Michel Foucault sem espelhos: um pensador proto pós-moderno

Por Mavi Rodrigues. Capítulo IV da tese de doutorado apresentada em 2006, intitulada “Michel Foucault sem espelhos: um pensador proto pós-moderno”.

O objetivo deste capítulo é apresentar Michel Foucault como um pensador proto pós-moderno, isto é, apresentar sua obra como fonte fecunda de argumentações pós-modernas (HARVEY, 1993).

O ponto de vista adotado aqui é aquele sustentado por Georg Lukács em El Asalto a la Razón, quando o autor em tela aponta Nietzsche como filósofo guia do irracionalismo do imperialismo clássico. Sob muitos aspectos, Foucault se assemelha a Nietzsche. Seu estilo aforístico e seus constantes deslocamentos sugerem um pensador múltiplo, de difícil compreensão. Mas o que nos parece mais relevante é mostrar que, na trajetória do irracionalismo, Foucault ocupa um lugar semelhante àquele que Nietzsche preenchera no período de 1875 a 1914. Como este último, o pensamento foucaultiano preparou as condições filosóficas elementares sob as quais uma nova fase do irracionalismo pôde emergir.


Na primeira parte deste capítulo, buscaremos evidenciar as relações estreitas do pensamento foucaultiano com aquilo que a cultura pós-moderna, no campo do saber e da política, pretende oferecer. Veremos que Foucault combateu a pseudoneutralidade do positivismo, mas ao mesmo tempo acolheu sua racionalidade miserável, manipuladora. Habermas desvela o positivista feliz que habitava no interior do filósofo niilista. É por meio da hipertrofia da intelecção e do agnosticismo que Foucault funda um positivismo pelo avesso. É deste lugar que ele descarta o legado iluminista crítico herdado do século XIX – o historicismo, o humanismo e a dialética – que havia sido, até a primeira metade do século XX, fonte de inspiração da luta democrática e socialista. O interesse pelo poder nos anos 70 e o retorno do sujeito nos anos 80, no Foucault maduro, não sinalizam uma retomada de qualquer elemento deste legado; ao contrário, revelam uma crescente aproximação à filosofia de Nietzsche. 

Também podemos localizar no sistema foucaultiano o germe da proposição política pós-moderna. Seu obsessivo interesse nas margens do poder-saber moderno e sua descrença perante a proposta socialista revolucionária, o habilitam a antecipar a perspectiva política da esquerda contra-revolucionária de hoje. Grande parte do fundamento desta proposição política diz respeito ao amálgama que o filósofo francês conseguiu forjar entre o poder e o saber.

Na segunda parte de nossa argumentação, pretendemos explicar porquê Foucault, em meio a uma abundante produção anti-humanista que, entre os anos 60 e 70, também conheceu uma intensa efervescência criativa e grande notoriedade, se constituiu como o filósofo guia do pós-modernismo; porquê ele pode ser caracterizado como um legítimo pensador proto pós-moderno. 

Em grande medida, a audiência do pensamento de Foucault entre setores progressistas, da sociedade civil organizada e da academia, se deve a seu talento filosófico. Foucault foi o único de sua geração que realizou com sucesso uma dupla empreitada. Por um lado, conseguindo equilibrar em seu próprio corpo as duas cabeças de Janus (Coutinho, 1972), pôde realizar com maior vigor aquilo que muitos neonietzscheanos em finais dos anos 60 intentaram: celebrar o irracional por meio de uma desconstrução racionalista formal da Ratio Moderna. Por outro, sua transgressividade, comprometidamente militante, anticomunista e antimarxista, permitiu que ele formulasse uma proposta política viável à intervenção social de uma esquerda descrente do socialismo, mas rebelde contra o sistema.

Por fim, pretendemos mostrar o quanto Foucault se manteve fiel ao longo de sua vida a uma concepção miserável da Razão (COUTINHO, 1972). É esta racionalidade miserável que Foucault – em todas suas diversas fases: estruturalista, pós-estruturalista e aquela próxima à sua morte – condena e acolhe. A condição aparentemente paradoxal entre condenação e acolhimento revela muito o próprio estilo filosófico de Foucault: sua escolha constantemente transgressiva, sua posição a meio do caminho, sua postura de fronteiras.

Mesmo engenhosa e sofisticada, porque visa jogar a Razão num jogo de espelhos, a filosofia foucaultiana não consegue ocultar sua fragilidade e unilateralidade diante de uma análise crítica radicada na mais rica e progressista expressão que a tradição iluminista pôde produzir, aquela que se filia ao legado marxiano, melhor dizendo, aquilo que de melhor Marx nos deixou: sua ontologia. 

4.1– ELOS INSUSPEITOS DE FOUCAULT COM A CULTURA PÓS-MODERNA

A hipótese de uma relação orgânica entre o pensamento foucaultiano e o pósmodernismo gera, ainda hoje, no meio acadêmico, um intenso cisma. Desde os anos 80, quando Michel Foucault ingressou no universo da crítica habermasiana e passou a ser qualificado como um legítimo representante do neoconservadorismo pósmoderno, as opiniões se dividem, misturando em campos opostos tanto detratores e defensores da cultura pós-moderna, por um lado, quanto adeptos e críticos do filósofo francês, por outro. Assim sendo, a idéia de um Foucault pós-moderno encontra acolhida entre intelectuais com posições políticas e teóricas muito divergentes, como em D. Harvey e S. Lash, mas é duramente rejeitada por autores também muito distintos como B.de S. Santos e S. P. Rouanet [1]. 

A dificuldade em tomar partido neste jogo de cartas tão embaralhado se explica, em grande parte, por um problema de grande monta: pensadores, como Santos (2001) e Rouanet (2000), que rejeitam a avaliação de Habermas acerca de Foucault têm razão quando sustentam que o filósofo francês não pode ser identificado como um aberto defensor do irracionalismo ou, até mesmo, com as concepções correntes no campo pós-moderno. 

Sem tergiversar diante desta questão, buscaremos apresentar os vínculos insuspeitos da obra foucaultiana com a cultura pós-moderna, tomando os paradoxos que a constituem. Cabe advertir, no entanto, que Foucault foi um pensador proto pós-moderno, muito mais do que um pensador tipicamente pós-moderno. Habermas (2000: 395) já havia chamado a atenção sobre o fato de que “a crítica foucaultiana à modernidade funda-se antes em uma retórica pós-moderna de exposição do que, propriamente, nas teses pós-modernas de sua teoria“. O que significa dizer, então, que, a despeito de Foucault não professar abertamente as teses pósmodernas, a lógica da sua obra ou os fundamentos de sua análise é/são inteiramente compatível/compatíveis com o horizonte intelectual e político aberto pelo pós-modernismo [2].

Acentuar o caráter proto pós-moderno do sistema foucaultiano não significa apenas apontar os nexos pouco visíveis, mas reais, entre a obra do filósofo francês e a cultura pós-moderna; é, igualmente, atestar como Foucault contribui de maneira substantiva para preparar o solo sob o qual o edifício teórico-político desta cultura pôde erguer-se. É, portanto, provar também como o pensamento foucaultiano antecipou uma certa “metodologia” ou concepção de mundo pós-moderna, sem mesmo ter assumido publicamente, de forma clara e explícita, os seus pressupostos.

Eis o desafio que assumimos!

Mas antes mesmo de expormos nossos argumentos é de bom tom ouvir o que o próprio Michel Foucault, que vivera o suficiente para se pronunciar acerca desta polêmica, pensava à respeito. Em entrevista concedida em 1983, em Estruturalismo e Pós-estruturalismo (FOUCAULT, 2000b: 307 a 334), quando questionado acerca da relação da sua obra com a cultura pós-moderna, o filósofo francês, como era de se esperar, não apenas negara a existência de qualquer identidade entre elas, como também criticara as principais teses do pósmodernismo [3]. 

A primeira vista, a argumentação de Foucault parece ser convincente. Em primeiro lugar, ele refuta que a Razão, alvo de ataque dos pós-modernos, seja idêntica às formas de racionalidade predominantes nas modalidades de saber e técnicas de governo ou de dominação, que ele, ao longo de anos, investigou. Em segundo lugar, explicitando sua objeção ao pós-modernismo, assevera que estas formas de racionalidade dominantes não se esgotaram. Foucault, acrescenta: não há, como supõe o pensamento pós-moderno, uma derrocada da Razão; o que existe são múltiplas transformações que indicam que outras formas de racionalidade se criam sem cessar. Por fim, alude que sustentar a constituição de uma era pósmoderna é equivocadamente falar de um ato fundador “um momento único fundamental ou irruptivo da história, a partir do qual tudo se realiza ou recomeça” (FOUCAULT, 2000b: 324). Contrário a toda premissa fundamentalista, ele conclui: o papel da filosofia é dizer o que é a atualidade. Seu objeto não é o passado nem o futuro, mas o presente. Sua tarefa é “dizer o que é esse ‘nós hoje’ [não se] permitindo a facilidade um pouco dramática e teatral de afirmar que esse momento em que vivemos é, no oco da noite, aquele da maior perdição ou, ao contrário, aquele em que o sol triunfa” (Idem, ibid., p. 325).

Foucault teria razão? Seria um contra senso considerá-lo como um pensador proto pós-moderno? Devemos analisar com muita atenção o que disse o filósofo francês nesta entrevista. Em parte seu argumento é verdadeiro. Não se pode encontrar em sua obra a reivindicação cristalina da constituição de um paradigma societal ou epistemológico alternativo ao da modernidade, bem como não existe explicitamente em seu sistema teórico a condenação das metateorias e, em contraposição, a celebração da indeterminação, do fragmentário, do efêmero, ou, ainda, a proclamação do caráter discursivo da ciência e da dimensão retórica da verdade. Ademais, não há em seus livros, entrevistas ou palestras a defesa de uma subjetividade esquizofrênica, embora o próprio filósofo francês tenha lutado obstinadamente contra todos aqueles que buscavam identificar em sua produção e biografia um Eu uno e coerente.

Mas é a própria crítica foucaultiana às teses pós-modernas que nos fornece a chave para decifrar seu proto pós-modernismo, isto é, sua sintonia com o horizonte intelectual e político pós-modernos. Fiel ao que o filósofo francês disse, Queiroz (1999) ressalta que, em oposição a uma ontologia da profundidade – preocupada com a questão da origem, do sentido, com a busca da verdade histórica –, a obra foucaultiana apresenta uma ontologia do presente e da superfície, uma “‘ontologia histórica de nós mesmos’, que, como ambicionava Foucault, deveria ‘afastar-se de todos os projetos que se pretendem globais ou radicais'” (QUEIROZ, 1999: 19). 

Não poderíamos localizar aí – tanto nos argumentos de Foucault quanto no de Queiroz – o presentismo pós-moderno? A soberania do presente e da superfície na obra foucaultiana – aspecto enfatizado positivamente por Queiroz – não seria também um indício da falta de profundidade típica do pós-modernismo? 

A investigação que Habermas (2000) fez da produção foucaultiana nos autoriza a responder afirmativamente a todas estas perguntas. Além de explicitar o presentismo em Foucault, tal análise revela o quanto a obra foucaultiana é pautada pela mesma regressão teórica que caracteriza o pós-modernismo, isto é, ela atesta como o sistema teórico do filósofo francês se identifica com a inflação da subjetividade operada pelo pensamento pós-moderno – o positivismo ao avesso – analisado no capítulo 2 desta tese.

Habermas (2000: 387) demonstra como Foucault, a despeito de seu gesto crítico, operando três reduções metodológicas cheias de conseqüências – a redução do sentido histórico, a partir da perspectiva do observador etnológico, à explicação dos discursos; a redução das pretensões de validade, em termos funcionalistas, à efeitos de poder e a redução do dever-ser, de forma naturalista, ao ser – foi um “positivista feliz”. 

De acordo com o autor em tela, a genealogia foucaultiana, desejando eliminar a problemática hermenêutica – aquela que se manifesta com o acesso ao domínio objetivo pela compreensão do sentido -, não tenta tornar compreensível o que os atores sociais fazem e pensam a partir de um contexto de tradição entretecido com as suas autocompreensões. Diferente do hermeneuta, o historiador genealogista deve explicar o horizonte dentro do qual as manifestações de tais atores emergem como dotadas de sentido, com base nas práticas subjacentes. Contudo, como fonte de sentido, tais práticas são elas mesmo sem sentido e, afim de apreendê-las em sua estrutura, o historiador deve abordá-las do exterior. 

Mas o mais significativo da análise habermasiana é a sinalização de como a negação da busca do sentido atrelada, de forma paradoxal, à procura obstinada pela objetividade histórica das estruturas discursivas tornaram as pesquisas foucaultianas auto-referenciadas e extremamente presentistas [4]. Ao pretender provar que não há no conhecimento um direito à verdade ou um fundamento do verdadeiro, a história foucaultiana do “querer saber da humanidade” acaba por converter-se em seu contrário: uma historiografia narcisista orientada apenas pelo “posicionamento do historiador, que instrumentaliza a consideração do passado para as necessidades do presente” (HABERMAS, 2000: 390). Dispensando qualquer pré-compreensão hermenêutica, o pensamento foucaultiano se apóia tão somente num “conceito da história como uma mudança de configuração, desprovida de sentido e caleidoscópica, de universos de discurso que nada têm em comum senão a determinação de ser protuberâncias de poder em geral” (Idem, ibid., p. 388).

Aqui o que Habermas revela é o quanto o pensamento foucaultiano se assemelha com a perspectiva pós-moderna de erigir um positivismo de sinal trocado. Embora, Foucault não defenda – abertamente como o faz Santos (2001) e outros pós-modernos – a concepção da ciência como uma mera narrativa/construto social ou da verdade como um conhecimento retórico, subjaz em sua produção a noção de que a história não deve retratar ou descobrir a objetividade do real, mas criá-lo. 

Além disso, a análise habermasiana prova o quanto o subjetivismo das pesquisas foucaultianas – em oposição ao objetivismo científico – está estreitamente relacionado com o presentismo pós-moderno. Assentada no desmascaramento das ilusões da objetividade, da validade e da verdade científicas, a análise foucaultiana é referida ao presente e, inevitavelmente, relativista. 

O referido autor mostra como a tese central de Vigiar e Punir – a racionalização do direito penal e a humanização da execução das penas ocultando uma mudança brutal nas práticas de poder: o surgimento de um regime moderno de poder que adapta e aprofunda a vigilância e o controle do comportamento cotidiano dos indivíduos – é falsa quando generalizada (HABERMAS, 2000: 403 a 406). Deturpação similar pode ser encontrada, igualmente, na história da sexualidade moderna: “Foucault simplifica o processo altamente complexo de uma progressiva problematização da natureza interior em uma história de curso linear” e exclui “todos os aspectos que permitem apreender a erotização e a interiorização da natureza subjetiva como um saldo positivo em liberdade e possibilidade de expressão” (Idem, ibid., p. 407). 

Não só Habermas (2000), mas também Merquior (1985: 35 a 43 e 154 a 164) – que compila os inúmeros equívocos históricos cometidos por Foucault desde sua história da loucura até sua história do sistema penal, amplamente denunciados por especialistas na área – demonstra que o filósofo francês, tal como o pastiche pósmoderno, pilha a história real: Foucault escolhe e recorta, ao seu gosto, os fatos históricos, construindo uma análise que lhe é conveniente. [5] 

E é o filósofo francês mesmo que reconhece os laços que unem sua historiografia com o apagar de fronteiras entre a arte e ciência preconizado pelo pós-modernismo, como também com a noção pós-moderna da verdade como uma retórica. Entrevistado em 1979, por M. Dillon, em Foucault Estuda a Razão do Estado, Foucault (2003d: 317 a 322) afirmou que, não sendo historiador nem romancista, praticou uma espécie de “ficção histórica” que não tinha a menor pretensão de dizer a verdade: 

“Um historiador poderia muito bem dizer sobre o que escrevo: ‘Isto não é verdade’. Para dizê-lo de outro modo: escrevi muito sobre a loucura, no início dos anos 60 – fiz uma história do nascimento da psiquiatria. Sei muito bem que aquilo que fiz é, de um ponto de vista histórico, parcial e exagerado (grifos nossos). Talvez eu tenha ignorado alguns elementos que me contrariam. Mas meu livro teve um efeito sobre a maneira como as pessoas percebem a loucura. Portanto, meu livro e a tese que nele desenvolvo têm uma verdade na realidade de hoje. 

Procuro provocar uma interferência entre nossa realidade e o que sabemos de nossa história passada. Se tenho sucesso, essa interferência produzirá reais efeitos em nossa história presente. Minha esperança é que meus livros tomem a sua verdade uma vez escritos, e não antes (grifos nossos)” (FOUCAULT, 2003d:321).

Sendo assim, não seria nenhum descalabro sustentar que o repúdio da arqueologia/genealogia foucaultiana à historiografia global, apontada pela crítica habermasiana, contenha os mesmos princípios da objeção pós-moderna à totalidade e às metanarrativas: a mesma aversão a um conhecimento que busque retratar as leis e causalidades objetivas, a mesma negação das noções de progresso histórico e de teleologia. Habermas comprova como a historiografia arqueogenealógica de Foucault – comprometida com a denuncia das continuidades históricas, supostamente falsas, e com a ênfase nas rupturas, nos limiares e nas mudanças de rumos – não busca “criar nexos teleológicos, não se interessa pelas grandes causalidades; não conta com sínteses [e] renuncia a princípios estruturantes tais como o progresso e a evolução” (HABERMAS, 2000: 352). 

Portanto, podemos dizer que, diferentemente do suposto ingenuamente por Rouanet (2000), não é porque Foucault empreende uma crítica racional à Razão moderna que ele não possa ser considerado um pensador irracionalista e conservador [6]. Por tudo que apresentamos até agora não há como negar que, tal como o pós-modernismo, a obra foucaultiana se inscreve no horizonte de uma proposição teórica regressiva. 

