Catarse – Eleições 2022: Frente Única e Polarizações

Por Iael de Souza e Ângelo Magalhães Silva

“O trabalho do Partido Revolucionário – muito diferente dos partidos políticos institucionalizados, cujo objetivo primeiro e último são os processos eleitorais para ocupação de cargos no legislativo e executivo visando a defesa dos seus interesses particulares, enviesada pela falácia de defesa dos interesses gerais – é, além de elevar a consciência das massas para uma consciência revolucionária em prol da luta revolucionária, mobilizar e organizar os trabalhadores e trabalhadoras de forma tática e disciplinada para desempenhar as tarefas da luta política-social do processo revolucionário, não caindo nas armadilhas constitucionalistas, parlamentaristas e da ideologia jurídica que freiam a energia e ânimo das massas.”

Nos dias 25, 26 e 27 de agosto de 2021 realizou-se um evento, organizado através de parceria entre a Universidade Federal do Semi-Árido do Rio Grande do Norte (UFERSA, representada pelo professor Ângelo Magalhães Silva e Roberio Paulino) e a Universidade Federal do Piauí (UFPI, representada pela professora Iael de Souza e pelo professor Francisco Prancácio Araújo de Carvalho), reunindo docentes das duas instituições como também da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP-Marília, representada pelo professor Henrique Tahan Novaes), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP, representada pelo professor Evaldo Piolli), Universidade Federal do ABC (UFABC, representada pelo professor Victor Marques), do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN, representada pelo professor Modesto Neto) e militantes sociais para analisar, avaliar, refletir, discutir, problematizar a questão candente das eleições 2022.

O intuito foi propiciar e iniciar um processo de catarse, de modo que se possa vislumbrar táticas e formas de ação mais eficazes para o enfrentamento da barbárie social que estamos vivendo. A catarse, na concepção aristotélica, tem o potencial de purificar as emoções humanas. As artes são seu principal veículo mediador. Para Aristóteles, por exemplo, o teatro, por meio da arte trágica,

atua sobre a alma do espectador, fazendo-o sentir as paixões narradas/representadas e permitindo-lhe, ao imitá-las em seu interior, liberar-se delas, purificando-se. Na visão aristotélica, a tragédia desce ao fundo nebuloso da mente, aos porões da alma, ao abismo das paixões humanas. Ela se constitui em instrumento poderoso de autoconhecimento e auto-respeito, realizando a catarse do universo interior das pessoas (QUEIROZ, 2013, p. 2).

De antemão, fica patente que a catarse não corresponde ao processo eleitoral de 2022. Para além, e de modo muito mais substancial, trata-se da tomada de consciência (ou elevação dela) daquilo que de fato é necessário fazer, colocando em pauta o como fazê-lo, para que se possa desenhar, elaborar e propor um projeto político-socio/ideocultural-econômico de país (de nação), considerando o desenvolvimento[1] econômico-social interno e as complexas mediações e relações a serem refundadas no âmbito externo.

A catarse remonta a um processo pedagógico de apropriação/aproximação ao movimento da realidade e suas contradições para traçar as ações e táticas políticas-sociais necessárias para a retomada, reassunção e reabsorção do poder político pelo poder social, popular. A pergunta crucial, então, seria: na atual conjuntura política-social, qual o meio, a curto prazo, para que tal objetivo tenha condições de se concretizar a médio e longo prazo? Frente única ou acirramento das polarizações? Quais seus possíveis desdobramentos na atual configuração das relações de força e poder postas?

Essas foram as nuances que permearam as discussões, análises, reflexões, provocações e proposições desenvolvidas ao longo dos dias 25, 26 e 27 de agosto. Devido à relevância da problemática para nosso momento atual e a riqueza oriunda do encontro entre a diversidade de estudiosos, lutadores sociais, autores, editores e pesquisadores, decidiu-se por sistematizar e compartilhar, para assim difundir – esperando provocar e despertar o processo de catarse de e em outros –, aquelas que elencamos como as questões mais pertinentes. Dentre elas, estão: a) como chegamos a atual situação de barbárie social e tomada do poder pela extrema-direita?; b) frente única ou polarizações?; c) questões relativas à democracia; d) guerra de movimento/guerra de posição; e) eleições 2022.

Espera-se que essa sistematização e sua divulgação possam corroborar para a produção de outras e novas catarses onde elas se fazem mais necessárias do que nunca: nos movimentos sociais, nos partidos políticos que se intitulam de esquerda; entre anarquistas, socialistas e comunistas, de modo que possam repensar sua práxis junto as massas, às camadas populares e aos subalternos.

A atual situação de barbárie social e a tomada do poder pela extrema-direita

Há autores, como Rocha (2021), que vem fazendo um esforço para entender como chegamos a atual situação de barbárie social e “dissonância cognitiva[2]” no Brasil. Um dos participantes remonta a uma cronologia de quarenta anos e avalia as variações de ataques e ofensivas da direita e as respostas e enfrentamentos dados pelos movimentos sociais e pela classe trabalhadora.

 No entanto, depois de 21 anos de ditadura militar, o marco da redemocratização é a formação da Assembleia Constituinte (1986) e a elaboração da Constituição de 1988, vulgarmente conhecida como “Constituição Cidadã”. A partir de então, a ideologia jurídica, pautada na defesa da democracia, dos direitos e do Estado de Direito (burguês – Executivo, Legislativo, Judiciário; instituições representativas, etc.), tornou-se o mote daqueles que são denominados de progressistas e das esquerdas, a principal bandeira para as lutas sociais por reformas, enfrentamentos ao poder estabelecido (hegemônico, porque fabrica e detêm o consenso, exercendo domínio) e mudanças.

Sobre a Constituição de 1988, relevante é a ressalva feita por Mascaro (2018, p. 79):

(…) oblitera-se o fato de que a Constituição Federal resultou de um pacto entre classes e grupos dominantes do país, mantendo, em linhas gerais, o arranjo institucional e social da ditadura militar. Não só a Constituinte de 1988 foi convocada pelas autoridades competentes a partir do ordenamento jurídico anterior, ditatorial, como também sua amplitude de atuação foi tolhida institucional e socialmente por partidos, interesses, disputas e meios de comunicação de massa fomentados pela ditadura.

