delinquente intelectual bastante bem adaptado ao jornalismo atual, cada dia mais superficial e refém do senso comum.

A prova de que não estão nem aí para um balanço honesto do passado é o fato de que obras historiográficas relevantes, surgidas após a abertura dos arquivos soviéticos, algumas vindas inclusive de liberais, como a biografia de Stalin escrita pelo Stephen Kotkin, publicada pela Cia das Letras, ou a obra da historiadora francesa – esta é comunista — Annie Lacroix-Riz, não despertarem qualquer interesse. É melhor até que sejam ignoradas, pois confirmam várias das afirmações de Losurdo.

Sobre isto tudo, vale a pena tecer alguns comentários.

Domenico Losurdo não é um mero propagandista, agitador ou seguidor de manuais, gostemos dele ou não. Sua obra forma um todo bastante coerente, envolvendo análise filosófica de autores da modernidade, ora numa visão positiva (Hegel), ora numa postura crítica (Nietzsche, Heidegger) e um balanço da história do liberalismo que dá destaque ao tema do colonialismo.

De certa forma, possui um marxismo bem particular, que muitos poderiam acusar de ser excessivamente hegeliano, o que o faz cometer algumas heresias para um marxista mais ortodoxo, como dizer que o “desaparecimento do Estado”, temática decisiva na obra de Marx, deve ser desconsiderado como desvio utópico. Alguém poderia relacionar seu hegelianismo historicista e pró-Estado com o ambiente cultural da Itália, conhecida tanto pelo realismo político pós-Maquiavel quanto por uma influente escola hegeliana, presente em autores canônicos do liberalismo italiano, como Benedetto Croce. Estas duas influências se manifestam, não à toa, também em Antonio Gramsci.

Dentro da filosofia da História losurdiana, o grande mérito do socialismo ao longo de sua história envolve tanto a ampliação da democracia e de direitos civis e sociais aos segmentos populares, às mulheres e aos “povos de cor” — geralmente contra conservadores e liberais– quanto o processo de desmonte do legado colonial e racista que marcou o apogeu da Europa liberal.

A partir desta visão que enfatiza bastante o nacionalismo anti-colonial como elemento progressista do pós-Segunda Guerra Mundial, não é difícil entender os motivos para um balanço mais positivo da história da URSS. Não apenas foi a primeira nação a criminalizar o racismo, como este tema exerceu papel de destaque no conflito ideológico com os EUA — muitas vezes representado como terra do supremacismo branco da KKK na propaganda soviética — durante a Guerra Fria.

Enquanto negros eram linchados nos EUA até metade dos anos 60, enquanto o apartheid na Rodésia (hoje Zimbábue) e África do Sul era sustentado por EUA e Inglaterra, enquanto nações “democráticas” promoviam chacinas no mundo colonial (somente a maneira como a França lidou com a independência da Argélia já é suficiente para qualquer um questionar uma diferença total entre totalitarismo e liberalismo), a URSS promovia a descolonização no mundo, treinava e financiava negros, asiáticos, árabes, caribenhos, latino-americanos, em busca de independência. Havia, por exemplo, a Universidade Patrice Lumumba (líder congolês assassinado pela CIA) treinando gratuitamente líderes anti-coloniais que voltariam às suas nações para atuar politicamente ou para aprender tarefas de engenharia, administração, etc. necessárias para as repúblicas do Terceiro Mundo recém independentes.

Isto explica porque a imagem de Stalin pôde servir para tantos movimentos revolucionários e/ou nacionalistas ao longo do século XX. Uma figura como Nelson Mandela lia Stalin e Mao para pensar e agir pela libertação de seu povo, o movimento negro norte-americano desenvolveu relações próximas com o stalinismo, com o maoísmo e com outros terceiro-mundismos (incluindo Coréia do Norte), Albert Einstein podia relevar os crimes associados ao Stalin porque valorizava o Estado que mais libertou judeus no mundo, ao ponto de criar uma república autônoma para judeus dentro de suas fronteiras no auge do anti-semitismo e do “racismo científico” — em voga não só na Alemanha mas em vastos setores do mundo ocidental.