Embora, a particularidade do irracionalismo foucaultiano – de um irracionalismo racional – seja objeto da seção 4.3, podemos, ao menos, sinalizar aqui, indo além da crítica habermasiana, que, a despeito de seu espírito crítico, o caráter regressivo do sistema teórico foucaultiano se explicita quando se leva em conta o tipo de racionalidade com a qual Foucault opera. Toda a sua obra é parametrada por uma racionalidade miserável e manipuladora: a intelecção que – constituída pelos procedimentos da distinção, da classificação, da decomposição de conjuntos em suas partes e, eventualmente, a sua recomposição – corresponde tão somente a uma das modalidades operativas, extremamente limitada, da Razão. Ao enfatizar as inferências realizadas pela via da dedução e de modelos lógicomatemáticos e não envolver o caráter crítico e negativo da Razão, a intelecção deixa escapar a processualidade dialética dos fenômenos (NETTO, 1994: 29).  

Fiel a este tipo de racionalidade meramente instrumental, que se reduz à mera constatação e aos comportamentos manipuladores do sujeito em face do mundo objetivo, preso a um pensamento formalista, reducionista e determinista – como se este fosse o único tipo existente na moldura da modernidade (GUERRA, 1993) – Foucault só pode mesmo ser concebido como um “positivista feliz” [7]. E desconsiderar o caráter regressivo deste positivismo, bem como seu vínculo com o horizonte teórico proposto pela cultura pós-moderna seria uma cegueira intelectual imperdoável. 

Todavia, não é só no plano teórico que o sistema foucaultiano se vincula ao pós-modernismo; é, sobretudo, no plano da política que o proto pós-modernismo de Foucault se explicita. É também ai que a direção regressiva do seu pensamento se revela sem véus. A sintonia entre o horizonte político-ideológico deste e o da esquerda pós-moderna é tanta que é impossível contestar que o filósofo francês, já nos anos 70, tenha adiantado muitos dos conteúdos, hoje, professados por intelectuais como Santos (2001). 

Marcados pela aversão a um conhecimento ou visão totalizantes, a obra foucaultiana e o pós-modernismo de contestação primam por “um ceticismo epistemológico e um derrotismo político profundos” (WOOD & FOSTER, 1999:13) [8]. Ambos descrêem de qualquer tipo de política “de emancipação humana geral” ou “uma contestação geral do capitalismo, como os socialistas costumavam acreditar” e apostam, no máximo num “bom número de resistências particulares e separadas” (Idem, ibid., p. 15).

Poderíamos elencar um cem número de passagens nas quais o conteúdo anticomunista e transgressivo do pensamento foucaultiano se coaduna com o sentido rebelde e anti-revolucionário do pós-modernismo de Boaventura de Sousa Santos. Neste sentido, poderíamos demonstrar que a genealogia de Foucault compartilha com o pós-modernismo de inquietação a valorização das lutas locais, imediatas, que politizam o cotidiano em contraposição às lutas globais e radicais (FOUCAULT, 1995 e WEISSHAUPT, 2002: 142 a 147). [9]  

Porém, o que mais nos interessa é demonstrar que a entificação da Razão promovida pelos pós-modernos – isto é, a sua transformação num demiurgo do real, emblemada na culpabilização desta pelas barbáries que a modernidade experimentou (guerras, desigualdades, opressão, devastação ecológica, etc.) – tem seu fundamento na concepção de saber/poder que, ao longo de sua vida e de diferentes modos, o filósofo francês obstinadamente procurou elaborar. 

Tudo isto pode parecer muito estranho já que, na entrevista que concedeu em 1983 (FOUCAULT, 2000b: 307 a 334) e em várias outras ocasiões (FOUCAULT, 1995: 233 e 2000b: 335 a 351), Foucault recusara, por vezes de forma enfadonha, que o problema que o mobilizara não era o mesmo dos pós-modernos. Contudo, “cautela e caldo de galinha” são indispensáveis quando se trata de avaliar as autorepresentações que o filósofo desenvolveu de sua própria obra. Basta lembrar a posição extremamente vacilante que este conservou, ao longo de sua vida, diante do estruturalismo – ora demonstrando uma adesão apaixonada, ora repulsa. 

Se tomarmos a totalidade da sua produção, veremos que Foucault contribuiu, substantivamente, para aquilo que Wood (In WOOD & FOSTER, 1999: 13) ressalta como característico do pós-modernismo: a substituição da noção tradicional da política, ligada ao poder dominante das classes ou Estado e o confronto contra os mesmos, pelas lutas fragmentadas baseadas na “política de identidade” e na noção do “pessoal como político”. 

Mas indo além de Wood, Macnally (1999) aponta com muito mais precisão os elos que ligam a concepção foucaultiana de poder/saber com a proposição política pós-moderna. Tomando o pós-modernismo como um novo idealismo discursivo – idealismo que transforma a língua ou o discurso numa entidade onipresente que engole tudo -, o referido autor destaca a teoria política que lhe é correspondente: uma teoria política discursiva que reduz as relações sociais às suas formas lingüísticas porque compreende a opressão como o modo pelo qual “nós e os outros somos lingüisticamente definidos” e se sustenta numa ontologia do ser da linguagem, na qual “nosso próprio ser, nossa identidade e ‘subjetividade’, são constituídos pela língua” (MACNALLY, 1999: 33).

Não por acaso, segundo o autor, o pós-modernismo corresponde à adoção por parte da intelectualidade de esquerda de um pseudo-radicalismo, “um radicalismo verbal de palavra sem ato, ou melhor, de palavra como ato” (Idem, ibid., p. 34). Quanto a relação de Foucault com esta teoria política discursiva, Macnally acentua que, embora tenha criticado Derrida e sua proposição desconstrucionista de se enclausurarem nos textos, o filósofo francês “não conseguiu se libertar do discurso como campo fechado em si mesmo”:

Para o referido autor, o conceito foucaultiano de poder-saber conduz a ideia de que:

“as relações de poder são formadas em e através de práticas de seres humanos ‘conhecedores’. E essas práticas – tais como classificar, medir e avaliar pessoas – têm origem no campo do discurso, onde os indivíduos são consignados a categoria diferentes de pensamento e descrição. Decorre, então, que o ‘desenvolvimento da humanidade é uma série de interpretações’. Portanto, a despeito de todas as suas visões das estruturas das instituições sociais e suas práticas de dominação, Foucault volta à sua própria versão de determinismo discursivo. Ele é levado pela lógica da sua posição a concluir que, inevitavelmente, ‘permanecemos dentro da dimensão do discurso’” (MACNALLY, 1999:36) 

Vale a pena coligir as avaliações de Wood e Macnally com um ensaio intitulado “O sujeito e o poder“, escrito, em 1982,  por Foucault (1995), no qual o autor sugere uma “nova economia das relações de poder”, cujo objetivo maior é apresentar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um meio para elucidar as relações de dominação. Tal “economia” não só enaltece as lutas transversais que, sendo imediatas, anárquicas e voltando-se contra o poder enquanto tal, não esperam solucionar seus problemas com revoluções ou o fim da luta de classes (FOUCAULT, 1995: 234); ela alça a primeiro plano as “lutas contra a sujeição, a subjetivação e a submissão”, aquelas que “afirmam o direito do indivíduo de ser diferente” e que são consideradas, frente às lutas contra a dominação e a exploração, as mais importantes na atualidade (Idem, ibid., p. 235 e 236). 

Além disto, neste mesmo texto, Foucault, embora diga que seu propósito não é julgar ou culpabilizar a Razão (Idem, ibid., p. 233), numa espécie de fusão entre saber e poder, coloca no centro das lutas de resistência à dominação as lutas contra o saber racional. Tal fusão se acusa em dois momentos principais: no momento em que afirma a evidência da “relação entre a racionalização e os excessos do poder político” (Idem, ibid., p. 233) e quando define as batalhas contra o poder de individuação como “uma oposição aos efeitos de poder relacionados ao saber, à competência e à qualificação” aquilo que chama de: “lutas contra o privilégio do saber” (Idem, ibid., p. 235). 

A crítica habermasiana já havia apontado que esta fusão é um componente central da genealogia. Habermas (2000: 380) chama a atenção para o papel que as ciências humanas – pensamento antropocêntrico que provém de tecnologias de dominação modernas – cumpre em Vigiar e Punir. Neste livro, a prisão panóptica – instrumento que não apenas submete os prisioneiros à reclusão, mas que visa transformá-los – é apresentada como o exemplo de um poder disciplinar onipresente que não apenas adentra os corpos, mas interfere também no comportamento diário dos indivíduos, fomentando a motivação para o trabalho e para a vida ordenada. E as ciências humanas – prolongamento sutil deste poder disciplinar, até o mais íntimo das pessoas e populações – representam “um amálgama de poder e saber – formação de saber e formação de poder constituem uma unidade indissolúvel” (HABERMAS, 2000: 381 e 382). [10]

É a primazia concedida ao “como” do poder ou ao “como do discurso”[11] ao invés da análise ontogenética; é a substituição da perspectiva ontológica pela epistemológica que permite ao pensamento foucaultiano, assim como ao pensamento pós-moderno, amalgamar poder e saber, ou seja, incriminar a Razão de todos as mazelas que era moderna conheceu e, ao mesmo tempo, apontar como alternativa a este quadro uma mutação operada no próprio saber. [12]

A demonstração do quanto a genealogia foucaultiana despreza a análise ontológica pode ser encontrada em Weisshaupt (2002). Mesmo discordando que exista uma unidade ou sistema foucaultiano, o referido autor demonstra que há nos textos genealógicos [13] uma concepção sistemática de poder – isto é, uma concepção sobre o poder em geral na sociedade, bem como a definição de instrumentos e cuidados metodológicos de investigação próprios a análise deste objeto – que não corresponde a “uma definição genérica, mas ‘analítica’ do poder” (WEISSHAUPT, 2002: 140). O filósofo francês – assevera Weisshaupt – não intenciona elaborar uma definição de poder metafísica, abstrata, global, e universal, mas “dar conta de um determinado exercício; [Foucault] não coloca […] a questão: o que é o poder?. […] Sua questão é: como se exerce?” (Idem, ibid.). 

O epistemologismo da genealogia foucaultiana se evidencia também em outro ponto da análise de Weisshaupt. O autor em tela revela que o que articula a concepção geral do poder no filósofo francês é o ponto de vista da racionalidade: um ponto de vista “a partir do qual a pesquisa do poder em Foucault encontraria sua justificativa, sua coerência, seus procedimentos metodológicos, seus desdobramentos e sua produtividade” (WEISSHAUPT, 2002: 148). 

E mesmo que Weisshaupt extraia desta tese uma conclusão inteiramente diversa da nossa [14], é evidente que, ao se fundamentar num confronto com a racionalidade, a concepção geral de poder da genealogia foucaultiana se sintoniza com o pós-modernismo de inquietação. Ilustra esta sintonia, o conceito elaborado por Santos (1997: 328 a 330) de “epistemicídio”, fenômeno, tal qual o genocídio, produzido pela expansão do domínio europeu no século XX. Contudo, mais vasto e devastador que o segundo e considerado por Santos como um dos maiores crimes contra a humanidade, o “epistemicídio” é tratado como o resultado do empobrecimento do horizonte e possibilidades do conhecimento pelo paradigma da modernidade que, tornando a ciência a única forma de saber válida, eliminou as “formas de conhecimento estranhos”, sustentadas em práticas sociais de “povos estranhos”. 

Contra tal crime, o paradigma pós-moderno – optando “pelos conhecimentos e práticas oprimidas, marginalizadas, subordinadas” (SANTOS, 1997: 329) – propõe revalorizar os saberes e experiências não hegemônicas, nivelando diferentes conhecimentos e privilegiando o conhecimento retórico, cuja validade não depende de princípios demonstrativos de verdades intemporais, mas do poder de convicção de seus argumentos. 

Ora, é inconteste a obsessão de Foucault por saberes marginais e desqualificados. Vimos que, especialmente, no pós-68, a finalidade de seu projeto era reabilitar estes saberes e dar voz ao que estava à margem da ordem do discurso dominante e do poder disciplinar. Além disso, mesmo não tendo pleiteado, de forma contundente, uma verdade retórica, o conhecimento privilegiado pelo pensamento foucaultiano não era o verificável, o verdadeiro, mas o persuasivo. Afinal de contas, não foi isto o que fez, ao buscar escrever uma história da loucura, das prisões e da sexualidade dando as costas para fatos históricos reais e objetivos? 

Ademais, a análise dos textos genealógicos por Weisshaupt (2002) confirma que a concepção do poder em geral de Foucault diz respeito à valorização das lutas que – dirigidas contra o regime de saber enquanto instrumento de poder (WEISSHAUPT, 2002: 143) – implicam na junção do saber “erudito” dos intelectuais com o saber dominado, denominada pelo filósofo francês como o “retorno dos saberes” que, opondo-se aos “discursos globais e universais, totalizantes e hierarquizados, vanguardistas e prescritivos […] pode ser definido como anticiência” (Idem, ibid., p. 147)..

Além desta junção de saberes, a definição foucaultiana da genealogia como um empreendimento capaz de dessujeitar e libertar os saberes locais, desqualificados, descontínuos e deslegitimados (FOUCAULT, 2005a: 13 a 15) não se assemelharia a proposta de Santos (2001: 108) de constituir um conhecimentoemancipação que, denominado de “conhecimento prudente para uma vida decente”, exigiria um duplo salto: a passagem do senso comum para o conhecimento científico, por um lado, e do conhecimento científico para o senso comum, por outro?

Por fim, cabe demonstrar que o posicionamento de Foucault diante da modernidade padece de uma ambiguidade muito semelhante àquela postulada pelo pós-modernismo de inquietação. Tal dubiedade se expressa num artigo, escrito em 1984, intitulado “O que são as Luzes“, no qual o filósofo francês (2000b: 335 a 351) expõe sem rodeios o que entende por modernidade e como se põe diante dela. 

Inspirando-se num texto de Kant de 1784, “O que são as Luzes?”, Foucault prefere encarar a modernidade mais como uma atitude do que como um período histórico: “um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária […] uma maneira de pensar e sentir […] também de agir e de se conduzir que […] marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa (FOUCAULT, 2000b: 341 e 342). O fio que nos liga as Luzes – assevera o filósofo – não é a fidelidade a elementos doutrinários, mas a reativação desta atitude da modernidade, “um ethos filosófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico” (Idem, ibid., p. 345).

A reativação deste ethos filosófico é descrita como um ato, simultaneamente, negativo e positivo. Em sua negatividade ela envolve uma recusa dupla. Por um lado, a recusa de determinar o que há de positivo e de negativo nas Luzes. Portanto, nos termos da primeira recusa, a principal tarefa da filosofia: a análise de “nós mesmos” deve ser conduzida não no sentido do núcleo essencial da racionalidade iluminista, mas dos seus limites, ou, seja, “na direção do que não é, ou não é mais, indispensável para a constituição de nós mesmos” (FOUCAULT, 2000b: 345). Em outras palavras: “é necessário recusar tudo o que poderia se apresentar sob a forma de uma alternativa simplista e autoritária: ou vocês aceitam a Aufklärung, e permanecem na tradição de seu racionalismo […] ou vocês criticam a Aufklärung, e tentam escapar desses princípios de racionalidade” (Idem, ibid., p. 345).

Já, a segunda recusa diz respeito à negação da identidade entre o humanismo e a Aufklärung, uma vez que a crítica e a criação de “nós mesmos” em nossa autonomia se opõe ao humanismo (Idem, ibid., p. 346).

A postura positiva, proposta pelo filósofo francês, em face do ethos filosófico da modernidade compreende um movimento triplo. Em primeiro lugar, ela implica numa atitude-limite, um situar-se nas fronteiras. Trata-se de inverter a questão kantiana que procurava saber os limites que o conhecimento deve renunciar a transpor, isto é, não é a busca do que é possível conhecer, mas a procura do conhecimento do impossível. Esta postura positiva diante das Luzes exige, portanto, não uma metafísica ou a busca de estruturas universais, mas a pesquisa do contingente, do singular como forma de fazer avançar “o trabalho infinito da liberdade” (FOUCAULT, 2000b: 348).

Em segundo lugar, o positivo corresponde a uma atitude experimental, ou seja, a renuncia dos projetos com pretensões globais e radicais. Trata-se da preferência por transformações muito precisas e parciais ao invés “das promessas do novo homem” (FOUCAULT, 2000b: 348). 

Por fim, os dois elementos anteriores não indicam que a pesquisa de “nós mesmos” só possa ser feita na desordem e contingência – ela envolve uma determinada aposta, homogeneidade, sistematização e generalidade. Tal como o pós-modernismo autodenominado de contestação, Foucault (2000b: 351) sinaliza que o “trabalho crítico também implica a ‘fé nas Luzes'”. 

É o próprio Santos (2001: 26 e 27) que revela a importância de Foucault na constituição da postura dúbia do pós-modernismo de contestação frente ao Iluminismo. Preferindo tratar o filósofo francês como um representante “do clímax e, paradoxalmente, da derrocada da teoria crítica moderna” (Idem, ibid), ao invés de um pensador pós-moderno, o autor em tela acentua a dupla contribuição do pensamento foucaultiano: Foucault não só mostrou “que não há qualquer saída emancipatória dentro [do] ‘regime da verdade’ [do conhecimento totalizante da modernidade/da ciência moderna]” como também conferiu “credibilidade à busca de ‘regimes de verdades’ alternativos, outras formas de conhecer marginalizadas, suprimidas e desacreditadas pela ciência moderna” (Idem, ibid.)

4.2 – O PROTO PÓS-MODERNISMO DE FOUCAULT

Em termos gerais, podemos dizer que Michel Foucault foi o filósofo que tornou possível o pensamento pós-moderno. Porém, a correta interpretação desta assertiva impõe algumas advertências. Em primeiro lugar, ela não tem o intuito de sugerir que o pós-modernismo é um produto fabricado pela mente foucaultiana. A cultura pós-moderna, é acima de tudo, o reflexo de alterações objetivas processadas na ordem burguesa em sua fase tardia.