Cabe, também, o complemento de Filho (1999, p. 169 e 170):

(…) a Assembleia Nacional Constituinte (…) integraria os deputados eleitos em fins de 1985, os senadores eleitos nessa mesma ocasião, mas também os senadores que haviam sito eleitos em 1981, que gozavam de mandato. Portanto, ninguém pode sustentar que haviam recebido do eleitorado o poder constituinte originário, mas simplesmente detinham como membros do Congresso Nacional poder derivado. (…) Indubitavelmente, a nova Constituição foi obra de um poder derivado, conquanto a paixão política levasse muitos a sustentar o insustentável – ser uma Constituinte, convocada por uma emenda à Constituição então vigente, composta inclusive por senadores eleitos havia quatro anos, poder originário… Crendo-se detentora de poder originário, a Constituinte editou até novas cláusulas pétreas… Assim se elaborou a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988.

De modo algum essas observações de Mascaro e Filho negligenciam que tal Constituição, apesar de suas limitações, tenha proporcionado algumas conquistas e avanços importantes. O intento é chamar nossa atenção para o fato de que, mesmo com toda a pressão popular sobre a Assembleia Constituinte, ela ainda é uma concertação feita pelo alto.

A partir daí, as esquerdas, os progressistas, os movimentos sociais e a sociedade civil, em geral, passam a depositar todas as suas esperanças de melhorias e mudanças no Estado de Direito burguês, que encarna as instituições representativas, a separação dos poderes, a defesa da liberdade individual, a democracia, enfim, a ideologia jurídica.

O problema, como exposto por Mascaro (2018, p. 60 e 136), é que o

domínio da ideologia jurídica no campo de entendimento das estratégias de transformação social das lutas progressistas e de esquerda. (…) é responsável por ilusões reformistas; de canalização de lutas para que não eclodam, de tal sorte que deságuem em políticas públicas e por elas sejam administradas; de respeito aos poderes judiciários como guardiões da democracia etc. (…) a esquerda brasileira – e, em alguma medida, boa parte da esquerda mundial recente – não é marxista, mas juspositivista, reconhecendo aí o espaço privilegiado da luta política e social. As considerações da esquerda brasileira em defesa cada vez mais aguerrida da Constituição Federal de 1988 dão mostras de seu legalismo derradeiro. (…) Em um longo processo de séculos de penetração de ideologia burguesa nas classes trabalhadoras e nas esquerdas, a legalidade apresenta-se como o imediato da defesa de direitos individuais e sociais, ensejando mecanismos institucionais de proteção dos explorados e oprimidos. Do habeas corpus aos direitos do trabalho, dos direitos políticos ao direito de greve, o campo jurídico apresenta-se como arena confortável para as lutas, chegando a ser considerado marco civilizatório inextricável. (…) A esquerda latino-americana pós-ditadura apostou no direito, na democracia e nas instituições. Seus marcos de compreensão vão desde considerar a democracia como valor universal e a cidadania como solo básico da civilização até insistir no direito como instrumento de transformação social. Tal aposta, devida ao desconhecimento da natureza do direito, do Estado e de seus aparelhos, arma estratégias de ação no interior da sociabilidade capitalista que apenas a reforçam e em função das quais as esquerdas, os trabalhadores, os explorados e os oprimidos sofrerão, necessariamente, maiores reveses.

Embora a emancipação política (a conquista da democracia, materializada através dos direitos políticos, civis e sociais, que compõem a cidadania) seja um “desvio necessário” à luta e ações políticas-sociais, como expõe Marx (2010, p. 39), enquanto desvio não é a forma última, mas apenas mediação, devendo ser entendida como MEIO para se criar as condições para a concretização do fim maior: a suprassunção[3] da sociabilidade capitalista e da própria democracia burguesa.

Mas esse é um processo longo e tortuoso, repleto de avanços e recuos, além de inúmeros desafios que precisam ser equacionados pela apropriação e adequada elaboração dos exemplos das lutas históricas travadas entre capital e trabalho. Quando as batalhas entre esses dois lados se acirram e recomeçam, os meios democráticos devem ser utilizados pela classe trabalhadora, pelas camadas populares e subalternos para levar até às últimas consequências suas reivindicações e exigências políticas-sociais, ultrapassando os limites do próprio direito burguês, que é a sacralidade e segurança, pela força e repressão, da propriedade privada.

Um outro participante recorda que a democracia foi uma conquista da classe trabalhadora, produto de lutas renhidas contra os conservadores e reacionários, fato histórico inegável. Porém – e sempre há um “todavia”, porque se trata das contradições do movimento do real –, a democracia representativa é a forma por excelência de dominação da burguesia, como afirma Lukács (1928). Por intermédio dela, é possível fazer a manutenção da sociedade de classes, reproduzindo as desigualdades sociais e conservando a propriedade privada. Como alerta Lênin (1978, p. 24, 87 e 88, 96):

Nós somos partidários da República Democrática como sendo a melhor forma de governo para o proletariado sob o regime capitalista, mas andaríamos mal se esquecêssemos que a escravidão assalariada é o quinhão do povo mesmo na república burguesa mais democrática. Todo Estado é uma força especial de repressão da classe oprimida. Um Estado, seja ele qual for, não poderá ser livre nem popular. Não é essa República, de fato, que porá termo à dominação do capital nem, por conseguinte, à servidão das massas e a luta de classes; mas dará a essa luta uma profundidade, uma extensão, uma rudeza tais que, uma vez surgida a possibilidade de satisfazer os interesses essenciais das massas oprimidas, essa possibilidade se realizará fatalmente e unicamente pela ditadura do proletariado, arrastando consigo as massas. (Entretanto, é necessário) desenvolver a democracia até o fim, procurar as formas desse desenvolvimento, submetê-las à prova da prática, etc., eis um dos problemas fundamentais da luta pela revolução social (Os itálicos são meus).

Não há Estado, por mais democrático, que não tenha em sua constituição alguma fenda ou restrição por onde forneça à burguesia o meio de lançar a tropa contra os operários, de decretar Estado de sítio, etc., “em caso de perturbação da ordem” – entendei: à menor tentativa da classe explorada para sacudir seu cativeiro e obter uma situação humana. (…) quanto mais a democracia é desenvolvida, tanto mais, em caso de divergência política profunda e perigosa para a burguesia, tem ela probabilidade de lançar-se ao massacre e à guerra civil (LÊNIN, 1979, p.  107, 108).