O que uma parte da obra de Domenico Losurdo busca demonstrar é que tanto a imagem de culto ao Stalin, bastante em voga até mesmo no Ocidente após a vitória contra os nazistas — Stalin chegou a ser “homem do ano” da Time; alguns dos melhores poetas do mundo, como Paul Éluard, dedicavam cânticos ao seu nome; F.D. Roosevelt o elogiava de modo bastante decoroso como o estadista mais decisivo não só para a vitória contra o nazismo mas também para a construção da ordem mundial surgida após este feito — quanto a imagem demonizada e caricatural, mais comum após a condenação de Kruschev ao seu antecessor no XX Congresso do PCUS em 1956 e mais ainda após a vitória do Ocidente na Guerra Fria, são construções simbólicas recheadas de historicidade, permeáveis às diversas flutuações políticas e ideológicas ocorridas durante o tempo e espaço.

Se a apologia de todas as ações de Stalin é algo absurda, se podemos — e devemos — repudiar várias ações e tecer críticas duras à coletivização forçada no campo (cujo melhor crítico é Mao Tsé-Tung, o que deve causar enorme confusão na mente dos nossos teóricos do “totalitarismo”), aos expurgos violentos, às farsas judiciais contra adversários em 1937-38, no auge do Grande Terror, também é errado desconsiderar os fatores históricos concretos, como a ameaça do nazi-fascismo, abertamente voltado a destruir e escravizar o mundo eslavo, e mais estúpido ainda é confiar inteiramente no “relatório secreto” de Kruschev, já que este foi resultado de uma luta política interna contra adversários representando o círculo mais próximo de Stalin (Malenkov, Molotov). De certa forma, Kruschev agia em nome dos setores da burocracia partidária e estatal mais desconfortáveis com a política de pressão e mobilização total de Stalin, aqueles que demandavam mais conforto e estabilidade. É bom lembrar, afinal de contas, que foi a burocracia do partido e do Estado quem mais sofreu nas mãos do georgiano.

É interessante notar que Losurdo, ao contrário das caricaturas, possui opiniões que em muito fogem de qualquer estereótipo stalinista: defende medidas econômicas liberalizantes ao estilo chinês (do Deng Xiaoping) e propugna pela necessidade de um Estado de direito socialista, baseado na legalidade — o que o coloca em rota de colisão com os seguidores de Paschukanis no Direito. Losurdo, ao contrário da vulgata, defende que, apesar da história de racismo, o liberalismo nos legou tais ensinamentos. Pode ser criticado por vários pontos de vista, mas reduzir a sua visão à “stalinismo” é simplesmente burrice, afinal de contas estamos lidando com alguém que segue opiniões parecidas com as do último Bukharin, um inimigo do stalinismo (mas também do trotskismo), formulador do “socialismo de mercado” da NEP, morto pela repressão.

Enxergar culto e defesa acrítica em Losurdo, alguém que chama o período stalinista de “autocracia terrorista e desenvolvimentista”, é fruto deste consenso inquestionável e rebaixado, mais característico dos anos 70-80, do período de decadência soviética para frente. Assim, Foucault, o mesmo intelectual que chorou após saber da morte de Stalin (fato descrito em “História do estruturalismo” do François Dosse), transita para o anticomunismo ao longo dos anos 70 ao ponto de preferir os xiitas aos comunistas, na disputa pela direção da Revolução Iraniana — disputa esta que levou a um grande massacre de comunistas e esquerdistas.

Entre um Foucault e outro, temos a vitória ideológica da Guerra Fria. É tal acontecimento histórico que permite que afirmações completamente incoerentes sejam assumidas como fatos inquestionáveis, do tipo acreditar ao mesmo tempo tanto que Stalin era um idiota incompetente quanto crer no seu domínio sobre a respiração de cada cidadão da URSS, o que torna completamente inexplicável a vitória de um país sempre visto como atrasado e medieval frente à mais poderosa máquina de guerra já criada até então no planeta.