Em consonância com a concepção materialista da história – que sustenta que

“não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX, 1991:37) -, podemos dizer que, funcionando como uma espécie de encarnação do “Espírito do Tempo”, ou melhor, como Espírito de sua geração, Foucault é o pensador que melhor capta as alterações operadas na ordem capitalista a partir da onda longa recessiva que se abate sobre o modo de produção capitalista e a cultura, em fins dos anos 60 do século XX – a crise estrutural do capital analisada por Mészáros (2002). Entretanto, a sensibilidade e a engenhosidade de Foucault não foram suficientes para que ele pudesse superar uma compreensão unilateral deste fenômeno objetivo.

Tal assertiva também não autoriza a restringir o rebatimento da produção foucaultiana sobre a cultura pós-moderna a uma descendência teórica direta. Encontramos em alguns pensadores pós-modernos uma absorção apenas parcial da obra do filósofo francês ou, ainda, a exegese de alguns de seus mais polêmicos conceitos ou afirmações, por vezes circunscritos a uma determinada fase da sua evolução teórica [15]. É bem provável também que existam outros pós-modernistas que não tenham tomado Foucault como um interlocutor relevante [16] ou que nem sequer o tenham lido. 

Ademais cabe lembrar que Foucault foi um pensador proto pós-moderno, muito mais do que um pensador tipicamente pós-moderno. Se comparado aos pósmodernistas atuais, o niilista de cátedra (MERQUIOR, 1985) se revelaria como um pensador bastante racional e muito preso a documentos e provas históricas. Além disso, diferentemente do conjunto de defensores da pós-modernidade, não há em seu pensamento uma proposição clara da constituição de um novo paradigma, nem tampouco uma proclamação aberta do sujeito descentrado. Contudo, sua obra prenuncia todos os traços antiontológicos do pós-modernismo: o neo-irracionalismo, a semiologização do real, o deslocamento do sujeito moderno, centrado e autônomo, a política transgressiva. 

Portanto, mesmo não tendo nunca utilizado o termo pós-moderno, Foucault foi o mais importante precursor da lógica cultural do capitalismo tardio. Aliás, quando a cristalização deste termo e de seus correlatos (pós-modernismo e pósmodernidade), emergem nas ciências humanas e sociais, em finais dos anos 70 – com o livro fundacional de Lyotard (2002) -, grande parte dos fundamentos da obra foucaultiana já havia sido erguida.

Vimos como toda uma geração de jovens filósofos franceses, na segunda metade dos anos 60, retomando temas, até então, banidos pela primeira geração estruturalista, prenuncia vários argumentos pós-modernos, tais como a questão de um Eu fluido e descentrado, ou, ainda, a de uma história descontínua e caótica. A determinação de Foucault como um legítimo pensador proto pós-moderno dentre aqueles que compõem os “sixties” não é arbitrária nem produto de um mero gosto pessoal. Ao contrário, ela se sustenta em, pelos menos, cinco razões essenciais.

Em primeiro lugar, Foucault ao longo de toda sua obra, sob os mais diversos ângulos e maneiras, foi um crítico corrosivo do discurso moderno e das práticas e instituições de dominação a ele associadas. E como pensador do discurso (da relação poder-saber) o filósofo em tela elaborou um projeto sistemático de demolição dos ideais e dos fundamentos teórico-críticos da era moderna que forneceu as bases para a construção da argumentação pós-moderna. É na qualidade de um antimodernista que ele se insurge ferozmente contra o legado teórico-cultural e ideopolítico mais avançado da era modern [17]. Tal como o pensamento pós-moderno, a obra foucaultiana refuta os três elementos progressistas da tradição filosófica iluminista (o humanismo, o historicismo concreto e a Razão dialética), cuja expressão mais madura se encontra na racionalidade crítico-dialética.

Em segundo lugar, a obra do filósofo francês é marcada pela ambição de construir uma ontologia do ser da linguagem. As Palavras e as Coisas (1966), um dos livros mais herméticos de Foucault e talvez o mais complexo e fundamental de sua trajetória [18], ao afirmar o homem como um produto das ciências humanas, anuncia aquilo que viria a se constituir, no pós-68, o lugar comum do pensamento pós-moderno: a semiologização do real. Os vínculos estreitos desta perspectiva com uma clara postura antiontológica, outra marca central do pensamento pós-moderno, se explicita neste mesmo livro, em especial no capítulo VIII, quando o filósofo francês desfere uma crítica ácida às elaborações teóricas que pretendem fundar uma ontologia do ser social sustentada no trabalho, na linguagem e na vida.

Além disso, já nos idos dos anos 60, muito antes dos pós-modernos, Foucault – quer seja pela via da denúncia da ciência psiquiátrica como o aprofundamento da dominação da loucura, quer seja pela via da revelação da epistémê moderna como aquela que criou o homem – entifica a Razão moderna e volta toda a sua artilharia contra o projeto iluminista, acusando-o por crimes que seriam mais justamente creditados ao capitalismo (WOOD & FOSTER, 1999: 18).

Em terceiro lugar, sua obra é portadora de uma clara proposição política. Mais do que qualquer pensador de sua época, Foucault explicitou a pretensão política de seu projeto teórico. Tal suposição está estreitamente articulada ao privilégio que sua produção concede ao campo da transgressão. Contudo, a sua obra foi além de um mero interesse teórico especulativo por este campo. Foucault chegou a apontar os sujeitos concretos, os porta-vozes do seu projeto teórico-prático, dentre eles os loucos, os delinqüentes, os homossexuais, e toda sorte de personagens que historicamente compuseram as margens, os desvios, as anormalidades que os saberes-poder modernos buscaram silenciar ou normatizar. 

A idéia que queremos apontar aqui é que, ao centrar sua preocupação teórica e interventiva naquilo que pode ser identificado como a transgressividade, Foucault está indicando a alternativa política que será a base para as proposições pósmodernas de contestação: uma ênfase nas margens do sistema, sustentada na crença da inviabilidade da ultrapassagem da ordem social burguesa (EAGLETON, 1998) e no pretenso esmorecimento de qualquer potencial de transformação social advindo da classe trabalhadora (LASH, 1997). 

Em quarto lugar, Foucault foi o pensador mais racional de sua geração. Como Deleuze, Derrida, Barthes, Lacan, combateu duramente a Ratio Moderna. Entretanto, diferentemente destes, não empreendeu uma defesa aberta e clara da irratio. Seu irracionalismo, aparentemente paradoxal, é mais complexo e refinado. Veremos que o irracionalismo foucaultiano não é causa, mas, antes, conseqüência de um jogo de espelhos que o niilista de cátedra lança sobre a Razão. Isto é, o irracionalismo da sua obra não se apresenta como um pressuposto, mas como o resultado de uma dobra da racionalidade intelectiva sobre si mesma. 

 Assim, Foucault eleva o irracionalismo a um patamar superior em face das suas expressões anteriores. É por meio desta via que o pensador francês formula uma perspectiva irracionalista condizente com o período tardio do capitalismo nos anos 60. Frente à expressão mais desenvolvida da dialética, em seu plano histórico e teórico, na década de 60 – os levantes estudantis e operários de 1968-76 e a efervescência da produção marxista, sobretudo daquela que fora marcada por uma impostação ontológica -, não era possível a reprodução pura e simples da versão moderna do irracionalismo dominante no período imperialista clássico. O irracionalismo só podia ressurgir como uma alternativa viável na condição de uma superação do irracionalismo claramente conservador – reacionário – que vicejou entre 1875 a 1914. Só podia, portanto, se expressar na qualidade de um irracionalismo tardio, isto é, indireto e entre as fronteiras de um irracionalismo descarado e uma racionalidade formal e miserável. Mais do que ninguém, Foucault soube fornecer esta alternativa [19]. 

Ora, são, principalmente, estes dois últimos elementos – um racionalismo irracional e uma política transgressiva – que permitem qualificar o filósofo francês como o filósofo guia do pós-modernismo, ou, ainda, como o mais legítimo pensador proto pós-moderno. Pois, se grande parte daqueles que compuseram a primeira geração da Escola de Frankfurt – entre eles Hokheimer, Adorno, mas também Marcuse – e toda uma geração de neonietzscheanos, contemporâneos do filósofo francês – como Deleuze e Derrida – adiantaram várias premissas pós-modernas, é somente em Foucault que elas encontraram um estatuto teórico e político mais robusto. 

É inconteste que, nos anos 40, Adorno já havia antecipado a negativa pósmoderna às metateorias – ao afirmar que o “todo é falso” (MÉSZÁROS, 2004: 165). Também, junto a Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, havia desferido um duro golpe na Razão [20] – chegando a converter o saber em simples sinônimo do poder e da dominação burguesa e o progresso em mero sinônimo da regressão e da barbárie (HOKHEIMER & ADORNO, 1985: 20, 46). Todavia, a antiontologia e o irracionalismo de Adorno não o levaram a formulação de uma alternativa política viável para uma esquerda descontente com o comunismo, a não ser o puro fatalismo de “jogar garrafas ao mar” (MÉSZÁROS, 2004: 168 e 169). A mesma insuficiência pode ser localizada em Deleuze e Derrida. Nestes ou a crítica à Razão se apresenta explicitamente irracionalista, ou a negação do existente, presa demais aos instintos e a revolta subjetiva, se mostra inepta para uma intervenção militante. 

 Por fim, o estilo teórico de Foucault permite qualificá-lo como o intelectual que melhor responde ao horizonte cultural pós-moderno. Sua crítica corrosiva à modernidade, sua abertura aos mais diversos campos do saber, seu processo constante de mutação teórica e de campos de problematização parecem condenar ao fracasso qualquer tentativa de traduzi-lo como um pensador coerente e sistemático. Assim, Foucault surge como a personificação mais genuína do sujeito esquizóide cultuado pelo pós-modernismo: um pensador plural que – ao revelar-se em mil pedaços, em constante deslocamento e afastamento de si mesmo – não necessita defender abertamente a implosão da noção moderna de um sujeito soberano e coerente, posto que parece encarnar, em sua própria existência esquizofrênica, o sujeito dilacerado que os pós-modernos tanto celebram [21].

A influência da filosofia foucaultiana sobre a cultura que se tornará dominante, em fins do século XX e começo do XXI, diz respeito não só ao conteúdo que sua obra veicula, mas também ao seu estilo filosófico. Ambos, conteúdo e estilo filosóficos, comportam uma concepção de mundo – pautada num exacerbado niilismo, numa espécie de jogo de espelhos, num sujeito estilhaçado e no gosto pelas margens – que, somente por volta dos anos 90, pensadores pós-modernos pleitearão como a base para a ultrapassem paradigmática, epistemológica e societal, da modernidade. É a compreensão desta marca dúplice que permite demonstrar o quanto este filósofo se constituiu como um dos principais guias do neo-irracionalismo tardio que emergiu, no coração e na mente, até mesmo, daqueles que não tiveram um contato direto com a sua obra. 

Todos esses elementos permitem situar Foucault como o mais autêntico e importante pensador neo-irracionalista de seu tempo, como um precursor de uma espécie de irracionalismo de esquerda que se tornará predominante na virada do século XX para o XXI. Além do mais, possibilitam também aproximar a sua obra, tanto por seu conteúdo quanto pelo papel que desempenha na trajetória da filosofia irracionalista, daquela produzida pelo fundador do irracionalismo moderno: Nietzsche (LUKÁCS,1968). E não foi por acaso que este se constituiu como o principal guru das mais diversas fases do pensamento foucaultiano [22]. 

De acordo com Machado (2001), é a influência da filosofia de Nietzsche – pela via da literatura de Bataille, Klossowski, Blanchot, etc., – que permite explicar os deslocamentos metodológicos da arqueologia foucaultiana em relação à outra influência teórica que a marcou: a epistemologia francesa de Bachelard e Canguilhem [23]. E mais, é a valorização da linguagem literária, profundamente inspirada numa crítica nietzscheana da modernidade, que possibilita revelar com maior clareza o lado afirmativo, propositivo, das idéias filosóficas do Foucault arqueólogo.

A hipótese de Machado, que muito nos interessa, é a de que a reflexão de Foucault sobre a literatura deve ser entendida como o esforço empreendido pelo pensador francês para escapar de uma filosofia do sujeito ou da consciência – uma filosofia humanista -, dominante na França até os anos 60. Dessa forma, sustenta Machado, a literatura fora utilizada pela arqueologia foucaultiana como alternativa, contraponto ou transgressão “ao homem considerado como a priori histórico dos saberes da modernidade” (MACHADO, 2001: 11).

As considerações de Lash (1997) acerca da importância de uma estética pósmoderna na produção dos principais pensadores neonietzscheanos franceses [24], dentre os quais Foucault, reforçam a tese de Machado. Para Lash, é na produção foucaultiana dos anos 60 que encontramos uma concepção de linguagem não discursiva como forma de contra restar o discurso das ciências humanas. 

O autor em tela demonstra como o “discursivo” e a “linguagem não-discursiva” são elementos de um tipo de “modelo espacial” concebido em função do “Mesmo” e do “Outro”, com o qual Foucault trabalha, em níveis diferentes de profundidade, em História da Loucura (1961), As Palavras e as Coisas (1996) e em seus artigos sobre a literatura. Neste “modelo espacial”, o “Mesmo” corresponde ao espaço ou ao mundo do discurso e da luz. Em contraposição, o espaço ou o mundo do “Outro” diz respeito ao domínio da obscuridade, habitado por aquelas figuras excluídas pelo discurso do “Mesmo”: a loucura, a sexualidade, o desejo e a morte.

Segundo Lash (1997), a constituição dos signos e a edificação dos referentes do mundo do “Mesmo” corresponderiam ao período que o “niilista de cátedra” denomina de clássico, quando emerge um saber ancorado na representação – a epistémê clássica (FOUCAULT, 2000b). Sob o predomínio de um discurso que pretende a ordenação científica e racional dos seres, o mundo do “Mesmo” ganha eloqüência às custas do silêncio e da sombra das figuras que compõem o mundo do “Outro” – a representação do visível em detrimento do invisível, do racional em oposição ao mágico, do externo em contraposição ao interno. O domínio do “Outro” pelo “Mesmo” se acentua, no período moderno, graças à aparição de um saber empírico-transcedental – as ciências humanas – que busca trazer à luz, à racionalidade, o que havia sido deixado na sombra. 

Contudo, o nascimento da literatura, no período moderno, erigiu um novo e terceiro espaço ou mundo, vertical ao espaço/mundo do “Mesmo” e do “Outro”: o da linguagem não-discursiva – identificada com a produção literária moderna de Mallarmé, Bataille, Blanchot e Klossowski. Neste terceiro mundo, dobrando-se sobre si mesma, a linguagem pode falar acerca do “Outro” de uma maneira qualitativamente diferente do discurso do “Mesmo”. Neste espaço, o saber místico e esotérico, dominado pela epistémê clássica e moderna, se liberta. A linguagem bruta, selvagem e enigmática pode se expressar sem risco de ser silenciada ou dominada pela representação ou pela verdade do saber. É esta linguagem transgressiva que – ao levar o discurso ao seu limite, ao tornar impertinente as diferenças entre essência e aparência, entre significado e significante – tem o poder de conduzir o saber na direção ao reino do “Outro”, a privilegiada pelo nosso autor proto pós-moderno [25]. 

Embora a discussão de Machado e de Lash se circunscrevam à fase arqueológica da produção foucaultiana, os elementos que põem em jogo podem muito bem ser estendidos ao conjunto de toda elaboração foucaultiana, o que permite evidenciar, a despeito de todas as mutações operadas ao longo de sua obra, aquilo que se constituiu como projeto teórico-político sistemático deste autor. E aqui pode ser de grande valia analisar o conteúdo do pensamento foucaultiano à luz da crítica lukacsiana ao irracionalismo moderno, em especial aquela endereçada a Nietzsche.

 Não há, na obra foucaultiana, tal como em Nietzsche, qualquer simpatia pela era moderna. Contrapondo-se explicitamente à noção de progresso histórico, todos os seus principais livros, sem exceção, têm por meta denunciar o lado obscuro, violento e normativo da modernidade. Numa espécie de atenção pelo avesso das promessas da modernidade, Foucault antecipa o que, na entrada do século XXI, se tornará a tônica da argumentação pós-moderna: a condenação da Razão como responsável por todas as agruras que a sociedade moderna experimentou – a destruição ambiental, a opressão e a heteronomia. 

Assim, História da Loucura, publicado em 1961, não visa contar a história do progresso científico e/ou terapêutico do campo psi, mas apresentar o nascimento da psiquiatria como um processo de dominação que, por meio da humanização do tratamento dispensado a loucura, acentua e refina a sujeição dos loucos [26]. O Nascimento da Clínica, datado de 1963, busca demonstrar que a passagem da medicina clássica para a moderna não fora um produto do avanço de um conhecimento mais verdadeiro sobre a doença, mas resultado de uma mutação do discurso, vinculada à trajetória de uma consciência médica encarregada do controle e da coerção [27]. Em As Palavras e as Coisas, publicado em 1966, as ciências humanas são apresentadas como ciências “confusas e fracas” (RABINOW & DREYFUS, 1995: 20) [28] . 

Também as produções afinadas com a sua segunda fase – quando Foucault, numa perspectiva genealógica, começa a privilegiar o problema do poder – demonstram a mesma aversão à noção de progresso histórico. Vigiar e Punir, livro datado de 1975 e que não pode ser considerado como uma “litania do progresso”, segundo Rabinow & Dreyfus (1995: 158), apresenta o nascimento da prisão e da justiça penal como a constituição de uma técnica disciplinar que, deslocando a ação punitiva do corpo para o coração, o intelecto e a vontade [29], aperfeiçoa e alarga a dominação. O primeiro volume de História da Sexualidade, publicado em 1977 – contrapondo-se à tese de que a sociedade burguesa reprime a sexualidade – sustenta que o século XIX incitou o sexo a se manifestar e a se confessar [30], e que isto não correspondeu à afirmação da liberdade sexual; a abertura a uma variedade de sexualidades periféricas significou, ao contrário, a ampliação das instituições disciplinares,  ou seja, um controle muito mais meticuloso do indivíduo e da população.