Ademais, ainda que o Estado sob a forma de “república democrática” possa ser mais vantajoso para a classe trabalhadora, camadas populares e subalternos, seu conteúdo (ou forma social) continua sendo capitalista, remontando a própria origem/natureza do Estado, produto das contradições irreconciliáveis e irremediáveis entre as classes sociais com interesses e necessidades antagônicos, servindo para fazer a manutenção e reprodução da desigualdade social (existência das classes sociais), da propriedade privada e, fundamentalmente, do processo de acumulação e reprodução ampliada do capital, sendo, portanto, um Estado do capital e um Estado capitalista[4] (BOTTOMORE, 1997, p. 134).

Como frisa Mascaro (2018, p. 182):

(…) O Estado não é, diretamente, o burguês ou o capital. Ele pode ser administrado por classes distintas daquelas detentoras do poder econômico – Marx já o ensinava no 18 Brumário de Luís Bonaparte. Então, de fato, há um engajamento social que permite fazer com que o Estado se incline no sentido de variados interesses imediatos. Contudo, tais distintas inclinações da política são doses variáveis de uma mesma forma de sociabilidade. O poder do capital não coordena a política diretamente, mas sempre a preside, em última instância. Deriva dessa determinação última que os ganhos sejam sempre parciais, os avanços retrocedam, os mínimos de sobrevivência se tornem máximos.

Por isso, quando certos governos de esquerda ou progressistas conseguem realizar algumas reformas voltadas aos interesses e necessidades das classes trabalhadores, das camadas populares e dos subalternos, invariavelmente esses ganhos, importantes, sem dúvida, logo são revogados, cortados, reduzidos, até serem extinguidos naqueles governos que personificam os interesses do capital (nacional e internacional) e dos capitalistas (nacionais e internacionais). Daí as reformas serem parciais, os avanços retrocederem e os mínimos de sobrevivência se tornarem máximos, como esclarece Mascaro.

De 2002 a 2016 o Estado esteve sob o governo petista, erroneamente tachado de esquerda, como veiculam propositalmente os meios de comunicação de massas. A trajetória de transformismo político-social do Partido dos Trabalhadores se iniciou no final da década de 1980. Acompanhando seus congressos nacionais é possível vislumbrar a mudança de posicionamento e de táticas, bem como de estratégia, como demonstra Iasi (2012). Hoje, está muito mais para um partido social-liberal, social-democrata do que de esquerda. Mesmo assim, há ganhos políticos para seus adversários mantê-lo, no imaginário social, como representante da esquerda.

O fato de ficar 14 anos no poder causou ressentimentos e rancores em seus opositores, ainda que a possibilidade de reeleição presidencial tenha sido aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por seu próprio pleito, ferindo um dos preceitos daquilo que se concebe como pressuposto da democracia juspositivista (regrada pelo direito e pelas convenções não escritas, que possibilitam o jogo democrático): o revezamento.

Também é preciso recordar que na época do impeachment de Fernando Collor de Mello (1992), foi o PT que se colocou como baluarte da moralidade, hasteando a bandeira anti-corrupção. O ditado popular que diz que “o peixe morre pela boca” se concretiza em 2005, com o escândalo do Mensalão, envolvendo o partido, suas lideranças e figuras notáveis (José Dirceu, Antonio Palocci e o próprio presidente Lula). A imprensa, nada neutra e mantida pela grande burguesia, deleita-se e transforma o fato em espetáculo midiático, detonando a imagem construída pelo partido. Devido ao contexto internacional do boom das commodities, da descoberta do pré-sal, do bolsa família e das relações comerciais do Brasil com os “países emergentes”, Lula se reelege.

Até 2010, Lula foi favorecido pelo contexto do mercado e das relações internacionais, situação que começa a mudar em 2011, o que afetará o governo do seu sucessor, no caso, Dilma Rousseff. A Comissão da Verdade inicia seus trabalhos no governo Dilma, inflamando e provocando o descontentamento e ataques de setores das Forças Armadas, aqueles conhecidos como “linha dura”, onde ganha destaque a figura amorfa do deputado Jair Messias Bolsonaro, que vai ganhando notoriedade e conquistando cada vez mais espaço na mídia.

A Lava-Jato também intensifica seus trabalhos a partir de 2011/2012. Aquilo que inicialmente parecia ser uma guerra contra os “bandidos de colarinho branco”, a primeira vez que a justiça apurava indivíduos da classe dominante, no decorrer das operações revelou-se como uma articulação política entre diferentes poderes e forças para incriminar o PT e sua principal liderança: Lula. Novamente, os meios de comunicação fizeram de todos os atos da Lava-Jato um espetáculo midiático.

Nas eleições de 2014, Aécio Neves atenta contra as regras e o jogo democrático (juspositivista), colocando em dúvida as eleições e seus resultados, denunciando fraude. Jair Messias Bolsonaro se elege como o deputado mais votado ao longo de todo seu tempo como parlamentar. As jornadas de junho de 2013, que tinham como mote central a reivindicação de diminuição das passagens de ônibus, tomaram rumos diversos após a adesão das pessoas contra as ações truculentas e violentas das polícias. A partir desse momento, as ruas são tomadas por vários segmentos sociais. No entanto, um fenômeno é notado: o crescimento da presença dos movimentos de direita[5] (Movimento Brasil Livre – MBL –, Vem Pra Rua, etc.) e junto com eles das pessoas ressentidas com a queda de seu padrão de vida e ascensão ao consumo das camadas populares, ocupando espaços, obtendo coisas, frequentando lugares anteriormente exclusivos às camadas médias. Também foram às ruas todos aqueles descontentes e insatisfeitos com os políticos e seu modo de fazer política, levantando a bandeira do “sem partido” nas manifestações, evidenciando um ódio contra a política e todos os seus militantes, principalmente aqueles das esquerdas, como também socialistas, comunistas, anarquistas e, mais fulminantemente, petistas.

A direita (e a extrema-direita) passa a canalizar a raiva, o ódio, o ressentimento, as insatisfações, o desamparo, a insegurança, o medo (esses dois últimos aspectos rondam o cotidiano das classes trabalhadoras, das camadas populares e dos subalternos que temem a insegurança econômica e os excessos e radicalismos das esquerdas até mais do que as próprias camadas médias, como demonstra Singer – 2018) que tomam conta de significativos segmentos das classes sociais. Mascaro (2018) tem toda razão ao dizer que a esquerda é juspositivista[6] e a direita é não-juspositivista[7]. Enquanto as esquerdas, em sua maioria, pensam as lutas sociais e as formas de ofensiva e defensiva mediante as instituições representativas do direito, das leis, dos poderes constituídos, a direita sabe muito bem que é o poder, o embate e medição de forças entre os adversários políticos (e de classe) que, realmente, conformam as decisões e a ativação dos poderes, das instituições, das leis e de todo arcabouço jurídico e legal. Para aqueles que pensam de modo não-juspositivista, como é o caso da direita e da extrema-direita, “a efetividade do poder passa por sobre qualquer pretensa legalidade” (MASCARO, 2018, p. 62).