Para ser justo, o revisionismo está muito menos em Losurdo que na União Europeia, que recentemente produziu um documento assombroso igualando nazismo e comunismo, dizendo que a origem da Segunda Guerra Mundial reside no acordo de Stalin e Hitler. Ignora, portanto, não só toda a ação do mundo liberal “passando pano” para a política de Hitler, em busca do isolamento da URSS, como o próprio fato de que a Europa continental foi facilmente dominada pelo nazismo. Se dependêssemos da ação da França, onde reinou o conformismo inclusive nos meios liberais e “democratas”, o mundo todo estaria falando alemão. No entanto, poucos denunciaram este revisionismo na imprensa. “Intelectuais” do naipe de Pablo Ortellado são corajosos apenas para atacar alvos fáceis.

Aliás, boa parte daquilo que se tornou habitual a respeito da história soviética envolve levar a sério teses dos colaboracionistas nazistas — como os seguidores de Stepan Bandera e do nacionalismo ucraniano –, difundidas principalmente a partir da ação de guerreiros ideológicos do Ocidente, como Richard Pipes (entusiasta do arquirreacionário militar Kornilov na história da revolução russa) e Robert Conquest, historiador que hoje sabemos ter sido — o próprio obituário do The Guardian confirma — agente do serviço secreto inglês. O papo sobre Holodomor, o “genocídio urcraniano”, por exemplo, jamais era acionado fora dos círculos nazistas e contrários à entrada dos EUA na Segunda Guerra até recentemente, mesmo por oposicionistas virulentos, como Trotsky.

Quem acha, na esquerda, que obterá dividendos com o combate a um suposto “neo-stalinismo” quebrará a cara. Para a narrativa predominante nos meios liberais não há espaço sequer para Lenin. Possuem uma certa coerência nossos direitistas: a violência política não começou apenas com Stalin, apesar da sua intensificação a partir dele. A defesa de um humanitarismo pacifista e abstrato certamente não depõe a favor do comandante implacável — terror dos anarquistas — do Exército Vermelho, Leon Trotsky, nem sequer ajuda a ver com bons olhos alguns processos amados pelos progressistas, como a primeira revolução de negros anti-escravidão bem sucedida na história (a revolução haitiana, famosa pela violência) ou a luta de republicanos na Espanha contra as tropas de Franco — quem já leu algo sobre a Guerra Civil Espanhola fica espantado com episódios de brutalidade cometidos pelo “lado certo” da guerra, principalmente contra o clero católico.

Descrever toda a história de lutas revolucionárias como uma sequência bárbara de derramamento de sangue sem sentido é o procedimento padrão de qualquer Restauração, como atestam as visões sobre os jacobinos presentes na França após 1815 — o que durou até que historiadores comunistas do século XX “restaurassem” Robespierre — ou as reações das oligarquias latino-americanas contra o levante dos negros haitianos, sempre dando ênfase aos relatos de violência, algo que ajuda a explicar até mesmo a independência meia-bomba no Brasil. Losurdo assusta porque propõe um balanço real da história do socialismo, com seus erros e crimes, mas também com seus acertos e suas vitórias fundamentais.

Nossos ideólogos não querem balanço algum, apenas condenação moral e total. Querem a regressão a uma visão histórica baseada no psicologismo e no moralismo, algo anterior até mesmo a Hegel — que lia o Terror jacobino sob uma lente conceitual, tentando desbravar a racionalidade histórica por trás das ações, no lugar da condenação moral aos personagens históricos considerados individualmente. Isto já é esperado por parte de liberais, conservadores e todos os apologistas da ordem. Que socialistas caiam nisto só demonstra a atual barafunda ideológica em que estamos.

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1 comentário em “Autofobia e liberalismo”

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