Os volumes subseqüentes de História da Sexualidade, ambos publicados no ano de 1984, voltados para a questão do sujeito e da ética, embora pareçam sugerir, no último Foucault, a restituição positiva dos fundamentos da sociabilidade moderna e, conseqüentemente, do progresso histórico, corresponderam, na verdade, a um sensível deslocamento do seu pensamento [31] sem uma quebra correspondente da coerência de seu projeto teórico [32]. Ambos os livros, abordando as técnicas e práticas de si dos gregos até o século II de nossa era, ressaltam um processo de constituição do sujeito radicalmente distinto das técnicas modernas de sujeição. Tal processo corresponde a uma moral e a uma ética que, mesmo sendo austeras com relação ao sexo, não têm qualquer preocupação com o desvio ou com a prescrição normativa universal. Um tipo de ética de escolha pessoal, reservada apenas a uma elite que não objetivava curar ou transformar o sujeito, mas propiciar uma vida mais intensa e bela.

Aqui fica patente que a ética tematizada pelo último Foucault não passa, como em Nietzsche, de uma ética de um homem desistoricizado e dessocializado: uma ética que, voltada inteiramente para o interior, se desenvolve no meio puramente individual (LUKÁCS, 1968). Além disso, há, na última fase da produção foucaultiana, uma afinidade mais evidente ainda com a filosofia nietzscheana: a relação da ética com uma atitude estética diante da vida.

 Em contraposição à modernidade, Foucault, bem como Nietzsche, recorre à estética. Tal questão tem, para o conjunto da obra foucaultiana, uma importância capital. Ele a toma, como destaca Lash, como base para uma intervenção política crítica e combativa ao discurso moderno. A natureza política desta estética contradiscursiva se explicita não apenas na ênfase que as produções arqueológicas concedem a literatura. Ela exerce um papel fundamental também naqueles livros subseqüentes à fase arqueológica, quando o interesse foucaultiano pela linguagem literária esmorece (MACHADO, 2000: 121).

Em História da Loucura (1961) [32], escritores trágicos, como Artaud e Blanchot, são usados para enaltecer o parentesco da literatura com a experiência original da loucura, silenciada pela medicalização e psicologização do louco. Se a razão se constitui pela exclusão da loucura como alteridade, a literatura, como experiência limite da linguagem, como experiência transgressiva, se abre em direção ao desvario. 

As Palavras e as Coisas (1966) ressalta os nexos existentes entre o caráter transgressivo da linguagem literária e a epistémê do século XVI. Esta última seria portadora de um saber que, ao mesmo tempo ambivalente e movediço, pletórico e monótono, não ambicionava ser o reflexo das coisas ou enunciar a verdade do mundo, mas, ser, antes, um mistério, um enigma. Foucault não só descreve a epistémê do Renascimento, mas inebria-se com ela. Sorve-a como modelo que pode realizar uma dupla tarefa: desconstruir a epistémê moderna e indicar seu futuro possível, sua transposição por um saber ancorado na morte do homem. Tal epistémê e a literatura moderna de autores nietzscheanos serão o ponto arquimediano para avaliar e desfazer as ilusões que a modernidade produziu e buscou encobrir como verdade.

É nesta perspectiva de valorização do místico e do divino [34] em contraposição ao racional e ao objetivo que Foucault saúda a grandeza de uma forma de conhecimento que permitiu a livre expressão daquilo que denominou como o ser da linguagem – “ser enigmático, monótono, obstinado, primitivo”, cintilante numa dispersão infinita (FOUCAULT, 2002b: 59) – silenciado e dominado pelo discurso da idade clássica e o saber racional moderno. Somente a literatura moderna do século XIX que se põe numa perspectiva contra-discursiva tem o poder de repor este ser. Elidindo a tarefa de comunicar um sentido e buscando ser apenas espelho de si mesma [35], a literatura contesta o estatuto da linguagem tal como existiu na época clássica e na era moderna. É, portanto, como resistência ou como alternativa ao pensamento antropológico moderno que a literatura é valorizada pela arqueologia foucaultiana. 

Nos anos 70, a literatura deixa de ser pensada como um saber localizado nas margens do discurso, momento em que Foucault se sente “cada vez menos tocado” pela escrita literária e “se interessa cada vez mais pelos discursos anônimos, como o dos loucos, dos presos, dos operários” (MACHADO, 2000: 125). No entanto, a tentativa da genealogia foucaultiana de identificar a transgressão, não mais em personagens literários, mas em sujeitos concretos da vida real não significou um abandono completo da estética, mas a sua supervalorização. Tanto é assim que a ética à qual Foucault dedica seus últimos anos de vida, mantém uma relação explícita com a questão estética. Nos dois últimos volumes de História da Sexualidade (1984) a ética que o inspira, a dos estóicos, se traduz, no seu modo de ver, na busca da arte do governo de si [36].

Considerando todos esses elementos, podemos estabelecer uma clara analogia entre o significado da obra de Foucault e a de Nietzsche. Sob a luz da filosofia nietzscheana, o projeto foucaultiano pode ser lido como uma investigação que, a despeito de todos os seus deslocamentos temáticos, conceituais e metodológicos, buscou fazer o homem moderno despertar de seu sonho (não seria pesadelo?) antropológico. A finalidade central de sua obra foi sempre: o estilhaçamento do homem e do humanismo. Tal objetivo tem uma inspiração evidente na idéia nietzscheana da morte de Deus. Como Nietzsche, Foucault interpreta o humanismo como uma espécie de divinização do homem, quando na era moderna – na constituição dos saberes antropológicos – valores humanos, demasiadamente humanos, tomaram o lugar de Deus [37].

É na força da presença desta ideia de um mundo desdivinizado e de um homem divinizado que podemos elucidar a estreita relação entre a filosofia e a religião que há na concepção de mundo de Foucault. A religiosidade foucaultiana se expressa, tal como em praticamente todas as tendências irracionalistas modernas, enquanto uma religiosidade atéia (LUKÁCS, 1968). 

Mas como Foucault não é um irracionalista explícito, sua concepção religiosa do mundo não se anuncia diretamente como busca da construção de uma nova religiosidade e, sim, como uma clara contraposição a uma concepção antropocêntrica do mundo, portanto, como uma explícita radicalização da proposta nietzscheana de destruição do homem demasiado humano. Num pensador como Foucault, que não admite o irracionalismo explicitamente, isto é, que não incorpora a intuição como um método intelectual, mas ao contrário busca propor um racionalismo supramoderno, uma concepção mística irracionalista do mundo só pode se apresentar por meios indiretos, como a valorização do trágico ou de uma ética colados a uma postura esteta de valorização da arte[38]

 Tanto em Nietzsche como em Foucault a morte do universo teológico e cosmológico são apreendidas como sintomas de uma decadência e alimentam a crítica à ciência, à democracia e à modernidade. Mas há muito mais coisas em comum entre os dois: ambos, numa espécie muito singular de neotradicionalismo, afirmaram o trágico como contraponto da moral [39]; ambos foram profetas de uma perspectiva fatalista, de uma doutrina do eterno retorno que exclui qualquer possibilidade de transformação social radical; ambos levaram o niilismo ao extremo ao sustentar que não existia a idéia de verdade e da “coisa em si”; ambos praticaram uma autocontradição permanente e mantiveram uma ferrenha aversão a qualquer noção de sistema.

Contudo, o mais fundamental, de todas estas semelhanças tão evidentes, descritas acima, é avaliar em que medida o pensamento foucaultiano se aproxima do mandato social cumprido pela filosofia nietzscheana. Para Lukács (1968), a coesão sistemática na produção filosófica de Nietzsche, o que serve de centro de unidade em seu pensamento, é a repulsa do socialismo. Polemizando constantemente contra o marxismo, Nietzsche se tornou modelo e guia da reação filosófica irracionalista burguesa no período do imperialismo clássico.

Tomando a história da filosofia não como simples história das idéias filosóficas e das personalidades que a compõem, mas como expressão da trajetória real do desenvolvimento social, das lutas de classes, Lukács (1968: 3) vai mais adiante em suas considerações. Sua assertiva é muito clara: toda etapa importante “do irracionalismo nasce como respostas reacionárias aos problemas colocados pela luta de classes”, nasce “como oposição a uma fase de desenvolvimento da dialética” (Idem, ibid., p. 8 e 132) [40]

Um exame atento da produção de Foucault, inclusive de sua trajetória política nos anos 70 e 80 [41], permite afirmar com certa segurança que, a despeito de sua passagem curta pelo PCF e de sua tentativa em fundir Marx e Nietzsche, todas as suas energias endereçaram-se para uma crítica recorrente ao socialismo e ao materialismo crítico-dialético. Portanto, tal como o irracionalismo alemão do período imperialista clássico, o neo-irracionalismo foucaultiano travou uma luta permanente contra o projeto societário socialista revolucionário. 

Como uma filosofia de reação, a obra foucaultiana buscou se constituir como uma alternativa à fase mais desenvolvida da dialética em sua época: a concepção da teoria social marxiana como uma ontologia do ser social que se expressa na produção madura de Lukács – aquela que, elaborada a partir de meados dos anos 30 e marcada por uma clara impostação ontológica, trava um combate não somente contra “o dogmatismo do marxismo oficial da era stalinista mas também contra as tendências irracionalistas operantes na filosofia ocidental” (NETTO, 2004a: 147) [42]. 

Uma breve comparação entre a produção do filósofo francês e a produção da fase madura de Lukács confirma nossa assertiva. Foucault concentrou sua atenção na filosofia, se preocupando recorrentemente com os problemas da cultura, da arte e mais tarde com a ética – temas presentes também no conjunto da obra lukacsiana. Entretanto, enquanto o primeiro abordou todos estes temas numa perspectiva essencialmente epistemológica e antimoderna, o segundo, desde a década de 30, os tomou numa clara direção ontológica que resgata o projeto humanista revolucionário de Marx, raramente incorporado por aqueles que se proclamaram herdeiros de seu legado. Foi nesta direção que Lukács (1979) pôde restituir a importância capital da filosofia para uma compreensão mais apropriada da ontologia do ser social presente em Marx [43]. 

Porém, é preciso destacar aqui o giro que a obra foucaultiana operou em face do legado nietzscheano. Se Nietzsche fora um pensador irracionalista abertamente reacionário, defensor da dominação de classe e das desigualdades sociais que – por meio da liberação de instintos bestiais e animalescos – ofereceu uma ética imoral e belicosa à renovação da dominação burguesa no período clássico do imperialismo [44], Foucault inscreveu o irracionalismo e a luta nietzscheana contra toda moral no campo dos anseios históricos da esquerda, portanto, em meio aos gritos de protestos contra a dominação e a opressão. 

Partindo da premissa de que a filosofia não está acima da vida real, que o mundo das idéias não se constitui à parte daquele feito por homens de carne e osso, é importante destacar que a mudança que Foucault empreende na produção nietzscheana corresponde a uma mutação operada também nas lutas de classes de sua época. Aliás, a posição original que a obra foucaultiana ocupa na trajetória do irracionalismo que irrompe na segunda metade do século XX não resulta apenas do seu inegável talento pessoal, mas, sobretudo, da situação histórica existente na época em que atuou. 

Vimos que, desde o fim da Segunda Guerra até início dos anos 60, a França “gozou de uma supremacia cosmopolita no universo marxista” [45]. No entanto, a partir desta data ela se constituiu no palco central da Europa de uma forte irradiação da reação intelectual ao marxismo. Foi em território francês que a dominância marxista sofreu o seu pior baque. Foi aí que o estruturalismo encontrou a sua pentarquia. Foi também nesta pátria que “o estruturalismo, como uma fênix, ressurgiu, extenuado e retocado, como pós-estruturalismo” (ANDERSON, 2004). Mas o fato decisivo desta derrocada não se deveu a superioridade intelectual da cultura estruturalista/pósestruturalista. Ela fora, em grande parte, determinada pelos sucessivos e duros golpes que a esquerda sofreu neste período.

Mesmo considerando que a revolta contra o capital e as aspirações revolucionárias entre 1968-76, não se circunscreveram à França – ao contrário, a história mostra que elas se generalizaram por quase todos os cantos do planeta, impulsionadas pelas expectativas de reformas no comunismo soviético; a luta pela descolonização no Terceiro Mundo; o abalo de importantes fortalezas do domínio imperialista, gerado por uma série de levantes revolucionários na Indochina, em Cuba, no Egito, na Argélia e na Angola e a esperança de que a Revolução Cultural de Mao garantisse uma via de superação do capital alternativa ao stalinismo -, não há como negar que foi neste país em particular, conhecido como epicentro da rebelião estudantil, que a derrota do projeto socialista revolucionário encontrou a sua expressão mais aguda. 

E, Foucault, mais do que os outros neonietzscheanos franceses, soube captar e formular em sua obra alguns dos traços permanentes mais importantes da conduta que se erigiu entre a esquerda logo após esta derrota.  Por um lado, sua ênfase no saber-poder permitiu, pela primeira vez, a aparição no debate teórico de demandas legítimas daqueles segmentos marginais e/ou humilhados do Welfare State que emergiram em 60 – dentre eles os loucos, os presos e os homossexuais [46]. Por outro, seu anticomunismo e seu gosto pela transgressão se mostraram inteiramente compatíveis com a tendência à conversão das energias de contestação para as margens do sistema. 

Ao converter a tarefa da filosofia crítica na recusa do que somos, ao privilegiar a investigação da insanidade e da ilegalidade como formas de resistência ao poder, ao elevar a importância das lutas imediatas e anárquicas, em detrimento, da esperança num futuro revolucionário e no fim das classes (FOUCAULT, 1995), a filosofia foucaultiana cumpriu o mandato social de oferecer, numa ambiência política sem nuances, a alternativa de uma oposição reconfortante para grande parte de uma intelectualidade que, embora descontente com o sistema vigente, passou a descrer na possibilidade da ultrapassagem do capitalismo. 

Guardando muitas semelhanças com um não-conformismo individualista propagado pela ideologia anticomunista da Guerra Fria [47], a alternativa transgressiva de Foucault conseguiu combinar rebeldia individual e resignação social[48]; o que, na passagem dos anos 80 para os 90, com o fim do socialismo real, despontará falaciosamente no horizonte da esquerda como o único e o mais sensato modo de pensar e agir. Neste momento, morto, o niilista de cátedra não pôde ver a grande ressonância que suas idéias tiveram não com a força, mas com a fraqueza da esquerda.

Enfim, o principal alvo do pensamento foucaultiano é o núcleo revolucionário produzido pela etapa progressista do pensamento filosófico do século XIX. Ao pretender despertar o pensamento contemporâneo do “sono antropológico” lançado pelo século XIX, o que Foucault, na verdade, objetou foi a crítica racional e humanista que tem sua base na concepção materialista da história (COUTINHO, 1972:164). E é justamente aí que repousa o seu conservadorismo e sua afinidade com o pensamento libertário hegemônico, na atualidade, entre setores da esquerda [49].

4.3 – A RAZÃO NO JOGO DE ESPELHOS DE FOUCAULT OU DE COMO NO FUNDO DO JOGO FOUCAULTIANO APARECE A RACIONALIDADE MISERÁVEL DO FILÓSOFO. 

O desafio que nos propomos aqui é oferecer uma explicação plausível da particularidade do irracionalismo operado por Foucault, em especial, a versão claramente racionalista de desconstrução da Ratio moderna que seu pensamento elabora. Como poderia Foucault ser ao mesmo tempo racional e irracionalista? A resposta possível para esta dificuldade parece ser a de pensar o sistema foucaultiano como uma variante bastante singular daquela orientação filosófica que Coutinho (1972) denominou de “miséria da Razão”. Uma versão que condensa, ao mesmo tempo, aspectos do irracionalismo moderno, orientação filosófica que Lukács (1968) designou de “destruição da Razão”, com uma forte dose de uma racionalidade miserável, de tipo estruturalista. Nossa hipótese é de que Foucault opera uma crítica à razão moderna numa espécie de jogo de espelhos aparentemente subversivo, e que os limites desse jogo foucaultiano, embora sugiram a constituição de uma nova racionalidade, uma racionalidade supraracional, mais rica e ampla que aquelas que a era moderna possibilitou nascer, não escapam de uma análise crítica mais apurada de seus fundamentos.

Sob um claro referencial lukacsiano, Coutinho (1972) demonstra com precisão o denominador comum entre a “destruição da Razão” e a “miséria da Razão”. Visivelmente opostos do ponto de vista filosófico, irracionalismo e racionalismo formal têm uma atitude similar em face do problema da Razão. Ambas negam que a totalidade do real possa ser objeto de uma apreensão racional e operando com um conceito limitado da Razão – reduzindo-a a mera intelecção, a um conjunto de regras formais subjetivas – tornam irracionais todos os momentos significativos da vida social [50] . 

Irracionalismo e racionalismo formal correspondem, portanto, a variações de um pensamento fetichizado, isto é, um pensamento que, incapaz de apreender a totalidade concreta, preso a imediaticidade dos fatos, se fixa no dilaceramento histórico da vida social provocado pela alienação capitalista. Sua cisão em duas orientações filosóficas aparentemente antagônicas lembra as duas cabeças de Janus, mas a bipartição das faces não anula a unidade do corpo: tanto a perspectiva da destruição quanto a da miséria da Razão podem ser tomadas como posições teórico-ideológicas conservadoras. Como variantes de uma “filosofia da decadência” [51], ambas operam um abandono mais ou menos integral das conquistas filosóficas empreendidas por um pensamento burguês revolucionário [52] que, indo dos renascentistas a Hegel, orientava-se no sentido da elaboração de uma racionalidade humanista e dialética [53].

Essa duplicidade de orientações aparece mais claramente, no período de suas elaborações iniciais, logo após a deflagração da Revolução Francesa, quando emergem o anticapitalismo romântico e a apologia vulgar do progresso capitalista (COUTINHO, 1972: 31 a 40): enquanto a primeira somente enxergava nas formas econômicas a causa de uma ameaça mortal para a subjetividade espiritual do homem, a segunda, negando a contraditoriedade objetiva da economia capitalista, afirmava sua tendência ao equilíbrio e ao progresso linear. 