Logo,

quando a esquerda é juspositivista e a direita, não juspositivista, ocorre que aquela porta um discurso falseado sobre a política, enquanto esta repõe seus termos no chão de uma verdade, ainda que parcial ou horrenda. Algo da inclinação atual de eleitores de muitos países pela direita advém dessa aproximação à crua verdade do poder, castigando a democracia idealizada e falsa de uma esquerda que acaba por ser, ao fim, mistificadora (MASCARO, 2018, p. 62).

Essa pode ser uma verdade difícil de reconhecer e de admitir pelas esquerdas. Todavia, é uma necessidade para uma mudança de tática, de posicionamentos, de discursos/narrativas, e mesmo redefinição de estratégia, buscando rever e refundar sua proposta de projeto político-econômico-sociocultural, reaproximando-se das massas, da classe trabalhadora e dos subalternos. A crise sanitária e pandêmica da SARS-COV-2 escancarou os verdadeiros interesses da classe capitalista (regida pelo mercado internacionalizado) e as desigualdades entre as classes sociais, aprofundando-as e intensificando a precarização das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, das camadas populares e dos subalternos, com total complacência do poder executivo brasileiro. A direita e extrema-direita vivem uma situação de interregno[8], o que ocasiona a perda de hegemonia, aumentando a instabilidade política, agravada pela insegurança econômica.

Nesse quadro conjuntural de incertezas, estando a caixa de Pandora totalmente aberta, além dos absurdos e calamidades, também a esperança disputa seu lugar, acenado pelo processo eleitoral presidencial, de governadores e deputados de 2022. Lamentavelmente, o juspositivismo segue, com isso, fortalecido, ao invés de ser combatido e superado pelas esquerdas. Mais uma vez, as apostas para reaprisionar as mazelas e fragelos de volta à caixa de Pandora recaem nas eleições, depositando as esperanças no retorno (ou aparecimento) de um (“novo”) “demiurgo” que seja capaz de restabelecer a “lei” e a “ordem”, organizando a bagunça e freando a barbárie generalizada.

Frente Única ou Polarizações

O enfrentamento do cenário de crise de hegemonia da direita e extrema-direita e da proliferação de barbaridades sociais e desastres econômicos (crise de energia, aumento dos combustíveis, dos alimentos, da inflação… enfim, carestia insuportável de vida) orquestrados pelo poder executivo (não tendo mais o beneplácito dos capitalistas e atrapalhando o processo de acumulação ampliada do capital) coloca duas alternativas: Frente Única ou Polarizações.

A construção de uma Frente Única, coligando as esquerdas (moderadas, de centro, radicais, democráticas), necessitaria de uma definição muito clara do posicionamento (histórico, ideológico, político, econômico, sociocultural) de mundo de cada uma delas, algo que, infelizmente, jamais se viu quando das costuras para a afirmação dessas frentes “democráticas”. Na verdade, antes dessa associação temporária, que tem prazo de duração (enquanto perdurar a crise de hegemonia), o apropriado seria uma confrontação dos projetos nacionais-políticos-econômicos das esquerdas, deixando muito claro para a classe trabalhadora, para as camadas populares e subalternos a forma histórico-social, o tipo de mundo, de sociabilidade que cada uma delas plasma e defende, e por quais meios procurará concretizar tal projeto, demonstrando a relação e qualificação entre meios e fim almejado.

Logo, mais adequado e rico em consequências, quanto para resguardar o êxito das futuras – que já devem se fazer presentes – ações, seria ocorrer as Polarizações, entendidas enquanto confrontação de projetos, para, aí sim, poder construir, de forma consciente e consequente, a tal Frente Única. Não é demais relembrar o que diz Engels em artigo publicado na Gazeta Alemã de Bruxelas, onde sublinha que “os objetivos finais dos comunistas vão muito para além do estabelecimento das liberdades democráticas burguesas”, ainda que, por outro lado, “o seu objetivo imediato (seja) a conquista da democracia” (KARL MARX, 1983, p. 156), já que ela serve à classe trabalhadora como arma contra a própria burguesia, radicalizando as concessões que conseguiram arrancar dela através da luta de classes. Porém, é importante destacar que nesse período de radicalização da democracia, que culmina com a superação da própria democracia burguesa, “os comunistas são aliados dos democratas, (no entanto) não se lhes pode exigir concessões aos seus parceiros, nem impedi-los de criticar as suas concepções erradas” (ENGELS apud KARL MARX, 1983, p. 156).

Algo de teor semelhante é encontrado no Manifesto de 1848:

(…) em todas as partes os comunistas trabalham pela união e pelo entendimento entre os partidos democráticos de todos os países (com consciência dos limites dessa união e estabelecendo suas diferenças qualitativas substanciais). Os comunistas recusam-se a ocultar suas opiniões e suas intenções. Declaram abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados com a derrubada violenta de toda a ordem social até aqui existente (ENGELS; MARX, 1989, p. 99).

Precisamos de momentos ricos em debates, exposição de projetos e dos meios para realiza-los pelas esquerdas. Para isso, os meios de comunicação precisam ser popularizados, isto é, enquanto concessão pública deve ser garantida a expressão e palavra aos movimentos sociais e demais organizações políticas, culturais e econômicas da classe trabalhadora, das camadas populares e subalternos, a fim de que tenham lugar e espaço para expor e veicular suas ideias, atingindo todo o contingente populacional do território nacional, fazendo frente aos capitais privados que detêm concessão pública. Só assim se conseguirá iniciar o processo de

desintoxicação das massas populares, que precisam libertar-se do aburguesamento inevitável das condições de existência operária sob o capitalismo e das influências pequeno-burguesas; e o objetivo final, por sua vez, deve ser a criação e a emulação do espírito revolucionário das próprias massas, elevando sua consciência de classe e, concomitantemente, sua combatividade como e enquanto classe (FERNANDES, 1978, p. 39).

