Antipsiquiatria e antipsicanálise

Por Ignacio Martín-Baró, via Uca.Edu, traduzido por Marianna Ferreira Rodrigues, revisão técnica por Valentina Sofía e Filipe Boechat

Antipsiquiatria e antipsicanálise são expressões de uma nova consciência social sobre o condicionamento das ciências e, muito mais, sobre a alienação da prática profissional. Uma consciência disposta a não seguir ocultando a verdade em benefício de uns poucos para prejuízo das massas oprimidas.


Estar na moda tem suas vantagens e desvantagens. O castiçal facilmente se converte em pelourinho. E a mesma tribuna pública que serve para a homenagem, pode chegar a exercer como patíbulo. Isto é o que está acontecendo com as ciências psicológicas que, gozando como gozam, de uma apreciação incomum e de uma confortadora demanda, têm atraído demasiadamente o olhar para si mesmas. E o olhar persistente vai se fazendo, pouco a pouco, crítico, descobrindo as rugas por trás da maquiagem.

Nesse contexto de atenção, que implica experimentação e estudo, explica-se o surgimento dos “anti”: uma antipsiquiatria, uma antipsicanálise e – não há de tardar – uma antipsicologia. Oposições que não se dirigem tanto à ciência em si mesma quanto aos seus condicionamentos ideológicos. Não se trata de lutar contra a psiquiatria enquanto ciência da enfermidade psíquica; luta-se contra uma concepção de enfermidade psíquica demasiado condicionada por uma ideologia e por um tipo de sociedade; trata-se não de destruir a ciência, mas de purificá-la de um entreguismo, mais ou menos inconsciente, que, de fato, subordina a verdade aos interesses dos poderes estabelecidos. É bem significativo que a ciências psicológicas de origem americana tenham como critério e ideal de saúde mental o “ajuste” (não a adaptação, termo muito mais ambicioso e complexo, mesmo que às vezes tenham sido usados como sinônimo), convertido finalmente em uma acomodação conformista à sociedade estabelecida. Contra essa abordagem deplorável, surgem, com todo o vigor de uma ciência cada vez mais madura e, portanto, mais segura de si mesma, críticas mais radicais dos mais diversos campos.

O que é a antipsiquiatria? É um movimento que, consciente da historicidade de toda ciência, afirma que as definições de saúde e enfermidade mental comportam um juízo de valor e, portanto, implicam em uma ideologia. “No que diz respeito às muitas formas psiquiátricas – diz Berlinger em seu apaixonante livro Psiquiatría y Poder -, a definição é mais social que objetivamente científica, ou seja, se postula em termos de incompatibilidade com o modo de vida comum”. Isso quer dizer que a enfermidade mental, em muitos casos, constitui um recurso último e precioso para eliminar do jogo social aqueles que, em seu modo de viver, opõem-se ao sistema estabelecido ou não querem entrar em suas categorias. “É um louco”. “Ele patina”. E nem sequer se pretende entrar com ele em razões ou em lutas; simplesmente é detido em um hospital psiquiátrico. Como em Laranja Mecânica de S. Kubrich, a clínica substitui a prisão, e se entrega ao paciente, criminoso pelo seu desacordo com a sociedade, nas mãos dos especialistas no cérebro, nos reflexos e nas forças instintivas, convertidos agora em guardiões do poder estabelecido.

Que este é o caso foi amplamente provado pelo que aconteceu há algum tempo no hospital psiquiátrico de Gorizia, onde a equipe médica encabeçada pelo Dr. Basaglia (autor de El enfermo Artificial, terrível alegação sobre essa situação), se negou a cumprir com seu papel carcerário. A única notícia de que se deixaria em liberdade “os loucos” provocou pânico na população e se chegou até a um enfrentamento com a polícia. Com poucas variações essa situação tem se repetido em diversos lugares que tem pretendido tratar os enfermos como simples seres humanos, cujas doenças não os impedem de ser pessoas. Terá razão então Szasz quando afirma que a enfermidade mental é simplesmente uma conduta divergente, ou E. Corri quando diz que a loucura é um “comportamento normal em relação às situações anormais”? Em qualquer caso, não cabe nenhuma dúvida de que a enfermidade mental não é só um juízo de valor negativo, condicionado pela sociedade que o emite, mas que muitas vezes ele se converte em um juízo repressivo. G. Jervis tem sido capaz de escrever que “se está voltando a descobrir nestes anos que os loucos dos manicômios não chegaram a ser loucos por culpa da evolução de um processo patológico, mas sim porque os hospitais psiquiátricos tradicionais são fábricas de enfermos”.

A antipsiquiatria se pergunta abertamente a razão de todo esse estado das coisas. Que interesses se ocultam por trás dessas formas sutis de repressão? Que lacunas se tratam de preencher com essas categorias? Que defeitos se pretendem ocultar com esses tratamentos psiquiátricos? Eis aqui a pergunta de fundo que incentiva o movimento da antipsiquiatria. Uma pergunta consciente e voluntariamente política. Porque política é, sem dúvida alguma, a opção inconsciente da psiquiatria atualmente em uso. Um opção pelo sistema estabelecido, pelos valores do individualismo, do consumo e da competição, o que, para nós latinoamericanos, e, em geral, para todos na pobreza é algo como uma opção da psiquiatria a favor de nossa opressão e escravidão eternas. Assim, não é de se estranhar – como aponta Ennis em seu livro Prisioners of Psychiatry – que sejam os pobres, os negros e os idosos os que mais são isolados contra sua vontade em centros psiquiátricos. Nem é de se surpreender que, no campo profissional da psicologia, os psicólogos se preocupem mais com a seleção e acomodação do trabalhador à fábrica, escritório ou comércio, que à socialização do trabalho e ao apoio e fortalecimento das reivindicações dos marginalizados. Com o que, no lugar de ajudar à configuração de uma comunidade humana, a psicologia se converte em instrumento de marginalização e opressão.