Todas as filosofias ligadas à “destruição da Razão” – do irracionalismo de Kiekeegaard ao do primeiro Sartre – podem ser concebidas como manifestações do anticapitalismo romântico. Todas, ao mesmo tempo em que denunciavam a realidade social, considerada como fonte de desumanização e de dissolução da subjetividade, rejeitavam a Razão por confundi-la com as regras intelectivas formais predominantes nas práxis técnica e burocrática [54] .

Essa visão limitada da Razão, esteve presente também naquelas orientações filosóficas vinculadas à “miséria da Razão”. Todavia, sua base de argumentação corresponde à apologia vulgar do capitalismo. Afastando de suas preocupações qualquer referência à objetividade das contradições do capitalismo e transformando a filosofia em pura epistemologia, tal perspectiva filosófica não apenas limita a validade da Razão àqueles domínios do real que podem ser homogeneizados, formalizados e manipulados, também condena como irracionais e incognoscíveis todos os momentos ontológicos da realidade [55]. Por essa via, a Razão deixa de ser a imagem da legalidade objetiva da totalidade do real, para ser reduzida a regras formais formais que manipulam arbitrariamente dados extraídos do todo objetivo, a um tipo de racionalidade que desempenha um papel destacado na dominação da natureza. [56]

Essa versão empobrecida da razão tem como primeiro representante consciente Augusto Comte, cuja indicação metodológica postula o abandono do exame da gênese dos fenômenos sociais em troca da ênfase na descrição de suas leis invariáveis de manifestação, isto é, a metodologia positivista substitui a pesquisa da essência ontológica do real pela reprodução imediata e aparente do objeto [57]. Tal princípio também comparece no estruturalismo, versão moderna da “miséria da Razão”. Como o positivismo, o estruturalismo toma a história como algo superficial e irracional. 

Mas não é somente a gênese histórica que as diferentes versões da racionalidade miserável vedam à Razão, também a finalidade social dos atos humanos vai sendo progressivamente afastada do domínio da racionalidade. Dürkheim, ao tratar os fenômenos sociais como “coisas”, tal como o faz a burocracia, despoja-os daquilo que lhes confere especificidade: o momento criador da práxis, a teleologia como forma de causalidade superior. Ao sustentar que o fim último das ciências sociais é dissolver o homem, o estruturalismo, como versão moderna da miséria da Razão, leva mais longe esse agnosticismo.

Para Coutinho, Michel Foucault foi um típico pensador desta versão moderna da racionalidade miserável. Ao aprofundar os princípios estruturalistas de LévisStrauss, o pensador francês formulou uma concepção de mundo radicalmente antihumanista e agnóstica (COUTINHO,1972: 144). Acentuando ainda mais a identidade da Razão com as regras intelectivas [58], Foucault pôde levar a cabo a transformação do homem num puro objeto manipulado. 

Coutinho (1972) confirma a semelhança entre o método arqueológico de Foucault e o método estrutural de Lévi-Strauss. Tanto a estrutura do segundo, quanto a epistémê (ou sistema, ou discurso ou, ainda, o a priori histórico) do primeiro, são objetivações fetichistas do intelecto formal, esquemas e regras mentais, que manipulam o pensamento e a vida social dos homens concretos. Ambos são agnósticos em face da história. (COUTINHO,1972: 147).

Contudo, mais radical que Lévi-Strauss, o a priori histórico foucaultiano não apenas recorta um campo de saber possível, define também o modo de ser dos objetos. A epistémê, como uma espécie de ente, um nível mais profundo e arqueológico, toma o lugar da práxis criadora do homem concreto [59].

Outra diferença com relação a Lévi-Strauss que indica a radicalização agnóstica empreendida pelo filósofo francês – o que pode levar à crença equivocada de que a historicidade objetiva tenha algum papel relevante em sua concepção de mundo -, diz respeito ao caráter mutável da sua epistémê. Enquanto a estrutura do primeiro é eterna e imutável, a epistémê foucaultiana altera-se no tempo. Entretanto, as transformações da epistémê não têm a menor relação com a história real dos homens, das classes sociais, nem tampouco com o progresso do pensamento. Suas mutações são descritas de um modo claramente positivista, isto é, apenas como manifestações bruscas e irracionais de uma reviravolta arqueológica [60].

O anti-historicismo se revela, ainda em A Arqueologia do Saber (1969), quando no lugar de uma história concebida como uma totalidade concreta e dialética, Foucault faz emergir uma história fragmentada, marcada pela descontinuidade, cujas séries temporais se sucedem sem qualquer vínculo com causalidades ou legalidades históricas [61] . 

A introdução dessa pseudo-historicidade por Foucault desempenha, segundo Coutinho (1972), uma função importante no processo de radicalização da “miséria da Razão”. Através dela, a sucessão das epistémês pode aparecer mistificadamente como uma necessidade histórica, como uma inquestionável positividade. É por meio dela que Foucault “combate qualquer concepção dialética da história – inclusive a autêntica concepção materialista de Marx – que veja a historicidade como síntese de contínuo e descontínuo, como produto da práxis humana objetiva” (COUTINHO, 1972: 152). 

Fiel à perspectiva da “miséria da Razão”, Foucault substitui a ontologia pela epistemologia. O idealismo de seu método arqueológico se revela quando, em As Palavras e as Coisas (1966), o conceito de produção – central à economia política clássica e ao marxismo – é tomado como pura expressão de uma mudança na epistémê, sem qualquer relação com o fato de ter surgido na vida real um sistema econômico que tem pela produção seu objetivo central. Ou, ainda, quando o homem é apresentado como uma demiurgia do saber moderno, sem que se cogite que tal questão corresponda a uma resposta teórica, adequada ou não, aos novos problemas sociais e humanos provocados pela Revolução Francesa e pelo surgimento do movimento operário (COUTINHO, 1972: 157 e 158).

Mas é possível ir além das questões acertadamente indicadas pela crítica de Coutinho (1972), Até mesmo porque escaparam à análise do autor as publicações foucaultianas posteriores a sua fase arqueológica. 

Ao considerar o projeto teórico foucaultiano em sua totalidade, é razoável dizer que a radicalização do agnosticismo e do anti-humanismo permitiu a Foucault operar uma junção entre as correntes da “destruição da Razão” e da “miséria da Razão”. Usando a mesma metáfora de Coutinho (1972), se pode dizer, então, que o pensador francês, operando com um conhecimento extremamente fetichizado do real, pretendeu comportar em seu corpo filosófico as duas cabeças de Janus. Esta junção só fora possível pela exacerbação daquilo que é comum às duas variantes da filosofia decadente: o agnosticismo, que a obra foucaultiana eleva a quinta potência. Foi dessa forma que Foucault pôde apresentar-se – e ser acolhido por toda uma geração – como o portador de uma nova filosofia, uma filosofia que, parecendo romper com os estreitos limites do saber moderno, oferece fartos argumentos pósmodernos. 

Assim sendo, Foucault pode ser compreendido tanto como um pensador ligado à “destruição da Razão” quanto um filósofo vinculado à “miséria da Razão”. Aprofundando a identificação reducionista da Razão ao intelecto, a obra foucaultiana, por meio de uma forma sui generis, pela via da racionalidade miserável, deu continuidade à perspectiva da “destruição da Razão”. 

A singularidade de Foucault frente aos demais filósofos irracionalistas, adeptos da “destruição da Razão”, reside, sobretudo, no fato de sua contraposição à Razão não conter qualquer apelo à restituição de uma subjetividade autêntica; simplesmente porque, para ele, que era um confesso neonietzscheano, o homem não devia ser o fundamento de nada, o homem devia morrer. Para tanto, Foucault teve que banir das versões irracionalistas que compuseram o legado da “destruição da Razão” as noções da “essência do ser”, do “tempo vivido”, de um “sujeito autêntico” – noções que, aludindo a um humanismo, ainda que abstrato e ahistórico, reclamavam por uma verdade profunda do homem. Diferente dos demais pensadores que compõem a “destruição da Razão”, Foucault não denuncia a realidade social como fonte de desumanização ou de dissolução da subjetividade; o que ele considera inautêntico é a construção da noção do homem, é o próprio humanismo.

É curioso notar como Foucault inverte aquilo que o irracionalismo no período imperialista clássico valorizou. Lukács (1968: 155 e 156) demonstra como o irracionalismo moderno representado pela “filosofia da vida” ressaltou o tempo – princípio de vida – em detrimento do espaço – princípio do que não vive, do morto. Ao contrário, a filosofia foucaultiana privilegiou o espaço, quer seja, nos anos 60, através da relevância concedida às estruturas epistêmicas, ou na década seguinte, quando constitui uma concepção panóptica do poder. A razão desta inversão é muito clara. Ao tomar o espaço nos mesmos termos postos pelo irracionalismo que o antecedeu, Foucault coerente com seu anti-humanismo, buscava expurgar da vertente filosófica irracionalista toda e qualquer forma de transcendência, o que em A Arqueologia do Saber (1969) apresentou como a tarefa de “libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental” (FOUCAULT, 2002a: 230) [62]

Todavia, com esse irracionalismo Foucault manteve uma afinidade essencial. Tal como a perspectiva da “destruição da Razão”, o pensamento foucaultiano mostrou um enorme desprezo pelas mediações sociais. Mesmo não sendo um defensor da subjetividade, o filósofo francês rejeitava o mundo da comunidade social, da vida vivida na objetividade. Foi esse ódio às mediações sociais que permitiu a Foucault retomar o sujeito em suas últimas produções. Coerente com sua fase arqueológica, a terceira fase da produção foucaultiana continua a repudiar o indivíduo social. O que o último Foucault restitui é o indivíduo como mestre de si mesmo. Numa espécie de ateísmo religioso, próprio das correntes que compõem a “destruição da Razão”, sua concepção de mundo alude a uma vida religiosa na qual o indivíduo é divindade de si mesmo. 

Já em face dos pensadores vinculados à “miséria da Razão”, a excepcionalidade de Foucault diz respeito à amplitude e ao grau de seu agnosticismo. Semelhante aos autores  que compuseram a vertente da “miséria da razão”, a obra foucaultiana opera com uma racionalidade reduzida a regras formais típicas de uma racionalidade burocrática capitalista. Entretanto, se os demais racionalistas miseráveis preocupavam-se em reservar algum grau de validade ao conhecimento científico e racional – mesmo que ao preço do afastamento do domínio da Razão de todos aqueles conteúdos afetos à ontologia do ser social – Foucault, estendendo ao máximo a racionalidade formal manipulatória, obstinava-se em fundar a total impossibilidade de um conhecimento racional sobre o real. Não há no pensamento foucaultiano qualquer reivindicação por racionalidades parciais, ou por esferas limitadas de cientificidade. Ao contrário, o que seu projeto filosófico pretendeu sistematicamente colocar em xeque foi a faculdade potencial humana de conhecer o real em sua objetividade.

Vimos como sua concepção de epistémê, funcionando como uma espécie de estrutura transcendente, toma o lugar dos sujeitos históricos concretos. Mais tarde, em sua fase genealógica, quando Foucault formula a hipótese de um biopoder [63], o filósofo francês nos fornece uma versão diferenciada da mesma perspectiva manipulatória que formulara outrora [64]. A despeito de seu esforço em oferecer em suas análises alternativas de resistência à dominação, sua concepção pancrática do poder, que tudo envolve e domina, se revela como um algo tão tenebroso e monolítico quanto aquele descrito em sua fase arqueológica, sobretudo, porque sua genealogia sustenta uma concepção de um poder transcendente sem sujeito [65]. 

Se o estruturalismo em face das versões anteriores da “miséria da Razão” teve a faculdade de juntar à miséria da metodologia, a miséria do objeto (COUTINHO, 1972: 65), a obra foucaultiana, esgarçando ao máximo essa orientação filosófica, se propôs dissolver o objeto da filosofia. Tal dissolução em Foucault se deu por meio de uma radicalização extremada do epistemologismo do estruturalismo. 

Ao conceber a realidade social como um conjunto de sistemas simbólicos, ou de formas de comunicação, e a lingüística como a ciência básica capaz de esclarecer o modo de ser da realidade social, os estruturalistas transportaram o debate filosófico do plano da ontologia para epistemologia. Ao invés de enfatizarem uma análise do objeto, se concentraram na descrição formal dos processos racionais.

Como os demais pensadores da “miséria da razão”, Foucault substitui a ontologia pela epistemologia. Porém, numa perspectiva ainda mais agnóstica, busca empreender uma epistemologia da epistemologia, ou seja, seu projeto teórico não se propõe uma análise formal dos limites do conhecimento, mas uma crítica das condições do conhecimento [66] que acaba dissolvendo todos os nexos objetivos com a realidade objetiva. 

Em As Palavras e as Coisas (1966), o pensador francês não só saúda a lingüística como uma perspectiva filosófica sem sujeito; há também, como vimos anteriormente, nas críticas dirigidas contra as epistémês clássica e moderna, uma tentativa de resgatar a importância da linguagem como uma forma de ser primitivo e místico que se expressava livremente no Renascimento. Há, portanto, no pensamento foucaultiano, a ambição de fundar em bases essencialmente epistemológicas uma “ontologia do ser da linguagem” (MACHADO, 2001). [67] 

Por meio da hipertrofia do epistemologismo estruturalista, Foucault desenvolve aquilo que será mais tarde a base da cultura pós-moderna. Preso a um mundo simbólico auto-referente, a um jogo de espelhos no qual a razão miserável se torna a medida de tudo, o pensamento foucaultiano anula a realidade e funda aquilo que sustentará a principal premissa pós-moderna: a de que a verdade ou a objetividade científicas são apenas produtos virtuais do saber. 

Pela via de um acentuado agnosticismo, o sistema foucaultiano joga a Razão num jogo de espelhos, isto é, tomando “a razão instrumental como o único padrão de racionalidade possível e existente na sociedade capitalista” (GUERRA, 1993: 107), Foucault confronta a racionalidade miserável consigo mesma e, assim, elide a possibilidade de, pela verdade e validade científicas, retratarmos a objetividade do real. É interessante notar a semelhança deste jogo de espelhos com a definição da cultura pós-moderna feita por Harvey (1996: 291 a 396). Segundo o autor, tal cultura pode ser compreendida como o “espelho dos espelhos”, isto é, como cultura que, imersa no fetiche do capital, abandona os fundamentos materiais e políticoseconômicos do real e, assim, considera, equivocadamente, as práticas políticas e culturais como algo autônomo e auto-referente [68]

A radicalização do agnosticismo no sistema filosófico foucaultiano tem estreita relação com a inteira absorção do consumo pelo processo capitalista, na segunda metade do século XX, quando a manipulação domina todas as expressões da vida social. Foucault soube captar os riscos deste momento. Sua obra expressa o quanto a manipulação ameaça a humanidade do homem, tendendo a destruir sua racionalidade crítica, a convertê-lo numa coisa sem vida. Porém, o filósofo francês, preso à racionalidade formal, acabou por transformar este processo real, histórico e mutável num fetiche, algo intransponível e ontológico (COUTINHO, 1972: 145, 158 e 159).

O problema aqui é que Foucault, como portador de uma versão mais atualizada da filosofia da decadência, reduz a Razão a apenas uma das formas pelas quais a consciência conhece o mundo: a intelecção ou entendimento. Deixando de fora a Razão dialética, o sistema filosófico foucaultiano se aferra a uma modalidade operativa racional essencialmente limitada, cujos procedimentos dedutivos e lógico-matemáticos que lhes são próprios – a distinção, a classificação, a decomposição de conjuntos em suas partes – deixam escapar a dinâmica contraditória e processual dos fenômenos (NETTO, 1994). 

O pensamento foucaultiano é duplamente inundado pela intelecção. Por um lado, Foucault raciocina no puro nível do entendimento. A todo tempo, como um típico positivista ele recorta e classifica o real – ora em epistémês, ora em técnicas de poder ou, ainda, em formas de experimentar o sexo ou de cuidar de si. Por outro, toda sua obra visa conscientemente vulnerabilizar a Razão. Seus principais livros podem ser lidos como histórias que denunciam a manipulação da loucura, da morte, do conhecimento sobre os homens, do delinqüente e do sexo. Em todas estas histórias, a Razão, reduzida à sua versão mais empobrecida, é condenada como responsável pelas agruras que a era moderna conheceu. Reduplicada num espelho, a “razão miserável” de Foucault tem um efeito devastador: ela não só esgota e reduz a racionalidade aos comportamentos manipuladores, ela consome o inteiro mundo dos homens em regras manipulatórias.

Como toda e qualquer ideologia, a filosofia de Foucault não é inocente. Ao tomar o partido do agnosticismo radical, ao inscrever os anseios da esquerda na reação filosófica burguesa, seu pensamento contribui muito mais para entorpecer as forças vivas de contestação à ordem social burguesa do que para fortalecê-las.

Notas:

[1] Se Harvey (1997) e Lash (1997) concordam quanto ao pertencimento de Foucault ao campo do pós-modernismo, no que diz respeito ao posicionamento dos autores sobre a pertinência das teses pós-modernas só há divergências. Enquanto o primeiro é um ardoroso crítico das argumentações pós-modernas, o segundo nutre grande simpatia pelas mesmas. Do outro lado, Rouanet (2000) se sintoniza com Santos (2001) quando crítica a hipótese de um Foucault pós-moderno, mas o primeiro, ao contrário do segundo, não é nem de longe um adepto do pós-modernismo. O curioso, em todo este imbróglio, é como Rouanet utiliza o pensamento foucaultiano para erigir uma via alternativa de defesa da modernidade e do Iluminismo.

[2] É este proto pós-modernismo que permite ao filósofo francês discordar formalmente do ponto de partida das argumentações pós-modernas, mas convergir com suas conclusões antimodernas e contra-iluministas.