Mais uma vez, reporta-se a Mascaro (2018, p. 39 e 42), para quem a batalha ideológica é a tarefa primordial a ser empreendida pelas esquerdas nos tempos hodiernos:

em tempos como o atual, a disputa ideológica mostra-se central na luta de classes. Nas raras vezes em que a humanidade alcançou patamares de avanço social, houve intensa mobilização das massas […] (É preciso) desarmar a blindagem ideológica do povo, para que, em algum momento, 99% da população possa fazer frente a 1% dos capitalistas. A forja ideológica é precisamente a única ponta do amálgama da sociabilidade burguesa que permitiria abrir a disputa e ser trampolim de uma luta majorada. Se é contra o capital, não se pode amparar nos capitalistas; se é contra o Estado, que é forma social derivada do capital, não pode contar com sonhos de republicanismos, legalidades ou democracia; somente as massas podem construir um projeto em seu favor. Só a luta no campo da formação da ideologia, das subjetividades e das classes, dos grupos e dos partidos permite, em momentos de hecatombe extrema e de blindagem total da reprodução política e econômica capitalista, avançar na preparação e uma alteração capaz de fazer superar as condições sociais. (…) o povo, ainda que castigado e com feridas a cada vez salgadas, está constituído, neste momento, em sua maioria, para entender-se e agir contra si próprio. Não houve vanguarda nem partido, nem grupo nem governo suficientes, nem mobilização ampla para a luta popular […] não há um bloco histórico de contraposição à regressão dos tempos presentes. (…) No que se refere à contratendência dos movimentos sociais ativos, da parte das lutas populares e dos movimentos sociais, também se revelam insuficiências na ideologia, na compreensão, nas táticas e nas estratégias. Ideologicamente, partidos de esquerda e movimentos sociais defendem as instituições estatais, a ampliação da inclusão pelo consumo, a legalidade, a república, a democracia.

A dissonância cognitiva precisa ser superada pelo retorno, e ocupação definitiva, da inteligência, histórica e cientificamente fundamentada. Não bastam as redes sociais para as esquerdas tentarem se recolocar no campo político-social e se reaproximar das massas. O rádio e a TV, apesar de todos os avanços tecnológicos, ainda são os mais acessíveis para as camadas populares e rurais. Daí a importância crucial de garantir a ela e a todo o campo contra-hegemônico, anti-capitalista, anti-imperialista, anti-colonialista, através de lutas e conquista, a concessão pública dos meios de comunicação de massa. Sem isso fica quase impossível um nivelamento mínimo das forças da classe trabalhadora frente às forças do capital e dos capitalistas. É preciso disputar esse poder, porque hoje, nas mãos dos capitais privados, ele fabrica as subjetividades (ideias, pensamentos, sentimentos, emoções, desejos, valores, condutas) conservadoras e reacionárias.

Questões relativas à democracia

A democracia não é neutra, muito menos pura. Acreditar nisso é viver uma ilusão. Aliás, é justamente tal ilusão que sustenta a democracia do direito burguês. Como já dizia Lênin, ou se trata de uma democracia burguesa ou de uma democracia proletária/camponesa:

(…) enquanto existirem classes distintas, não se pode falar em “democracia pura”, mas somente em democracia de classe. (…) na sociedade comunista, a democracia, regenerada e transformada em hábito, extinguir-se-á sem jamais ter sido “democracia pura”. A “democracia pura” não é senão frase hipócrita de liberal, destinada a enganar aos trabalhadores. A história conhece somente a democracia burguesa, que substituiu o feudalismo, e a democracia proletária, que suplanta a democracia burguesa (LÊNIN, 1979, p. 105).

A democracia burguesa, que é a que se vive e a que vige em vários países do ocidente – ou ocidentalizados –, apesar de burguesa, oferece vantagens importantes à classe trabalhadora, as camadas populares e aos subalternos. Mas ela é apenas meio e não fim último, não é um valor universal, mas “desvio necessário” (emancipação política: parcial, insuficiente, mas relevante como instrumento de luta que pode pôr em questão a própria democracia burguesa, suprassumindo-a).

Lênin denuncia a estreiteza e relatividade da democracia liberal burguesa, onde

no mais democrático dos Estados burgueses, as massas oprimidas chocam-se a cada passo com uma contradição gritante entre a igualdade formal, proclamada pela “democracia” dos capitalistas, e as milhares de restrições e de artifícios reais, que fazem dos proletários escravos assalariados. É precisamente essa contradição que abre os olhos das massas sobre a podridão, a falsidade, a hipocrisia do capitalismo (LÊNIN, 1979, p. 109).

E é também essa contradição que expõe as ilusões envoltas na democracia. É uma necessidade histórica-social levar a democracia até às últimas consequências, algo que jamais será feito pelos progressistas, pelos sociais-democratas, pelos defensores da democracia, das instâncias e instituições representativas do Estado de Direito. São Marx e Engels (MARX; ENGELS, 1982, p. 187 e 188) que evidenciam o que significa levar a democracia (burguesa) até às últimas consequências:

Os operários não podem, naturalmente, propor quaisquer medidas diretamente comunistas no começo do movimento. Mas podem: 1) obrigar os democratas a intervir em tantos lados quanto possível da organização social até hoje existente, a perturbar o curso regular desta, a comprometerem-se a concentrar nas mãos do Estado o mais possível de forças produtivas, de meios de transporte, de fábricas, de caminhos-de-ferro, etc.; 2) têm de levar ao extremo as propostas dos democratas, os quais não se comportarão em todo o caso como revolucionários mas como simples reformistas, e transformá-las em ataques diretos contra a propriedade privada; por exemplo, se os pequeno-burgueses propuserem comprar os caminhos-de-ferro e as fábricas, têm os operários de exigir que esses caminhos-de-ferro e fábricas, como propriedade dos reacionários, sejam confiscados simplesmente e sem indenização pelo Estado. Se os democratas propuserem o imposto proporcional, os operários exigirão o progressivo; se os próprios democratas avançarem na proposta de um [imposto] progressivo moderado, os operários insistirão num imposto cujas taxas subam tão depressa que o grande capital seja com isso arruinado; se os democratas exigirem a regularização da dívida pública, os operários exigirão a bancarrota do Estado. As reivindicações dos operários terão, pois, de se orientar por toda a parte segundo as concessões e medidas dos democratas (isso num primeiro momento do processo da ditadura democrática do proletariado e do campesinato).

