Diferença entre sujeito e subjetividade

Por Jorge Alemán, via Horizontes neoliberales en la subjetividad, traduzido por Maria Caroline C. Gomes

Há uma crítica de Lacan a maio de 68 que surge a partir do Seminário 20 e que, a meu ver, consiste fundamentalmente em diferenciar o sujeito da subjetividade. Eu vejo isso como uma diferença política fundamental.

Há uma linha de pensadores, Foucault, Deleuze, Negri, que introduziram a esse respeito, a despeito de si mesmos, uma confusão metodológica. Houve uma esquerda pós-moderna, que chamamos assim para diferenciá-la da esquerda clássica, que pensava as relações de poder como aquelas relações históricas construídas por diferentes formas de poder; portanto e como consequência disso, a subjetividade foi pensada como efeito das relações de poder construídas. A tal ponto que se tentou apagar a dimensão estrutural da constituição do sujeito, chame-a: divisão do sujeito, subversão do sujeito cartesiano, ou nosso último parlêtre. O importante é que isso transformou a questão do problema político da subjetividade em uma corrente de pensamento muito importante, mas excluindo, evitando, apagando, o sujeito do inconsciente. Por isso, sempre insistimos que a diferença entre o sujeito do inconsciente e o que a filosofia chama de subjetividade é uma questão fundamental. Uma vez que a esquerda clássica compreendeu que não havia nenhum sujeito histórico a que recorrer para realizar o destino histórico da revolução e a versão teleológica da história, surgiu a nova esquerda pós-moderna, que passou a ocupar-se da subjetividade, mas com uma subjetividade que sempre foi construída historicamente, gerada por dispositivos, produzida por tecnologias e apagando, assim, uma distinção fundamental para nosso horizonte do ponto de vista político, que é essa distinção entre sujeito e subjetividade.

A relação entre psicanálise e política é uma relação que não se encaixa desde o início, que está sempre sob o deslocamento temporário de um forçamento, de um “cedo demais” ou de um “tarde demais…”. Pensamos que é preciso suportar a tensão da peça que não encaixa, para pensar a questão da psicanálise e da política. Assim como Lacan decidiu que não ia reescrever o Seminário da Ética porque não havia como, uma vez formulada a sentença sobre o Outro que não existe, e, portanto, admitir que é impossível dar qualquer fundamento último e ético a decisão de ser falante, pela mesma razão que “o inconsciente é o político”, ou seja, não há como encontrar uma relação psicanálise-política estável. No entanto, considero, e essa tem sido a minha aposta nos últimos anos, que tem sido muito proveitoso voltar a isso. Historicamente, desde Freud, o psicanalista era cético em relação à política. Ele havia entendido que no sujeito há uma fratura incurável, uma divisão incurável, uma real falta de sentido, e que o único ato subversivo na cura analítica é que, em relação aos fatos políticos, deve-se permanecer, seja no ceticismo, resguardando a mínima distância com os significantes mestres que são necessários para sustentar a ordem do mundo, seja em um certo cinismo lúcido que diz: “Todos esses significantes mestres não passam de semblantes, valem o que valem, mas sem eles não podemos viver”. Essa tem sido a posição que sempre encontrei com frequência na psicanálise. Uma certa neutralidade que se traduz em termos de: “Esses significantes são semelhantes, esse é o significante mestre, nunca o verá de outra forma, e querer mover isso leva ao pior, se você quiser uma transformação radical vai acabar de uma forma nefasta.” Por isso, o próprio Freud, ao final daquele grande texto que é “Moisés e o Monoteísmo”, diz que confia na democracia conservadora na Igreja Católica como freio ao nazismo. Vamos admitir que fiquei um pouco confuso. Não é que Freud acreditasse nessas barreiras, mas pensava que para um mundo que apoiava um ato tão subversivo como a psicanálise, era necessário proteger certas aparências, e que as democracias conservadoras e as igrejas católicas se encarregaram disso.

Nossa posição atual é que essa história não funciona mais, já que a ideia que ela abrigava era a seguinte: a fratura está na psicanálise, e há uma ordem que precisamos que funcione para que a psicanálise possa realizar sua subversão com a fratura constitutiva. Mas agora o discurso capitalista, que Lacan formulou em 1972, gerou uma nova realidade onde o espólio de guerra do Capitalismo, em sua mutação histórica chamada Neoliberalismo, é a produção de subjetividade e onde a ordem de semblantes que sustenta a vida social está sendo pulverizada. A destruição do vínculo social vence a subversão do sujeito.

Atualmente, tal como nos lembram os estudiosos do neoliberalismo, Cristhian Laval e Pierre Dardot, evocando Margaret Thatcher, “a economia é o método, mas a meta é a alma”. Hoje se trata de fabricar subjetividades. Estamos, pela primeira vez, em um período histórico em que não podemos mais dizer “há a fratura na experiência analítica e há a ordem do discurso do mestre, que é um semblante que admitimos”, porque essa fratura esta negada, foracluída, diz Lacan, pelo próprio discurso capitalista, que também se constitui de tal forma que é em si mesmo um rechaçamento do amor. De tal modo que nessas novas produções de subjetividade – cujo erro dos foucaultianos e de seus discípulos é analisá-las novamente pura e exclusivamente em termos históricos -, eles são denominados (Laval e Dardot as estudaram exaustivamente) os empresários de si mesmo, a fábrica do homem endividado (Deleuze e Lazzaratto), a vida nua (Agamben), onde todas são figuras, que poderíamos dizer, têm um dispositivo de dominação que as produz. É o novo mal-estar, típico do capitalismo de performance e gozo, onde sexualidade, o trabalho e o esporte fizeram um amálgama onde o próprio sujeito está sempre além de suas próprias possibilidades, muito além do que lhe é possível sustentar, é uma performance que sempre o conduz a uma lógica de “gestão empresarial” da relação consigo mesmo e com os outros. Dessa lógica não estão isentos os assassinos terroristas, como mostram as declarações de um dos jovens após o ataque a Charlie Hebdo: “Eles nos financiam…”, como se fossem membros de uma franquia.