[3] Mesmo o leitor mais imparcial poderá perceber, nesta entrevista, que Foucault usou de todos os artifícios para escapar da pergunta se se considerava um pensador pós-moderno. A princípio, alegou não saber ao certo o significado do termo, nem tampouco o que era para os alemães a modernidade. Todavia, frente à insistência do entrevistador – que, inclusive, se deu ao trabalho de recuperar as teses centrais de Lyotard, desenvolvidas em A Condição Pós-moderna, e as acusações que Habermas desferiu contra ele, qualificando-o como um dos principais representantes do neoconservadorismo pós-moderno – Foucault reavivou a memória. Disse ter sido convidado a participar de um debate com Habermas sobre a modernidade, sem, no entanto, explicar porque recusara o convite. Logo em seguida, destilou suas críticas às principais argumentações pósmodernas. 

[4] A relação da arqueologia foucaultiana com o positivismo é bastante complexa, mas nem por isto imune a seus efeitos teóricos regressivos, eminentemente, conservadores. Habermas demonstra como o esvaziamento do sujeito pretendido pela arqueologia foucaultiana anda de mãos dadas com a naturalização da história. Foucault pretendeu fundar uma historiografia ao mesmo tempo anticientífica e anti-humanista, ou seja, uma historiografia que – ambicionando empreender, por um lado, uma crítica da razão e, por outro, a negação dos “conceitos básicos da filosofia do sujeito que controlam não apenas o modo de acesso ao domínio do objeto, mas também da história” (HABERMAS, 2000: 352) – objetivava denunciar a violência e a coerção dos argumentos com pretensões de verdade e validade, visava revelar a vontade de verdade como um pérfido mecanismo de exclusão (Idem, ibid., p. 347). Para tanto, fixou-se tão somente no interior do discurso, isto é, exigindo do próprio historiador a auto-extinção radical do sujeito cognoscente, pretendeu se por à serviço somente da objetividade da pura análise estrutural (Idem, ibid., p. 389). Todavia, os efeitos deste positivismo anticientífico e anti-humanista, que ambiciona, ao mesmo tempo, tornar as práticas do poder acessíveis a uma análise empírica e eliminar a problemática da validade, acabou enredando suas pesquisas na autorreferencialidade.

[5] A caracterização do presentismo pós-moderno como um mergulho do presente “no passado por uma relação puramente museográfica, sem se ligar aos delineamentos da definição de um futuro”, feita por Dosse (1993: 395) ilustra muito bem o significado da historiografia foucaultiana. Se todas as referências bibliográficas, sem exceção, dos principais livros de Foucault – História da Loucura, Vigiar e Punir, e o primeiro volume de História da Sexualidade: A Vontade de Saber – remetem a um passado bastante longínquo do tempo real de existência do seu autor (segunda metade do século XX), não é porque o filósofo francês intencionava revisitar o passado “numa perspectiva  reconstrutora” (Idem, ibid., p. 395), nem tampouco objetivava “a busca das origens para desenvolver as potencialidades do devir, mas a simples recordação do universo dos signos do passado que sobrevive no presente imutável” (Idem, ibid.). 

[6] É, no mínimo, perturbador que Rouanet (2000) se recuse a considerar Foucault um pensador contra-iluminista e conservador, pelo simples fato do filósofo francês não professar um irracionalismo aberto, como aquele tipicamente clássico, que evocava, em contraposição à Razão, “um princípio transcendente, de validade mais alta, como a intuição, a sensibilidade ou o élan vital” (ROUANET, 2000: 207). Todavia, o equívoco de Rouanet, quanto ao pensamento foucaultiano, não decorre da dificuldade do autor em tela em identificar o fundo irracionalista da historiografia crítica e racional de Foucault, mas da consideração, profundamente generalista, e, portanto, falsa de que: “a razão é sempre crítica, e o irracionalismo é sempre reacionário” (Idem, ibid., p. 204). Ora, o que Rouanet, em toda a sua erudição, deixa escapar é que Comte e Dürkheim, nem de longe passíveis de serem identificados como críticos da ordem burguesa, foram legítimos representantes de uma razão miserável e que o irracionalismo, também, comporta, em certa medida, uma crítica ao capitalismo, ainda que o limite desta seja a de um anticapitalismo romântico e que, no “frigir dos ovos”, ela sirva como uma apologia indireta ao status quo

[7] Para que não paire qualquer dúvida acerca da racionalidade privilegiada pelo sistema foucaultiano, deixemos que Foucault fale sobre seu trabalho. Assim sendo, podemos verificar que, excetuando a crítica de ter priorizado a análise das estruturas, tudo o mais da análise habermasiana que compatibiliza a sua historiografia com o positivismo (neutralidade axiológica; tara por uma análise empirista e descritiva; racionalidade meramente classificatória voltada para desvendar a funcionalidade dos fenômenos, mas não a sua origem, e opção por uma lógica formal, explicitamente contrária à dialética) é corroborado. Na entrevista “Michel Foucault explica seu último livro“, concedida a Magazine littéraire, em 1969, Foucault declara: “Esse termo ‘arqueologia’ me embaraça um pouco, porque ele recobre dois temas que não são exatamente os meus. Inicialmente, o tema da origem (arké, em grego, significa começo). Ora, eu não procuro estudar o começo no sentido da origem primeira, do fundamento a partir do qual todo o resto seria possível. Não estou à procura desse primeiro momento solene a partir do qual, por exemplo, toda a matemática ocidental foi possível […] São sempre começos relativos que procuro, antes instaurações ou transformações do que fundamentos ou fundações. E, depois, me incomoda da mesma forma a idéia de escavações. O que eu procuro não são as relações que seriam secretas, escondidas, mais silenciosas ou mais profundas do que a consciência dos homens. Tento, ao contrário, definir relações que estão na própria superfície dos discursos; tento tornar visível o que só é invisível por estar muito na superfície das coisas […] Não pretendo procurar por baixo do discurso o que é o pensamento dos homens, mas tento tomar o discurso em sua existência manifesta, como uma prática que obedece as regras. As regras de formação, de existência, de coexistência, a sistemas de funcionamento etc. É essa prática, em sua consistência e quase em sua materialidade, que descrevo (FOUCAULT, 2000b: 145 e 146). 

O mesmo ponto de vista é ratificado em 1975, numa discussão informal realizada com estudantes de Los Angeles e reproduzida três anos depois, sob o título de “Diálogo sobre o poder”, no Circabook, cópia mimeografada destinada à divulgação de debates teóricos no campus. Nesta, o filósofo francês esclarece: “Eu me dei como objeto uma análise do discurso, fora de qualquer formulação de ponto de vista. Meu programa não se fundamenta tampouco nos métodos da lingüística. A noção de estrutura não tem nenhum sentido para mim. O que me interessa, no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. Para mim, trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às instituições. Considerando sob esse ângulo, o discurso não é nada além de um acontecimento como os outros, mesmo se, é claro, os acontecimentos discursivos têm, em relação aos outros acontecimentos, sua função específica. Um outro problema é o de balizar o que constitui as funções específicas do discurso, e isolar certos tipos de discursos entre outros. Estudo também as funções estratégicas de tipos particulares de acontecimentos discursivos no interior de um sistema político ou de um sistema de poder (FOUCAULT, 2003d: 255 e 256). 

Sobre a dialética, Foucault acrescenta: “Não aceito essa palavra dialética. Não e não! É preciso que as coisas estejam bem claras. Desde que se pronuncia a palavra ‘dialética’, se começa a aceitar, mesmo que não se diga, o esquema hegeliano de tese e da antítese e, com ele, uma forma de lógica que me parece inadequada, se quisermos dar uma descrição verdadeiramente concreta desses problemas. Uma relação recíproca não é uma relação dialética […] Veja, a palavra ‘contradição’ tem, em lógica, um sentido particular. Sabemos bem o que é uma contradição na lógica das proposições. Mas quando se considera a realidade e se procura descrever e analisar um número importante de processos, descobre-se que essas zonas de realidade estão isentas de contradições […] Tomemos o domínio biológico. Nele encontramos um número importante de processos recíprocos antagonistas, mas isso não quer dizer que se trate de contradições. Isso não quer dizer que haja, de um lado do processo antagonista, um aspecto positivo e, do outro, um aspecto negativo. Penso que é muito importante compreender que a luta, os processos antagonistas não constituem, tal como o ponto de vista dialético pressupõe, uma contradição no sentido lógico do termo […] Se repito, de modo permanente, que existem processos como a luta, o combate, os mecanismos antagonistas, é porque encontramos esses processos na realidade. E não são processos dialéticos” (Idem, ibid., p. 260).

[8] Tanto Wood quanto Foster (In WOOD & FOSTER, 1999: 15 e 196) demonstram que o fatalismo político dos pós-modernos corresponde, em contrapartida, na crença otimista do triunfo do capitalismo. 

[9] Em Sexualidade e Política, entrevista concedida em maio de 1978, Foucault (2004b: 23 a 36) – após afirmar que o que lhe interessa são as lutas que não objetivam tomar o poder maior (nacional), mas recusá-lo – distingue as lutas diretas e cotidianas contra o poder e a luta revolucionária da seguinte forma: “uma diferença entre os movimentos revolucionários e as lutas contra o poder cotidiano é precisamente que os primeiros não querem o sucesso. O que significa ter sucesso? Significa que uma demanda qualquer que seja ela – uma greve, por exemplo, foi aceita. Ora se foi aceita, isso prova que os adversários capitalistas são mais flexíveis, usam mais estratégias e são capazes de sobreviver. Os movimentos revolucionários não desejam isso. Em segundo lugar, de acordo com uma visão tática já presente no próprio Marx, imagina-se que a força revolucionária é tão mais importante quanto mais aumente o número de descontentes. Se a demanda é aceita – ou seja, se tivermos sucesso – isso implica que a potencialidade revolucionária diminui […] Em suma, tudo é feito para que jamais tenha sucesso […] A luta contra o poder cotidiano tem, pelo contrário, o objetivo de ter êxito […] Se eles pensam que a construção de um aeroporto ou de uma central elétrica em tal ou tal lugar é prejudicial, eles a impedem até o fim. Eles não se contentam com um sucesso como aquele da extrema esquerda revolucionária que pensam: ‘Nossas lutas avançaram dois passos, mas a revolução recuou um passo’. Vencer é conseguir” (Idem, ibid., p. 34 e 35).

[10] Em outro trecho de sua análise tal unidade é ressaltada por Habermas no duplo papel que a genealogia das ciências humanas em Foucault exerce: “Por um lado, desempenha o papel empírico de uma análise das tecnologias de poder que devem explicar o contexto funcional da ciência do homem; aqui as relações de poder interessam enquanto condições de nascimento e enquanto efeitos sociais do saber científico. Essa mesma genealogia desempenha, por outro lado, o papel transcendental de uma análise das tecnologias de poder, que devem explicar como os discursos científicos sobre o homem são de modo geral possíveis; aqui as relações de poder interessam enquanto condições de constituição do saber científico” (HABERMAS, 2000: 384).

[11] Em Ordem do Discurso, aula inaugural no Collège de France, pronunciada em dezembro de 1970, não é a origem do discurso que interessa a Foucault, mas a descrição de seu modo de funcionamento. Tanto é assim que em nenhum momento o filósofo busca elucidar os determinantes de sua produção ou os seus sujeitos. Aliás funcionando como um ente abstrato que abarca tudo, o discurso toma o lugar do sujeito e da realidade objetiva como se depreende na seguinte afirmação: “o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2004c: 10). Ou, ainda, quando o filósofo francês acusa a “soberania do sentido” e o “sujeito fundante” da tradição filosófica do século XIX de terem permitido “elidir a realidade do discurso” (Idem, ibid., p. 46 e 47).

[12] Tal perspectiva se revela não só na nota 161, mas também em A Verdade e as Formas Jurídicas – série de conferências proferidas, em 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – RJ) – quando Foucault, recorrendo a Nietzsche, sustenta que é preferível conceber o conhecimento como uma invenção e que no pensamento nietzscheano o termo invenção é usado em explicita oposição à busca da origem (FOUCAULT, 1996: 14 e 16). 

Além disso, o exacerbado epistemologismo foucaultiano e o modo como este alimenta a fusão entre o saber e o poder se explicitam no final de A Verdade e as Formas Jurídicas, quando o “niilista de cátedra” assevera: “Não penso, portanto, que se possa admitir pura e simplesmente a análise tradicionalmente marxista que supõe que, sendo o trabalho a essência concreta do homem, o sistema capitalista é quem transforma este trabalho em lucro, em sobre-lucro ou mais-valia […] Tal como foi instaurado no século XIX, esse regime foi obrigado a elaborar um conjunto de técnicas políticas, técnicas de poder, pelo qual o homem se encontra ligado a algo como o trabalho, um conjunto de técnicas pelo qual o corpo e o tempo dos homens se tornam tempo de trabalho e força de trabalho e podem ser efetivamente utilizados para se transformar em sobre-lucro. Mas para haver sobre-lucro é preciso haver sub-poder. É preciso que, ao nível mesmo da existência do homem, uma trama de poder político microscópico, capilar, se tenha estabelecido fixando os homens ao aparelho de produção, fazendo deles agentes da produção, trabalhadores […] Falo de sub-poder pois se trata […] não do que é chamado tradicionalmente de poder político; não se trata de um aparelho de Estado, sociais do saber científico. Essa mesma genealogia desempenha, por outro lado, o papel transcendental de uma análise das tecnologias de poder, que devem explicar como os discursos científicos sobre o homem são de modo geral possíveis; aqui as relações de poder interessam enquanto condições de constituição do saber científico” (HABERMAS, 2000: 384).

[13] Dentre os textos analisados por Weisshaupt estão: A verdade e as Formas Jurídicas; alguns capítulos do livro Vigiar e Punir (1976) e do volume I da História da Sexualidade: A Vontade de Saber (1979); alguns textos que compõem o livro Microfísica do Poder (FOUCAULT, 1986 ); um ensaio sobre “O sujeito e o poder” que o filósofo francês escreveu em 1982 para o livro de Dreyfus & Rabinow (1995) e “Omnes et Singulatim”: uma crítica da razão política, redigido em 1981 e vertido para o português em Foucault (2003d: 355 a 385). 

[14] Em sintonia com os argumentos que o filósofo francês utiliza para escapar da pecha do pósmodernismo (Cf. FOUCAULT, 2000b: 307 a 334), Weisshaupt (2002: 150) alega que Foucault não pretendeu “refazer uma teoria geral da razão ou uma análise, em geral, da razão moderna, da racionalidade das nossas condutas”. Foucault – assevera Weisshaupt (2002: 150) – “polariza a racionalidade. Ele deixa de examinar a racionalidade no singular e pesquisa as racionalidades plurais inscritas em diversas experiências ‘institucionais’ históricas”. O equívoco do julgamento de Weisshaupt se revela na nota de rodapé n° 98, quando o autor em tela ressalta que, buscando fazer o processo geral da razão, “é o discurso pós-moderno que diz, caricaturalmente: ‘A razão deu no stalinismo, no nazismo, na burocracia. Então abaixo essa razão, tão sem razão'” (WEISSHAUPT, 2002: 150, Nota de rodapé n° 98). Ora, foi o próprio filósofo francês que em diversas ocasiões sugeriu este equívoco. No Collège de France, em 1976, no Curso intitulado Em Defesa da Sociedade, Foucault, sustentando a tese de que o nazismo e o stalinismo seriam uma espécie de racismo que altera o discurso revolucionário pré-moderno, assevera: “Em face da transformação nazista, vocês têm a transformação de tipo soviético, que consiste em fazer, de certo modo o inverso: não uma transformação dramática e teatral, mas uma transformação sub-reptícia, sem dramaturgia legendária, mas difusamente cientista. Ela consiste em retomar o discurso revolucionário das lutas sociais […] e em fazê-lo coincidir com a gestão de uma polícia que assegura a higiene silenciosa de uma sociedade ordenada” (FOUCAULT, 2005a: 97). Na mesma ocasião, Foucault aborda a relação entre o marxismo, a ciência e o poder nos seguintes termos: “Quando eu vejo vocês se esforçarem para estabelecer que o marxismo é uma ciência, não os vejo, para dizer a verdade, demonstrando de uma vez por todas que o marxismo tem uma estrutura racional e que suas proposições dependem, por conseguinte, de procedimentos de verificação. Eu os vejo, sobretudo e acima de tudo, fazendo outra coisa. Eu os vejo vinculando ao discurso marxista, e eu os vejo atribuindo aos que fazem esse discurso, efeitos de poder que o Ocidente, desde a Idade Média, atribui à ciência e reservou aos que fazem um discurso científico” (Idem, ibid., p. 15). No ano de 1978, numa conferência proferida em Tóquio, “A Filosofia Analítica da Política“, Foucault afirma: “o século XX conheceu duas grandes doenças do poder, duas grandes epidemias que levaram até muito longe as manifestações exasperadas de um poder. Essas duas grandes epidemias que dominaram o âmago, o centro do século XX, são seguramente o fascismo e o stalinismo” (FOUCAULT, 2004b: 38). Embora, o filósofo francês assevere que tais “doenças” tenham decorrido de uma conjuntura bem precisa e específica, mais adiante, ele sustenta que tanto o nazismo quanto o stalinismo podem ser concebidos como produtos das filosofias ocidentais (Hegel, Nietzsche e Marx) que, embora comprometidas com a liberdade, se converteram num poder que, “na forma do terror, da burocracia ou ainda do terror burocrático, eram o próprio oposto do regime de liberdade” (Idem, ibid., p. 42). Ainda, neste texto, sobre a relação entre a filosofia de Marx e o stalinismo Foucault sustenta: “Esse paradoxo se tornou crise aguda com o stalinismo, que se apresentou como um Estado que, mais do que qualquer outro, era ao mesmo tempo uma filosofia, uma filosofia que havia justamente anunciado e previsto a decadência do Estado e que, transformado em Estado, tornou-se um Estado verdadeiramente privado, impedido de qualquer reflexão filosófica e de qualquer possibilidade de reflexão. É o Estado filosófico tornado literalmente inconsciente na forma do Estado puro” (Idem, ibid., p. 42). Em entrevista concedida em outubro de 1977, “Poder e Saber“, Foucault (2003d :223 a 240) – referindose ao stalinismo e ao fascismo como duas heranças negras do século XX e como problemas que não se resolvem em nível econômico, porque remetem a questão do excesso do poder – acentua : “Houve regimes, fossem capitalistas, que era o caso do fascismo, fossem socialistas ou se dizendo socialistas, que era o caso do stalinismo, nos quais o excesso de poder do aparelho do Estado, da burocracia, e diria igualmente dos indivíduos uns com os outros, constituía alguma coisa de absolutamente revoltante […] Ora, nada nos instrumentos conceituais, teóricos que tínhamos em mente nos permitia captar bem o problema do poder, já que o século XIX […] só percebeu esse problema através dos esquemas econômicos. O século XIX nos prometera que no dia em que os problemas econômicos se resolvessem todos os efeitos de poder suplementar excessivo estariam resolvidos. O século XX descobriu o contrário: podem-se resolver todos os problemas econômicos que se quiser, os excessos de poder permanecem” (Idem, ibid., p. 225). Reconstituindo o trabalho que fez em função de tornar inteligível este fenômeno do excesso do poder e elaborar instrumentos conceituais para pensá-lo, Foucault assevera: “é toda essa ligação do saber e do poder, mas tomando como central os mecanismos de poder, é isso, no fundo, o que constitui o essencial do que quis fazer” (Idem, ibid., p. 227). No ensaio “Omnes et Singulatim”: uma crítica da razão política, redigido em 1981, Foucault (2003d: 355 a 385) revela o modo como articula a Razão ao excesso de poder: “O laço entre a racionalização e os abusos de poder político é evidente. E ninguém precisa esperar a burocracia ou os campos de concentração para reconhecer a existência de tais relações” (Idem, ibid., p. 356).