Esse é o momento de transitar da democracia burguesa para a democracia do proletariado e do campesinato, ou para a ditadura democrática, como elucida Lênin (s/d, p. 99 e 116):

(…) A palavra de ordem de ditadura “democrática” é justamente a expressão do caráter histórico limitado da atual revolução e da necessidade de uma nova luta no terreno de uma nova ordem de coisas, pela libertação total da classe operária de todo o jugo e toda exploração.

Do ponto de vista burguês vulgar, o conceito de ditadura e o conceito de democracia se excluem. Não compreendendo a teoria da luta de classes, acostumados a ver na arena política exclusivamente as pequenas intrigas dos diversos círculos e círculilos da burguesia o burguês entende por ditadura a anulação de todas as liberdades e garantias democráticas, as maiores arbitrariedades e o maior abuso do poder no interesse pessoal do ditador.

A ditadura democrática é o momento da democracia do proletariado e do campesinato, da maioria em prol, verdadeiramente, da maioria, por isso mesmo pode já ser considerada uma “não-ditadura” mas sim uma democracia social, onde é exercido o poder social e a soberania popular, consubstanciando o transitar para a transição do definhamento do Estado, dado que este não é senão

uma instituição transitória, da qual alguém se serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isso nossa proposta seria substituir, por toda parte, a palavra Estado por Gemeinwesen (comunidade), uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune (comuna) (ENGELS, p. 56. In: MARX, 2012).

Nesse momento do processo da luta social revolucionária, o Estado é já um não-Estado, ou um “Estado sem Estado”, como diz Gramsci (2004, p. 244). Trata-se do momento em que a classe trabalhadora, os subalternos, as massas populares, organizadas e em luta contra os capitalistas, tomam o poder político do Estado de volta para si, o reassume e reabsorve, de modo que ele deixa de ser político e se torna social, de político passa a ser função administrativa que qualquer um pode assumir e exercer. Trata-se de um “Estado (…) tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na sociedade regulada” (GRAMSCI, 2002, p. 244), isto é, autodeterminada pelos próprios produtores/trabalhadores. Ainda, segundo Gramsci (2002, p. 244): “pode-se imaginar o elemento Estado-coerção em processo de esgotamento à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético) (…) ‘imagem’ de Estado sem Estado”.

Guerra de Posição e Guerra de Movimento

Para que a mobilização e organização das massas transcenda positivamente o momento corporativo/reivindicativo, levando a democracia até às últimas consequências, é necessário que os instrumentos mediativos-organizativos (partidos, associações, movimentos sociais, etc.) da classe trabalhadora, das massas populares e dos subalternos trabalhem para realizar a “desintoxicação” das massas populares, de modo que sua consciência de classe seja elevada e se torne revolucionária, pois

a revolução não se faz sob encomenda”. Para produzi-la, é preciso elevar a consciência revolucionária da classe operária e transformar a luta de classe não só em luta especificamente política mas, ainda, em luta política revolucionária (FLORESTAN, 1978, p. 35 e 41).

A ditadura democrática, a luta de classes revolucionária deve ter como cerne nevrálgico a guerra de movimento (tomada e ocupação das ruas e de todos os espaços-instituições sociais pelos trabalhadores e trabalhadoras, estruturados num poder paralelo ao poder oficial do Estado de Direito burguês, que será pressionado permanentemente pelo poder social), porque dela depende o êxito ou fracasso dos demais movimentos táticos de tomada do poder político existente (guerra de posição) para sua posterior reabsorção/reassunção pelo poder social. A guerra de movimento e a guerra de posição se combinam, como esclarece Machado (1989, p. 237. Os parênteses são nossos):

Sem cair no culto da solução via parlamento e sem abdicar da possibilidade de recurso à violência, quando essa fosse necessária, Engels percebeu na associação entre estas duas alternativas, a saída para o impasse. A revolução demandava, portanto, certas mediações necessárias, para que se pudesse, de um lado, isolar politicamente a burguesia, utilizando-se do próprio parlamento burguês, como forma de forçar certas conquistas e de denunciar os seus limites (Esse dado é crucial: denunciar os seus limites, ou seja, as reformas servem justamente como meio de evidenciar os limites instransponíveis do capital em se reformar estruturalmente). Por outro, era necessário conquistar espaços, cada vez mais concretos e amplos, para que se pudesse aumentar a base social de apoio do proletariado.

A guerra de posição tem seu valor enquanto forma de fortalecimento contínuo do poder social das massas populares, da classe trabalhadora e dos subalternos, organizados de modo permanente, independente e autônomo.

O que esperam das eleições os revolucionários conscientes, os operários e camponeses (…)? esperam que o esforço eleitoral do proletariado consiga pôr no Parlamento um bom núcleo de militantes do Partido Socialista; e que tal núcleo seja bastante numeroso e aguerrido para tornar impossível a qualquer líder da burguesia constituir um governo estável e forte e, por conseguinte, para obrigar a burguesia a se pôr fora do equívoco democrático e da legalidade, criando assim uma sublevação dos estratos mais profundos e amplos da classe trabalhadora contra a oligarquia dos exploradores (GRAMSCI, 2004, p. 303 e 304).

O militante e pensador sardenho esclarece sobre o papel a ser desempenhado pelos socialistas/comunistas no parlamento: denunciar os conchavos, acordos e projetos realizados nos bastidores – e esgoto – do fazer político da democracia burguesa, informando as massas subalternas e a classe trabalhadora das táticas e planejamentos da burguesia por detrás de cada projeto de lei, emenda parlamentar, política pública, etc., tornando impossível à burguesia constituir um “governo estável e forte” (hegemonia), estando em contato direto com o “povo” (a classe trabalhadora do campo e da cidade que são, efetivamente, a maioria), alimentando a guerra de movimento, a revolução em permanência dos trabalhadores(as), porque dela depende o êxito ou fracasso do processo revolucionário.