“No campo da psicologia e da psiquiatria – escreve Berlinger – existe uma profunda crise institucional e doutrinária. A questão essencial é a seguinte: é possível efetuar uma inversão análoga à efetuada por Marx com a crítica da economia política? Marx revelou de forma aberta o caráter enganoso de uma ciência que encobria as relações de produção capitalistas detrás de princípios econômicos ‘válidos por toda eternidade’, e ao mesmo tempo assentou as bases teóricas do processo de emancipação dos trabalhadores”. A antipsiquiatria quer se libertar dos sujos interesses escondidos detrás de muitos diagnósticos, pretendidamente assépticos, de muitas terapias, pretendidamente bem intencionadas. Quer desalienar uma ciência e uma profissão que, por definição, se ocupa da alienação humana. O ponto está em que talvez não sejam os indivíduos os que necessitam de tratamento, mas a sociedade. E o tratamento da sociedade se chama revolução. A antipsiquiatria quer repetir o gesto de Pinel na escala social, ao menos ao que a ela diz respeito.

Algo similar está acontecendo também no campo da psicanálise, com um movimento que podemos chamar de antipsicanálise, apesar de contar com certos antecedentes na história do movimento psicanalítico (ver, por exemplo, os documentos compilados por Hans-Peter Gente em Marxismo, Psicanálise e sexpol). É bastante sabido que a psicanálise não só nasceu em um meio burguês, como também se desenvolveu e floresceu como um tratamento para os ricos, efetuado por especialistas que tiveram que realizar uma formação custosa, acessível a uma minoria privilegiada. Tão é assim, que a psicanálise hoje em dia se constitui como mais uma base em que se funda o atual sistema capitalista (o que, pensando bem, não deixa de ser um curioso paradoxo). Movimentos dissidentes, com tendência abertamente socialista, como foram o de Adler e o da escola neofreudiana (Horney, Fromm, etc.) têm sido assimilados pela sociedade estabelecida, para a qual têm prestado e prestam excelentes serviços. Com grande sensatez, pôde afirmar Marcuse que, na história da psicanálise, o princípio de realidade foi se convertendo em princípio de rendimento (“Leistungsprinzip”), que consagra não só aquela repressão necessária para a convivência social, mas também a repressão excedente. A função do homem já não seria então a de atuar, mas a de render, ou seja, atuar criando mercadorias, o que acabaria por instrumentalizar todas as relações humanas. E isso é o que realmente acontece com a bênção e o apoio da maioria dos psicanalistas.

Entretanto, um pouco em toda parte e entre as filas dos próprios analistas, começam a surgir críticas e dissidências contra esse arranjo sujo. É o caso de Caruso, Fanon ou Castillo Del Pino. Como é o caso de um bom grupo de psicanalistas argentinos e uruguaios que, impelidos por uma série de acontecimentos recentes ocorridos em seus países, questionam-se e questionam a fundo, não só os fundamentos teóricos da sua ciência, mas também os pressupostos sociais e ideológicos de sua profissão. (ver: Cuestionamos. Documentos a la ubicación actual del psicoanálisis, compilação de Marie Langer). “Questionamos – diz Marie Langer – as omissões que comete o pensamento psicanalítico corrente. Escotomiza o modo em que a estrutura da nossa sociedade capitalista entra, através da família, como cúmplice na causa das neuroses, e se introduz, através do nosso pertencimento de classe, em nossa prática clínica, invade nosso enquadramento e distorce nossos critérios de cura… Questionamos o Freud ideológico que toma a sociedade como dada e o homem como fundamentalmente imutável. Questionamos, além do mais, a institucionalização atual da psicanálise e seu pacto com a classe dominante”.

Antipsiquiatria e antipsicanálise são expressões de uma nova consciência social sobre o condicionamento das ciências e, muito mais, sobre a alienação da prática profissional. Uma consciência disposta a não seguir ocultando a verdade em benefício de uns poucos para prejuízo das massas oprimidas. Uma consciência de que “a neurose de um indivíduo é sempre, além disso, o sintoma de uma enfermidade da sociedade” e de que, portanto, o problema não se soluciona de maneira alguma “curando” ao indivíduo, ou seja, ajustando-o a essa sociedade. Uma consciência de que a psicologia converteu-se em uma servente acrítica de interesses bastardos. Uma consciência, enfim, de que toda ciência e todo trabalho, por ser históricos, são políticos e o são para o bem e para o mal. É significativa, a esse respeito, a afirmação de Marie Langer: “para que nossa ciência sobreviva na nova sociedade que está chegando, e para que possa complementar com seu conhecimento psicológico o que é criado em outro nível, desta vez não renunciaremos nem ao marxismo nem à psicanálise”. Porém, bem sabe Marie Langer que, para que surja uma sociedade nova, esta nova ciência talvez tenha que deixar de ser não só esta ciência, mas deixar de ser nossa.

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