[15] Boaventura de Souza Santos, um dos maiores pensadores pós-modernos da atualidade, incorpora a concepção de poder de Foucault com reservas muito claras. Sua crítica à pouca importância que a genealogia foucaultiana concede ao papel do Estado pode ser encontrada em Santos (1997: 246 e 247). Contudo, uma análise mais demorada da produção do referido autor, sobretudo de seu programa político, permite identificar uma influência muito grande do pensamento foucaultiano. Cf., em especial, a atenção concedida àqueles que representariam as margens do sistema, a subjetividade de fronteiras e ao uso da noção foucaultiana de heterotopia em Santos (1997 e 2001). Sobre a definição de heterotopia em Foucault e sua íntima relação com a transgressão cf. o texto Outros Espaços, redigido em 1967, na Tunísia, mas cuja publicação só foi autorizada pelo filósofo francês em 1984 (FOUCAULT, 2001a: 411 a 422).

[16] Primeiro livro que busca tratar expressa e explicitamente as implicações epistemológicas e sociais do pós-modernismo – A Condição Pós-moderna, de Jean-François Lyotard, publicado em 1979 – nem sequer cita o filósofo francês. Porém, não podemos deixar de levar em conta que Lyotard possa ter incorporado o projeto foucaultiano indiretamente por meio de Hassan (Cf. a relação entre a produção de Hassan e a de Foucault em ANDERSON, 1999: 25).

[17] O leitor pode consultar os principais livros escritos pelo filósofo francês para concluir – como o faz Habermas (2000: 395) – que Foucault, se percebendo como um dissidente do pensamento moderno, não intencionava “prolongar aquele contradiscurso que a modernidade levou consigo desde seus começos” ou “afinar o jogo de linguagem da teoria política moderna (com conceitos fundamentais de autonomia, moralidade e legalidade, emancipação e repressão)”. 

[18] Vimos na seção 3.2.1 que As Palavras e as Coisas (1966) funda os alicerces de toda empreitada teórica e política foucaultiana: despertar a humanidade de seu sonho antropológico. É este livro o que melhor revela Foucault, seu estilo de pensar e de ser.

[19] Cf. as tentativas de Foucault de fornecer, em As Palavras e as Coisas (1996), capítulo VII, uma alternativa tanto ao materialismo histórico-dialético, quanto ao positivismo e ao vivido e, ainda, a forma como ele propõe a recuperação de Nietzsche.

[20] Netto (1994: 29) demonstra por quais vias este golpe se processou: laborando na direção de uma hipertrofia da intelecção, a crítica cultural da Escola de Frankfurt acabou desqualificando a Razão. O leitor pode cf. também o artigo de Jay (1996), no qual o autor – embora refute que o legado da Escola de Frankfurt, tout court, possa ser pensado como um prolegômeno do pós-modernismo – admite que, em alguns aspectos, a trajetória teórica geral de alguns membros da primeira geração da Escola preparou o caminho para a virada pós-moderna.   

[21] Em geral, muitos discípulos de Foucault argumentam que as alterações da sua obra devem ser tomadas como rupturas absolutas ou abandonos definitivos. De acordo com esta perspectiva, o filósofo francês seria, então, a materialização de um sujeito esquizóide, que, renascendo a cada dia como um indivíduo diferente, não manteria qualquer vinculação, no decurso de sua vida teórica ou prática, entre o tempo passado, presente e futuro. Esta interpretação esquizóide, marcada por um presentismo claramente pós-moderno, da produção foucaultiana parece ter sido autorizada pelo próprio filósofo, como atesta a assertiva de Machado (2001: 136): “O intelectual destruidor de evidências e em constante deslocamento que Foucault desejara ser, de tão ligado ao presente, parece não lembrar exatamente o que pensava ontem nem saber com certeza o que pensará amanhã (grifos nossos) […] nunca é demais lembrar que ele já nos havia prevenido contra a tentação da totalidade ou da identidade no estudo de seus escritos, quando afirmou: ‘Não me perguntem quem eu sou e não me digam para continuar o mesmo…’”.

[22] Nietzsche é uma presença constante na obra de Foucault. Encontramo-la tanto nas produções identificadas com a arqueologia, quanto nas referentes à genealogia do poder e também nas que dizem respeito à formas de subjetivação e a ética.

[23] De acordo com Machado, essa literatura nietzscheana, marcada por um estilo de pensamento não dialético e não fenomenológico, permite a Foucault provocar dois deslocamentos em face da epistemologia francesa. O primeiro diz respeito ao privilégio que a arqueologia foucaultiana concede à constituição dos saberes do homem na modernidade, enquanto os epistemólogos franceses se interessaram mais pela vida e pela natureza, debruçando-se sobre a matemática, a física, a química, a biologia, a anatomia. O segundo deslocamento corresponde à diferença que a questão da verdade e da ciência teve para Foucault e os epistemólogos franceses: se, para estes, a questão da verdade da ciência ainda era válida, para a arqueologia foucaultiana ela perdia todo o sentido. Seu objetivo era descartar o mérito da racionalidade científica, realizando uma história filosófica na qual “desaparecem os traços de uma história do progresso da razão, do conhecimento ou da verdade” (MACHADO, 2001:09).

[24] Cf. as análises de Lash (1997) acerca da existência de uma estética pós-moderna em Foucault, Lyotard e Deleuze. 

[25] De acordo com Machado, é como “contradiscurso” que a literatura é valorizada por Foucault: “a literatura é o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existia na época clássica reduzida a discurso, a sua função representativa […] mas a literatura é também o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existia na modernidade com sua função significante” (MACHADO, 2001: 108).

[26] Em História da Loucura (1961), a libertação dos loucos das correntes por Pinel não soa como qualquer sinal de avanço humanitário da assistência dispensada, até então, ao desvario.  

[27] Segundo Rabinow & Dreyfus, declarados admiradores de Foucault, a principal estratégia de O Nascimento da Clínica (1963) é demolir a pretensa suposição moderna de que a ciência médica é uma ciência objetiva, capaz de dizer a verdade sobre a doença: “uma vez que vemos que a organização do saber médico na Época Clássica tinha uma estrutura formal compreensível, podemos ver que as afirmações da medicina moderna consideradas verdadeiras podem ser igualmente dirigidas por estruturas arbitrárias semelhantes.” (RABINOW & DREYFUS, 1995: 14). 182

[28] Nenhum dado objetivo, nenhum progresso racional, nenhuma aprofundamento do conhecimento propiciou a alteração da epistémê clássica para a moderna, da qual as ciências sociais fazem parte: “O que explica a dificuldade das ‘ciências humanas’, sua precariedade, sua incerteza como ciências, sua perigosa familiaridade com a filosofia, seu apoio mal definido sobre os outros domínios do saber, seu caráter sempre secundário e derivado, como também sua pretensão ao universal, não é como freqüentemente se diz, a extrema densidade de seu objeto; não é o estatuto metafísico ou a indestrutível transcendência desse homem de que elas falam, mas, antes, a complexidade da configuração epistemológica em que se acham colocadas” (FOUCAULT, 2002b: 481). 

[29] Foucault descreve o objetivo de seu livro da seguinte forma: “uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade.” (FOUCAULT, 1987b: 26).

[30] A estratégia principal do primeiro volume de História da Sexualidade (1977) consiste em inverter os termos do debate sexual, predominante nos anos 70 e 80. Ao considerar retrógradas aquelas produções que, num confronto com uma suposta repressão burguesa diante da sexualidade, buscavam afirmar a relevância do sexo e do desejo, Foucault busca se opor ao movimento em prol da liberação sexual: “Mas os outros erraram quanto à natureza do processo; acreditaram que Freud restituía enfim, ao sexo, por uma reversão súbita, a parte que lhe era devida e que lhe fora contestada por tanto tempo; não viram que o gênio bom de Freud o colocara em um dos pontos decisivos, marcados desde o século XVIII, pelas estratégias de saber e de poder; e que com isso, ele relançava com admirável eficácia, digna dos maiores espirituais e diretores da época clássica, a injunção secular de conhecer o sexo e colocá-lo em discurso. Evoca-se com freqüência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o corpo; mas, pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais, há vários séculos, fizeram-nos amar o sexo, tornaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz a seu respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade” (FOUCAULT, 2003a: 149). Eribon (1990: 255 e 256) sugere que foram as repercussões negativas deste ataque ao movimento pela liberação sexual que levaram Foucault a uma crise pessoal. A magnitude desta crise pode ser medida pelos sete anos que o filósofo levou para publicar os outros dois volumes de sua história da sexualidade.

[31] Logo após ter explorado a relação entre a confissão, a verdade e o poder – base de sustentação para vinculação entre o discurso científico e as tecnologias do eu que aparece no primeiro volume de sua história da sexualidade como aquilo que permitiu transformar o indivíduo num objeto de conhecimento, capaz de falar a verdade sobre si mesmo e se auto-transformar -, Foucault pretendia prosseguir aprofundando a temática da confissão, apresentando sua evolução histórica, desde sua constituição no cristianismo até seu aprofundamento no campo da pedagogia, das instituições de internamento e da medicina. Entretanto, operando um giro em sua intenção inicial, volta-se para a análise das técnicas e do “cuidado de si”, próprios da Antiguidade greco-romana. 

[32] Ferry & Renaut (1988) demonstram como o retorno do sujeito, em História da Sexualidade, na segunda metade dos anos 70, não correspondeu a uma reviravolta profunda do projeto foucaultiano. Voltando-se para o tema da subjetividade, da ética, da liberdade e do domínio de si, ao contrário do que poderia parecer, Foucault não rompeu com o anti-humanismo e o antiiluminismo professados abertamente em suas primeiras obras. Como alternativa ao tipo de individualidade que nos foi imposta pela modernidade, o pensamento foucaultiano resgata o “cuidado de si” experimentado pela Grécia clássica, um estilo de existência assentado numa ética que, despreocupada em modelar uma conduta condizente com normas universais, prescrevia o cultivo da individualidade. O uso de uma ética que ainda não foi “coisificada pela teoria do sujeito” (FERRY e RENAUT, 1988:147), permitiu que Foucault, mantendo uma coerência com suas argumentações anteriores, reativasse a subjetividade. 

[33] De acordo com Machado (2000: 25), História da Loucura (1961) tem uma estrutura muito semelhante àquela de O Nascimento da Tragédia, livro de Nietzsche que visa, por um lado, denunciar a modernidade como uma civilização socrática racional, marcada por um espírito científico ilimitado e uma vontade absoluta da verdade e, por outro, saudar expressões filosóficas e artísticas que, como Schopenhauer e Wagner, retomam a tragédia grega em oposição ao socratismo estético e a metafísica. 

[34] A ênfase do místico e do divino se explicita quando Foucault situa a qualidade do saber do século XVI na mistura instável entre saber racional, noções de magia e de erudição. Esta última sem qualquer parentesco com a erudição acadêmica ou científica, corresponde, ao contrário, à herança cultural recolhida de textos antigos, cuja interpretação se dá sob a luz de uma sabedoria divina. Cf. Foucault (2002b: 44 a 47). Tal erudição foi o que o filósofo francês buscou desenvolver em sua historiografia, pois, como atesta Merquior (1987) ele usou e abusou, em sua história da loucura, do sistema carcerário e da sexualidade, de fontes bibliográficas esotéricas.

[35] Linguagem literária que é enaltecida porque, elidindo sujeito e objeto, se situa no “espaço vazio do homem desaparecido” e, assim, é “linguagem pura, que só fala de si mesma, que não expressa nenhuma realidade preexistente” (MACHADO, 2000: 113).

[36] Pierre Macherey também sugere que há uma certa continuidade entre o interesse literário presente no pensamento foucaultiano dos anos 60 e a preocupação ética do último Foucault. Na Introdução ao livro Raymond Roussel, escrito pelo filósofo francês em 1963, Macherey assevera que podemos vislumbrar na figura de Roussel que Foucault privilegiou – a de um escritor cuja obra foi uma completa disciplina de si, onde cegueira e lucidez parecem conjugar-se na obstinação, no excesso, e na desmedida – o que o projeto foucaultiano mais tarde chamará de estetização da existência (Cf. FOUCAULT, 1999: XIX e XX). Acerca da relação da ética com a estética em Foucault, além dos dois últimos volumes de História da Sexualidade (1984), cf. Ortega (1999) e Dreyfus & Rabinow (1995). 

[37] A divinização moderna do homem, cujo marco é situado em Kant, é apresentada em As Palavras e as Coisas (1966) como a produção de um duplo problemático, uma confusão entre o empírico e o transcendental, que selará a sorte das ciências sociais, constituindo-as como um saber essencialmente frágil e instável. É no reconhecimento de sua finitude como algo positivo que o homem busca fundar sua infinitude.

[38] Sobre a condição de Nietzsche como um pensador esteta, cf. o artigo de Comte-Spoinville editado em Boyer (1993).

[39] De acordo com Ferry e Renaut (1999: 148), a antimodernidade de Nietzsche não busca a restituição do tradicional, mas um análogo moderno ao universo tradicional. Ele sabe que o progresso instaurado pela modernidade impede o regresso ao passado. O tradicionalismo nietzscheano é mais trágico do que reacionário, ou seja, ele é considerado mais como um valor irremediavelmente perdido do que algo que possa voltar. Acreditamos que o mesmo se pode dizer de Foucault.

[40] A tese de Lukács é que depois de 1848 o irracionalismo se tornou reação à dialética críticomaterialista. Assim, cada fase de sua manifestação corresponde a uma fase elevada da dialética que o irracionalismo visa combater.

[41] Sobre as posições políticas do filósofo francês, seu envolvimento com as lutas sociais após 1968 ver em especial a biografia de Eribon (1990), as análises de Dosse (1993 e 1994), Ferry & Renaut (1988) e Merquior (1985).

[42] Sobre análise do ser social que Lukács maduro desenvolveu a luz da obra marxiana cf. Barroco (1996). 

[43] É possível dizer, ainda, que o núcleo da colisão entre o pensamento foucaultiano e a obra madura de Lukács é bastante similar àquele indicado por Netto (2004a:154 a 156) acerca da oposição entre o pensamento lukacsiano do pós-30 e a cultura pós-moderna. Todavia, é importante esclarecer que a obra foucaultiana não tem por alvo central aquela produção que se convencionou chamar de marxismo ocidental. Ao contrário ela se mostra até simpática com relação à mesma (Cf. os elogios do nosso pensador proto pós-moderno à produção da Escola de Frankfurt em Foucault, 1995: 233 e 2000b:315). Além disso, embora História e Consciência de Classe, livro de Lukács editado em 1923, tenha se constituído na principal referência teórica do marxismo ocidental (MERQUIOR, 1987, LÖWY, 1998 e ANDERSON, 2004), é preciso ter em conta o giro intelectual operado no pensamento lukacsiano nos anos 30 e o quanto este, a partir de então, passa a distar da orientação teórica não ontológica que caracteriza as produções dos marxistas ocidentais (NETTO, 1996 e 2004a). Superado teórica e politicamente por Lukács, na década de 30, História e Consciência de Classe é um livro seminal no qual é possível encontrar “germes e embriões de vários rumos ulteriormente tomados pela reflexão inspirada em Marx. E, entre esses rumos, está o marxismo ocidental” (NETTO, 1996: 14). Dentre os diversos nexos existentes entre este livro e o marxismo ocidental, Netto destaca a presença de uma concepção não-ontológica da teoria marxiana. O prefácio elaborado por Lukács em 1967 para segunda publicação de História e Consciência de Classe confirma a hipótese de Netto (1996). Neste, por meio de um lúcido e impenitente balanço crítico de sua trajetória intelectual e política, o autor reconhece não somente o sectarismo messiânico que impregnava sua visão de mundo nos anos 20, mas também o quanto o livro de 23 voltou-se “voluntária ou involuntariamente contra os fundamentos da ontologia do marxismo” (LUKÁCS, 2003: 14). Uma avaliação distinta da de Lukács acerca deste livro pode ser encontrada em Löwy (1998), cuja análise privilegia mais os vínculos de História e Consciência de Classe com a teoria social de Marx do que propriamente os desvios com relação a ela, problematizados em exaustão no prefácio de 67.  

[44] Conforme destaca o artigo de Comte-Spoinville editado em Boyer (1993), Nietzsche foi talvez o único filósofo que, após a Revolução Francesa, tomou explicitamente o partido da força contra o direito. A celebração da barbárie que sua obra pretendeu empreender está claramente expressa em proposições políticas reacionárias. O filósofo alemão foi um rotundo apologeta do racismo, da aristocracia e da repugnância pelos homens efeminados, os filhos de escravos e a população mestiça. Já Foucault denunciava o enclausuramento e/ou o silenciamento dos loucos, dos presos e dos homossexuais. Acerca das proposições políticas de Nietzsche, consultar também Lukács (1968).