O trabalho do Partido Revolucionário – muito diferente dos partidos políticos institucionalizados, cujo objetivo primeiro e último são os processos eleitorais para ocupação de cargos no legislativo e executivo visando a defesa dos seus interesses particulares, enviesada pela falácia de defesa dos interesses gerais – é, além de elevar a consciência das massas para uma consciência revolucionária em prol da luta revolucionária, mobilizar e organizar os trabalhadores e trabalhadoras de forma tática e disciplinada para desempenhar as tarefas da luta política-social do processo revolucionário, não caindo nas armadilhas constitucionalistas, parlamentaristas e da ideologia jurídica que freiam a energia e ânimo das massas. Cabe ao Partido Revolucionário fazer as “revelações políticas”, expondo as tramas e tramoias de cada movimento da classe burguesa e suas frações de classe, bem como a lógica de operação e funcionamento da acumulação capitalista no estágio atual, a fim de que as camadas populares, a classe trabalhadora e os subalternos possam levar até às últimas consequências a luta de classes e a batalha política e ideológica travada entre elas.

Eleições 2022

Após todo o exposto, fica patente que as eleições de 2022 não são a catarse. Na verdade, esta depende de um trabalho de médio e longo prazo de trabalho de base para a elevação da consciência de classe das massas populares, da classe trabalhadora e dos subalternos. Somente a consciência revolucionária torna possível o desenvolvimento do espírito revolucionário das massas. Não é por outra razão que Mascaro (2018) assevera que o mais urgente é conquistar as subjetividades dos trabalhadores e trabalhadoras através da forja ideológica, desnudando a realidade propositalmente distorcida e redesenhada por versões e narrativas “paralelas”, como também pela disseminação de Fake News.

O trabalho de base deixou de ser feito há algumas décadas pelas esquerdas brasileiras e pela ala “progressista” da Igreja Católica (Teologia da Libertação), cujos lugares foram ocupados pelos evangélicos e neopetencostais – além das milícias, que se aproveitaram da insegurança e do medo dos moradores das periferias para impor uma nova ordem, consequência do permanente estado de abandono e desamparo promovidos pelo Estado, que não os assiste.

Retomar esse trabalho de base é o principal desafio. Mobilizar e organizar os indivíduos para que eles (re)descubram que o poder não só emana, mas é das massas populares, da classe trabalhadora, dos subalternos; que a união e solidariedade entre eles é capaz de exercer pressão social sobre os governantes e demais indivíduos investidos em cargos políticos, em instituições públicas e no Estado de Direito. As massas precisam despertar e se organizar, de forma permanente, independente e autônoma, como poder paralelo, estruturando suas comunas, passando a disputar a agenda política, as pautas socioeconômicas, construindo um projeto político-econômico-sociocultural de desenvolvimento contra-hegemônico, anticapitalista, anti-imperialista, anti-colonialista, anti-capital.

Os recentes enfrentamentos e resistência dos nossos irmãos latino-americanos na Bolívia, na Colômbia, no Chile; o internacionalismo das lições do Curdistão e de outros países no resto do mundo demonstram que há, sim, um outro caminho, uma outra alternativa e a possibilidade de construção de uma outra forma histórica-social, de um outro modo de vida e de produção. O capitalismo, e a reprodução ampliada do capital, não são o fim da história. Passado, presente e futuro são a mesma coisa. Os modos e meios do passado, caso não sejam interrompidos, corrigidos, tendo suas rotas alteradas, tornam-se o presente, e ao se tornarem o presente, orquestram, organizam, constroem o futuro. Afinal, tudo é processo histórico-social, de modo que o hoje depende integralmente do ontem. Quem domina o presente, controla o passado, e quem controla o passado, controla o futuro, como escreveu George Owell.

Precisamos retomar nosso lugar de sujeitos da história, mesmo que ela não seja feita segundo a nossa vontade. Ainda assim, temos responsabilidades e decidimos perante as condições e circunstâncias postas, produzindo consequências que abalam o passado, marcam o presente e influenciam o futuro de toda a humanidade. Essa é a catarse que precisa ser produzida para que, como Fênix, renasçamos das cinzas, ainda mais fortes, e nos coloquemos em marcha, numa organização permanente, construindo as condições objetivas e subjetivas para transitar para a transição que possibilita a construção de novas relações sociais e de produção. Ninguém mais fará a história em nosso nome. Nós a faremos por nós!

Referências bibliográficas:

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ENGELS, Friedrich. Introdução às lutas de classe em França de 1848-1850. In: MARX/ENGELS. Obras Escolhidas. Em três Tomos. Tomo I. Lisboa, Moscovo: Edições “Avante!”; Edições Progresso, 1982.

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FERNANDES, Florestan (Org.). Lênin: política. 2 ed. Trad. Carlos Rizzi. São Paulo: Ática, 1978. (Grandes Cientistas Sociais; 5)

FERNANDES, Sabrina. Sintomas Mórbidos – a encruzilhada da esquerda brasileira. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

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KARL MARX – Biografia. P. N. Fedosseiev (et. al.). Lisboa: Edições Avante; Moscovo: Edições Progresso, Instituto de Marxismo-Leninismo anexo ao CC do PCUS, 1983.

MACHADO, Lucília R. de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez/ Autores Associados, 1989.

MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Seleção, tradução e notas Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012. (Coleção Marx-Engels)

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Apresentação [e posfácio] Daniel Bensaid; tradução Nélio Schneider, [tradução de Daniel Bensaid, Wanda Caldeira Brant]. São Paulo: Boitempo, 2010. (Coleção Marx-Engels)

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MASCARO, Alysson Leandro. Crise e Golpe. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra Cultural e Retórica do Ódio – crônicas de um Brasil pós-político. 1 ed. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021.

SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Notas:

[1] E não crescimento que, invariavelmente, atende aos interesses dos capitalistas e ao processo de reprodução ampliada do capital, e não aos interesses dos indivíduos sociais.

[2] As mediações são substituídas pelas representações, versões, narrativas e teorias conspiratórias. Os rumores prevalecem sobre os fatos. Estimula-se incertezas, inseguranças, dúvidas, gerando pânico moral e medo.

[3] A “suprassunção” (aufhebung) é uma categoria fundamental do pensamento hegeliano, utilizada por Marx. Engloba três sentidos que compõem momentos do processo de movimento do real: supressão/conservação/elevação, ou, superação/aniquilação/conservação. Acompanha o vir-a-ser do real, onde o SER e o NÃO SER não apenas são aquilo que é e aquilo que não é, como também, determinidades que vão mudando seu estado atual, de modo que o ser se transforma no não-ser e o não-ser em ser; o ser deixa de ser e o não-ser vem a ser. A suprassunção é o movimento relativo à transição do que é, sendo, deixando de ser para ser outra coisa. Pode-se dizer que, enquanto movimento do real, é mediação. Há, portanto, nos momentos do movimento do SER e NÃO-SER superação/conservação/elevação, ou seja, o estado anterior é superado, ainda que conserve sua materialidade substancial, porém adquire novo significado e nova forma, elevando-se em relação a sua determinidade constitutiva anterior, permanecendo aberto a novas determinações. É o movimento perpétuo do devir, do vir-a-ser, reiterando a imutabilidade da mudança no processo histórico-social.

[4] O Estado do Capital, dado que objetiva assegurar a regulação, regulamentação e administração das relações sociais de produção capitalistas para garantir a extração da mais-valia da força de trabalho, do trabalho assalariado; a sacralidade da propriedade privada, a acumulação exponencial do valor e a reprodução das condições para a manutenção do modo de produção capitalista[4]. Mas também é o Estado capitalista, pois as frações da classe dominante dispõem de aparelhos privados de hegemonia (meios de comunicações de massa, Institutos, Fundações, etc.) para fabricar o senso comum, o consenso, transformando-o em “políticas públicas” e leis, além de deter influência direta e indireta sobre a política e os políticos, os quais acabam sendo intermediários dos interesses e necessidades dessa classe (e não de toda a sociedade) perante o aparelho de Estado, havendo entre eles congruência ideológica. Os que exercem o poder de Estado se unem e beneficiam do poder econômico das classes proprietárias, consecutivamente, dominantes.

[5] Em escala mundial, a direita vem se articulando desde a década de 1980. No Brasil, com o processo de reabertura democrática, podendo a anistia de 1979 ser considerada seu marco, já ocorre a movimentação das forças contrárias dentro das próprias Forças Armadas, como também nas frações da classe dominante alinhadas e subordinadas aos interesses do grande capital internacional. A direita e a extrema-direita angariam ainda mais força, simpatia e aderência após a crise de 2008. A partir de 2010, assiste-se a escalada da direita e extrema-direita aos cargos de governo de países europeus, assim como em 2016 ocorre a ascensão de Donald Trump, nos Estados Unidos e, em 2018, Bolsonaro, no Brasil.

[6] Por juspositivismo entende-se o direito pautado nos fatos sociais (condutas humanas). Parte, portanto, do que é, do que está posto (positivo) para estabelecer as leis, os códigos de conduta, as regras, as normas, etc. Daí as leis serem revogáveis, variáveis e mutáveis, acompanhando as mudanças dos fatos sociais. De todo modo, as leis, as instituições, o Estado funcionam, segundo essa concepção, conforme reza o ordenamento jurídico, estabelecendo as funções de cada poder, órgão, instituição e a dinâmica das relações sociais. Trata-se, assim, de uma questão técnica. A desigualdade de poder na relação de forças entre as classes sociais e sua influência – ou falta dela – sobre os poderes executivo, legislativo e judiciário, suas articulações para defender e manter seus interesses, que envolvem domínio, luta, força e poder, não é considerada. Negligencia-se as contradições e o movimento da realidade e, acima de tudo, a luta de classes. Para Mascaro (2018, p. 61), essa é uma leitura errônea, falseada e ideológica da realidade, mas que, infelizmente, “domina a formação técnica dos juristas pelo mundo”. Compreende três modalidades: 1) pensamento juspositivista eclético: “toma o direito positivo como herdeiro ou canalizador de valores que lhe são prévios, sobretudo no século XIX”; 2) pensamento juspositivista estrito: “se reduz à consideração do direito como normatividade estatal posta, posição que floresce no século XX; 3) pensamento juspositivista “ético”: “considera o direito, por sua forma, portador de valores de democracia e dignidade humana, leitura dita inovadora que adentra o século XXI”.

[7] Os não juspositivistas compreendem que “o direito não se encerra em quadrantes institucionais estatais nem pode ser pensado como técnica científica nos moldes de normas postas. Afastando as ideologias liberais e éticas do campo jurídico, desnuda-se, então, a manifestação de poder como núcleo do direito. O fenômeno jurídico passa a ser pensado de como existencial, a partir de sua natureza decisória, hermenêutica, casuística, de força e poder. (…) Tais visões não juspositivistas, por mais distintas entre si e ainda que insuficientes, já possibilitam compreender o direito de modo mais apropriado, a partir do poder, da dominação, da luta. Raramente a política de esquerda, fincada nas instituições e no respeito à tecnicidade da democracia e do republicanismo (liberal, portanto, ainda que se repute progressista), consegue alcançar tais parâmetros de realidade e trabalhar a partir deles” (MASCARO, 2018, p. 61 e 62).

[8] “O período do interregno é marcado principalmente pela perda de consentimento. (…) é possível governar com a coerção, sendo isso uma dominação, mas a hegemonia depende do consentimento, que é mais duradouro, estável e se reproduz com facilidade no senso comum. Quando há perda de consentimento, há crise de hegemonia” (FERNANDES, 2019, p. 101).


* Iael de Souza é Professora Adjunta da Universidade Federal do Piauí, Teresina. Lotada no Curso de Licenciatura em Educação do Campo, CCE-UFPI/Teresina; colaboradora do curso de Ciências Econômicas do CCHL-UFPI/Teresina; pesquisadora do NESPEM (Núcleo de Estudo e Pesquisa em Educação e Emancipação Humana), CCE-UFPI, Teresina; Pesquisadora do NETSS (Núcleo de Estudo em Trabalho, Saúde e Subjetividade), UNICAMP/SP. E-mail: [email protected].

** Ângelo Magalhães Silva é Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Rio Grande do Norte. Departamento de Ciências Humanas. E-mail: [email protected]

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1 comentário em “Catarse – Eleições 2022: Frente Única e Polarizações”

  1. Bom artigo! Só tomaria cuidado com a citação do “Manifesto”, porque ela não se aplica hoje da mesma forma – fazê-lo leva à terrível confusão entre a democracia revolucionária anti-feudal e o atual democratismo anti-ditadura-burguesa. “Em todas as partes os comunistas trabalham pela união e pelo entendimento entre os partidos democráticos de todos os países” é uma referência aos partidos democráticos revolucionários da burguesia, que não existem mais há séculos. Marx faz um balanço crítico justamente de como, em 1848, faltava ainda clareza concreta em suas formulações sobre o que significava “demarcar” o proletariado contra essas ilusões democráticas gerais. Vide:
    https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm

    e em especial:
    https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/04/rev_tipo.htm

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