[45] A dominância do marxismo na França do pós-guerra pode ser medida, por um lado, pelo crescimento do Partido Comunista Francês que, na passagem da década de 50 para 60, havia se tornado a organização majoritária da classe operária em toda Europa Ocidental e, por outro, no impacto que o marxismo teve no meio de pensadores existencialistas como Merleau-Ponty, Sartre e Simone de Beauvoir (ANDERSON, 2004).

[46] Desde finais da Segunda Guerra, a área da saúde mental assiste a uma multiplicidade de experiências contestatórias à psiquiatria asilar, reunidas sob a denominação de Reforma Psiquiátrica. Tal Reforma teve o mérito de denunciar não só a ineficácia da psiquiatria em “curar” a loucura, mas, sobretudo, como a violência e os maus-tratos se constituíram, ao longo da história, em elementos cotidianos importantes da assistência psiquiátrica. É claro que, na história do Welfare State, a situação dos prisioneiros foi até mais drástica do que a dos pacientes psiquiátricos. Já quanto à homossexualidade, é bom lembrar que ela ganha uma nova visibilidade, sobretudo, na segunda metade do século XX, quando há um processo de liberalização dos costumes em meio a uma “Revolução Cultural” que altera os padrões, até então, instituídos da relação entre os sexos e as gerações (HOBSBAWM, 1998). É neste quadro que a homossexualidade pôde saltar da condição de patologia para o campo da luta pela afirmação de direitos: a luta em prol da liberdade de opção sexual e da igualdade de condições e garantias com os casais heterossexuais. 

[47] Os contornos mais gerais e iniciais deste não-conformismo individualista foram indicados por Lukács, no epílogo de El Asalto a la Razón. O filósofo húngaro assinala que, após o término da Segunda Guerra, a reação burguesa imperialista contra a concepção de mundo socialista ganha uma nova tônica. A defesa do “mundo livre” e o niilismo – que torna virtuosa a negação contra toda e qualquer concepção de mundo – se transformam no ponto de partida ideológico da luta contra o comunismo. Assim, um dos problemas decisivos da cultura neste período, que une intelectuais muito divergentes, é o direito ao não-conformismo. Porém, o não-conformismo consentido é somente aquele que se dirige contra a U.R.S.S. e contra o socialismo, aquele que enfatiza as tendências individualistas mais radicais (LUKÁCS, 1968: 618 a 648).

[48] Descombes (In BOYER: 1993, 116 a 117) demonstra que, ao evocar a soberania individual como linha central para uma conduta política, o nietzscheanismo francês dos anos 60 acabou reduzindo sua proposição crítica a um programa de resistência aos poderes e às autoridades estabelecidas. Cf. como o autor em tela desvela a posição fundamentalmente apolítica deste programa.

[49] “Anunciando o fim do homem e do humanismo, combatendo a história concreta, fazendo da dialética uma ‘doxologia’, Foucault revela claramente a função social de sua abstrusa ideologia: a destruição das tradições do século XIX e, com elas, do legado cultural capaz de permitir ao homem contemporâneo uma justa consciência da insensatez de sua vida no mundo manipulado de hoje.” (COUTINHO, 1972: 163). 

[50] De acordo com Coutinho (1972), a clivagem entre o irracionalismo e o racionalismo formal estruturalista é o agnosticismo. Ambas as perspectivas, ao operar com um conceito limitado da Razão, declaram como incognoscíveis ou como falsos problemas esferas fundamentais da vida. Em face da Razão,“irracionalistas e agnósticos negam explicitamente que a totalidade do real possa ser objeto de uma apreensão racional. Quando se reconhece o valor da ‘razão’, este é sempre limitado a algumas esferas da realidade; a totalidade do mundo – o objeto da ontologia – aparece como inefável irracionalidade. Irracionalismo e ‘miséria da Razão’ se completam.” (COUTINHO, 1972: 31). 

[51] Grosso modo, os filósofos da decadência são anti-humanistas, anti-historicistas e antidialéticos. Eles negam o momento criador da práxis humana, ao substituir o humanismo por um individualismo exacerbado ou pela afirmação do homem como uma “coisa”; transformam a história real em algo superficial ou irracional, ao substituir o historicismo por uma pseudo-historicidade subjetivista e abstrata ou por uma apologia da positividade; rejeitam a cognoscibilidade da essência contraditória do real, ao substituir a Razão dialética pelo irracionalismo fundado na intuição arbitrária ou por um profundo agnosticismo (COUTINHO, 1972: 17) Segundo Coutinho, a “destruição da Razão” e a “miséria da Razão” são perspectivas conservadoras porque estão presas às aparências fetichizadas do real. Como encarnações de um pensamento imediatista, de uma filosofia que abandona os núcleos progressistas da filosofia clássica, são incapazes de penetrar a essência da realidade. Sujeitadas aos limites impostos pela economia do mercado, essas perspectivas aceitam a positividade capitalista (Idem, ibid., p. 26).

[51]Foi Hegel que, embora numa perspectiva idealista, teve o mérito de sintetizar os aspectos revolucionários dessa tradição filosófica, desenvolvendo uma teoria humanista, que afirma o homem como um produto de sua atividade histórica e coletiva, e a tese racionalista de que a autoprodução humana é um processo submetido a leis objetivas e dialéticas. A contribuição hegeliana pode ser sintetizada em três núcleos categoriais: “o humanismo, a teoria de que o homem é um produto de sua própria atividade, de sua história coletiva; o historicismo concreto, ou seja, a afirmação do caráter ontologicamente histórico da realidade, com a conseqüente defesa do progresso e do melhoramento da espécie humana e , finalmente, a Razão dialética, em seu duplo aspecto, isto é, o de uma racionalidade objetiva imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a forma de unidade de contrários), e aquele das categorias capazes de apreender subjetivamente essa racionalidade objetiva, categorias que englobam, superando, as provenientes do ‘saber imediato’ (intuição) e do ‘entendimento’ (intelecto analítico).” (COUTINHO, 1972: 14 e 15). Em linhas gerais, para os pensadores pertencentes a essa tradição filosófica progressista, a Razão não se limitava à classificação do existente. Ao contrário, tendo o poder de apreender o mundo em seu permanente devenir, permitia compreender o real como uma totalidade concreta em constante mutação, como síntese de possibilidade e realidade (Idem, ibid., p. 111 e 112).

[52] Como Lukács (1968), Coutinho (1972) demonstra que, anteriormente à conquista de sua hegemonia política e econômica, a burguesia era uma classe revolucionária. Nesse período, os seus ideólogos,em face do obscurantismo feudal, conseguiram formular uma racionalidade progressista. Ao tornar-se uma classe dominante, a burguesia transforma essa racionalidade revolucionária numa racionalidade limitada e conservadora. O positivismo foi a expressão direta dessa virada filosófica. 

[53] Foi Hegel que, embora numa perspectiva idealista, teve o mérito de sintetizar os aspectos revolucionários dessa tradição filosófica, desenvolvendo uma teoria humanista, que afirma o homem como um produto de sua atividade histórica e coletiva, e a tese racionalista de que a autoprodução humana é um processo submetido a leis objetivas e dialéticas. A contribuição hegeliana pode ser sintetizada em três núcleos categoriais: “o humanismo, a teoria de que o homem é um produto de sua própria atividade, de sua história coletiva; o historicismo concreto, ou seja, a afirmação do caráter ontologicamente histórico da realidade, com a conseqüente defesa do progresso e do melhoramento da espécie humana e , finalmente, a Razão dialética, em seu duplo aspecto, isto é, o de uma racionalidade objetiva imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a forma de unidade de contrários), e aquele das categorias capazes de apreender subjetivamente essa racionalidade objetiva, categorias que englobam, superando, as provenientes do ‘saber imediato’ (intuição) e do ‘entendimento’ (intelecto analítico).” (COUTINHO, 1972: 14 e 15). Em linhas gerais, para os pensadores pertencentes a essa tradição filosófica progressista, a Razão não se limitava à classificação do existente. Ao contrário, tendo o poder de apreender o mundo em seu permanente devenir, permitia compreender o real como uma totalidade concreta em constante mutação, como síntese de possibilidade e realidade (Idem, ibid., p. 111 e 112).

[54] Há nos filósofos que compõem a corrente da destruição da Razão um clamor pelo combate à burocratização da vida social em nome de uma subjetividade e de valores autênticos. O problema é que a subjetividade reclamada por esta corrente filosófica como única fonte de valores autênticos é uma subjetividade inteiramente vazia, desprovida de qualquer fundamento racional objetivo, de qualquer relação ética com valores objetivos. Ao condenar o mundo cotidiano e todas as possibilidades de uma vida vivida na realidade objetiva como inautênticos, a destruição da Razão converte a subjetividade em mera negação abstrata do real, no desprezo de todas as mediações sociais concretas (COUTINHO, 1972: 33 a 37).

[55] Diferente do racionalismo da época clássica, que buscava conquistar terrenos cada vez mais amplos para e através da Razão, o racionalismo próprio desta orientação filosófica ocupou-se apenas em estabelecer limites para o conhecimento. formais que manipulam arbitrariamente dados extraídos do todo objetivo, a um tipo de racionalidade que desempenha um papel destacado na dominação da natureza.

[56] Coutinho (1972) ressalta que a manipulação não é um mal em si mesma. Em todas as atividades que proponham um domínio imediato da natureza, a práxis manipulatória revela-se eficaz e progressista. Ela, no entanto, se converte em limite real, em obstáculo à verdadeira realização humana, quando se torna o tipo dominante da práxis humana. Neste caso, a manipulação não somente impede uma apreensão rica da objetividade, mas também uma correta consciência do significado humano e social da práxis. A generalização da manipulação como forma dominante do relacionamento social – tanto entre os homens, como destes as coisas – é uma tendência espontânea do sistema capitalista reforçada em sua fase tardia, quando o consumo é invadido pela lógica da produção do capital (COUTINHO, 1972: 78 e 79).

[57] Tal afirmação não deve levar o leitor ao equívoco de inferir que a limitação da racionalidade do positivismo se deve à busca de apreender cientificamente a legalidade dos fenômenos sociais. Vimos na seção 2.3 que Lukács (1979) comprova como a teoria social marxiana, numa perspectiva radicalmente antagônica a racionalidade formal positivista, pode ser compreendida enquanto uma investigação, rigorosamente ontológica da legalidade do ser social na sociedade burguesa. O problema de Comte, como o de todos aqueles que se filiaram à vertente da “miséria da Razão”, reside justamente no abandono das implicações ontológicas. Para o positivismo, a ciência nada teria a ver com a inquirição metafísica. Só os fenômenos empíricos, e não suas essências, origens ou causas primeiras, podem ser conhecidas. Assim sendo, as dimensões especificamente subjetivas (o mundo da consciência e dos valores) escapariam do saber positivo. Para a teoria social positivista, apenas a observação, a partir do exterior, serviria de processo basilar de toda investigação. Ao postular que a base da observação e da certeza teóricas é a percepção sensorial, o positivismo reduz a legalidade da vida social “a simples expressão formal da relação entre fenômenos” (SILVA, 1988: 110). Graças a essa perspectiva antiontológica, as leis sociais formuladas pelo positivismo adquiriram um caráter determinista e imutável tal qual as leis da física.

[58] Foucault parece desconhecer a distinção hegeliana entre Verstand (intelecto) e Vernunf (Razão). Superando as antinomias de Kant e o intuicionismo de Schelling, Hegel soube discernir as formas pelas quais a consciência conhece o mundo: a intuição, derivada de um saber imediato; a intelecção ou entendimento – pertinente à razão analítica – e a razão dialética. A segunda forma, a intelecção é essencialmente limitada, posto que se aferra às dimensões formais dos fenômenos. De maneira alguma ela pode ser identificada com a Razão dialética que, compreendendo o trabalho negativo da Razão, é capaz de superar os limites da intelecção e reproduzir, no plano ideal, o fluxo contraditório do real (NETTO, 1994: 28 e 29).

[59] A epistémê bloqueia o contato criador do homem. Longe de decorrerem de uma representação mais rica da objetividade, no interior de uma práxis que se amplia e enriquece, as categorias mentais foucaultianas coagulam-se num a priori que aprisiona o conhecimento e a ação sobre o real dentro de limites fetichizados, aqueles exigidos pela eficácia da manipulação. Cf Coutinho (1972: 149). 

[60] Coutinho demonstra com brilhantismo como a obra foucaultiana cancela duplamente a história. A historicidade objetiva é eliminada não apenas no plano de sua gênese real, como também no plano  sistemático imanente de seu desenvolvimento: “Foucault limita-se a registrar de modo positivista (grifos nossos) as várias etapas da ‘epistémê’, colocando-as uma após as outras, sem nenhuma relação histórica ou imanente entre si. E, como conseqüência do agnosticismo positivista, aflora nele o irracionalismo; a transformação das ‘epistémês’ no tempo aparece-lhe, no final das contas, como algo um ‘pouco enigmático’” (COUTINHO, 1972: 151). Cf. também na nota 165 como o filósofo francês trata de forma semelhante o discurso. 

[61] Mais do que Coutinho indica, cremos que há aqui não só a presença de uma racionalidade miserável, mas também uma das premissas pós-modernas: a de que a descontinuidade histórica – que destrói a totalidade, a universalidade, o progresso e a práxis humana – funda uma nova história superior à noção moderna de historicidade, tomada como pura teleologia, um pensamento simplista, fechado e evolucionista. 

[62] O privilégio do espaço em detrimento do tempo foi explicitamente defendido por Foucault em Outros Espaços. Neste texto, de 1967, o filósofo francês sustenta, inclusive, que : ”talvez se [possa] dizer que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes encarniçados do espaço (grifos nossos)” (FOUCAULT, 2001a: 411).

[63] Sobre o biopoder, conferir a análise meticulosa da genealogia foucaultiana feita por Rabinow & Dreyfuss (1995: 113 a 227).

[64] É na fase de sua genealogia que, priorizando a análise das tecnologias disciplinares do mundo moderno, Foucault enfatiza a existência de um poder, imanente à vontade de verdade, que tudo manipula. A despeito de sua intenção em fornecer alternativas políticas que pudessem afastá-lo da perspectiva niilista da sua produção arqueológica, o filósofo francês aprofundou ainda mais a concepção de um mundo manipulado e tenebroso. Em Vigiar e Punir (1975), e no primeiro volume de História da Sexualidade (1977), Foucault mostra que o sujeito que fala, pensa e age é puro produto de um jogo de poder. 

[65] Tal concepção de poder que Foucault quis conscientemente alargar e tornar positiva e produtiva, em contraposição a uma concepção meramente restritiva, negativa e proibitiva, não tem qualquer ponto de apoio em sujeitos concretos, em relações objetivas entre classes ou entre Estado e sociedade civil. Para o filósofo francês, o poder deve ser compreendido “como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização, o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte” (FOUCAULT, 2003a: 88). O ponto de vista que permite tornar inteligível seu exercício não deve se ater “na existência de um ponto central, num foco único de soberania”, seu suporte é móvel e instável. “O poder está em toda parte […] provém de todos os lugares […] não é uma instituição e nem uma estrutura […] é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (Idem, ibid., p. 89). 

[66] As condições de conhecimento que Foucault obstinou-se ao longo de sua trajetória em desvelar não têm qualquer fundamentação objetiva, seu fundamento é pura epistemologia, como ilustra a introdução de As Palavras e As Coisas (1966): “Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade” (FOUCAULT, 2000b: XVIII e XIX). Em sua fase genealógica, quando se volta para a discussão do poder e das práticas disciplinares, o filósofo francês permanece fiel ao privilégio da epistemologia. No primeiro volume de História da Sexualidade (1977), as condições do surgimento das práticas disciplinares que incidem sobre o sexo são localizadas em A Vontade de Saber: “o postulado inicial que gostaria de sustentar o mais longamente possível é que esses dispositivos de poder e de saber, de verdade e de prazeres, esses dispositivos tão diferentes da repressão, não são forçosamente secundários e derivados […] Trata-se, portanto, de levar a sério esses dispositivos e de inverter a direção da análise: ao invés de partir de uma repressão geralmente aceita e de uma ignorância avaliada de acordo com o que supomos saber, é necessário considerar esses mecanismos positivos, produtores de saber, multiplicadores de discursos, indutores de prazer e geradores de poder. É necessário seguí-los nas suas condições de surgimento e de funcionamento e procurar de que maneira se formam, em relação a eles, os fatos de interdição ou de ocultação que lhes são vinculados. Em suma, trata-se de definir as estratégias de poder imanentes a essa vontade de saber. E, no caso específico da sexualidade, construir a ‘economia política’ de uma vontade de saber” (FOUCAULT, 2003a: 71)

[67] Mesmo depois de Vigiar e Punir (1975), quando Foucault parece ter abandonado a preocupação com a construção de uma “ontologia do ser da linguagem”, o sujeito continua a ser concebido como uma demiurgia do saber. Na sua fase genealógica, o sujeito é concebido como produto de um poder imanente a uma vontade de verdade. Cf, em especial, o papel que o primeiro volume de História da Sexualidade (1977) credita à confissão na formação do sujeito moderno e o papel de uma determinada verdade na constituição do sujeito temperante e de uma estética da existência, no terceiro volume de História da Sexualidade (1984). 

[68] A condição histórica dessa cultura, longe de indicar a constituição de uma sociedade pósindustrial, está associada à compressão tempo-espaço forjada a passagem do padrão de acumulação fordista-keynesino pelo padrão de acumulação flexível. Compressão que favoreceu, segundo Harvey, a derrocada na confiança da associação entre juízos científicos e morais, o triunfo da estética sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, o domínio das imagens sobre as narrativas, a precedência da efemeridade/fragmentação sobre verdades eternas e sobre a política unificada e, por fim, a consideração da cultura e da política como esferas autônomas da economia (HARVEY, 1996: 291 a 396).

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