Entre essas produções de subjetividade, que devem ser diferenciadas do sujeito por uma razão fundamental, há uma muito importante, além de “o empresário, o devedor, a vida nua”, que é o “des-empregado estrutural”, fórmula que mantém uma ligeira diferença com os “desempregados” sem trabalho.

Tendo rompido a relação estabelecida por Marx entre o Capital e o trabalho, o trabalhador não é mais explorado apenas para extrair mais-valia, mas é condenado a produzir “mais-de-gozar”. Esta é para nós a verdadeira finalidade do discurso capitalista. Não se trata de um desempregado, porque um desempregado é alguém que pode voltar a ser empregado. Se trata de uma nova forma de exploração que gera um des-empregado que não produz mais-valia na relação capital-trabalho, mas produz mais-de-gozar. Incluindo a condição de ser recrutado. Na América Latina ele é recrutado por narcotraficantes, e na Europa, e em algum momento da América Latina, ele vai ser recrutado por essas novas formas de terrorismo que imprimem uma ordem e dão estrutura e apoio aqueles que, obviamente, como é um des-empregado estrutural, dedicado exclusivamente à produção de mais-de-gozar, não tem lugar e não terá lugar no Outro. Por isso que a oportunidade de participar da fundação de uma nova nação, como o califado, ou de uma nova ordem política como é o narcotráfico, torna-se extremamente atraente para essas “subjetividades”. Devemos entender também que, se o discurso capitalista é um rechaço do amor, o ódio ganha outra dimensão, e essa fórmula que usamos, por exemplo, para pensar o racismo, “é o ódio ao gozo do Outro”, e há de levá-lo ainda mais longe em suas consequências.

O mal atual se caracteriza por agir de tal forma que se é capaz de destruir a si mesmo para causar um dano terminal ao Outro. Não é o egoísta, não é o individualista narcisista, é aquele que está disposto a destruir a si mesmo para produzir o infortúnio final dos demais. Esse fenômeno, obviamente concentrado nas formas de terrorismo contemporâneo e que podemos caracterizar como neofascista, vai se espalhar cada vez mais, se não surgirem novas alternativas à lógica do Capital.

Hoje se espalha um ódio que não consiste no que Marx acreditava, “as águas geladas do cálculo egoísta”, porque o egoísta, no fundo, ainda está interessado em si mesmo. O problema é aquele que se interessa pelo mal dos outros, e que se interessa de tal forma que é capaz de fazer um dano que o extinga desde que os outros sejam prejudicados para sempre, desde que os “outros percam o que devem perder”. Infelizmente, isso vai se espalhar de uma maneira nova, por isso consideramos muito importante pensar sobre o que é inapropriável para o discurso capitalista. Isso é o mais difícil, porque, como não há fora e não há nenhuma lei histórica que governe sua transformação dialética, nem há nenhum sujeito a priori constituído para mudá-lo, em vez de pensar, como fez certa esquerda pós-moderna, em que tipo de revolta seria inapropriável para o mestre, deve-se pensar, em todo caso, o que é inapropriável para o discurso capitalista. Não se trata de estar contra o discurso do mestre a todo custo. Pelo contrário, o que está em jogo é separar o discurso do mestre do mercado. Chamo isso de “Hegemonia”, um discurso do mestre organizado pela política e não pelo mercado.

O problema é, a partir dessa mutação do neoliberalismo em sua produção de subjetividade, ver que lugar é inalcançável nessa produção, a que lugar não pode acessar este dispositivo de performance e gozo que se expande transversalmente por todos os laços sociais.

Aqui considero muito importante pensar todos os elementos teóricos que foram inaugurados a partir do ensino de Lacan, justamente para mostrar que são inapropriáveis pelo discurso capitalista, pois são elementos que, embora definam uma singularidade irredutível e insubstituível, é tanto o que temos em “paramos para pensar no ato leninista” de Lacan, ou seja, como ele tentou organizar uma Escola em função da experiência analítica. Acho que há certos atos instituintes que são atos políticos que não se podem confundir com a psicologia das massas, nem com os modelos da Igreja e do exército, nem com os modelos da massa primária regressiva dominada pelo instinto de morte.

Na Espanha tivemos recentemente 15M, na França foi em Maio de 68; os atos instituintes são atos que se caracterizam pelo fato de serem constituídos pelo que “não há” – não há relação sexual, não há metalinguagem e não há Outro do Outro – e que constituem um sujeito que é o filho do ato (nunca anterior a ele), e ao mesmo tempo são atravessados ​​pela angústia e pela certeza antecipada. A isso chamo denomino Solidão: Comum enquanto a considero a pré-condição para “um ato instituinte”.

O novo problema da esquerda, se não quer cair no círculo da esquerda pós-moderna, que te conduzem a pensar como as relações de poder são construídas historicamente e não sai daí… Por exemplo, Compartilhei uma mesa com uma colega feminista e falava das fantasias de submissão sexual como vestígios da ideologia patriarcal no gozo das mulheres: qual era o problema com essa posição? Que é politicamente perigosa também, porque se traduz o sujeito em termos de relações de poder. Por que um fantasma de submissão deve ser considerado o resultado de uma ordem de poder patriarcal? Em uma fantasia de submissão, primeiro será preciso ver quem, quantos participam, quem é realmente o subjugado, quais são as prescrições daquele que vai se submeter para seu gozo, enfim, é muito mais complexo. Mas foi o que aconteceu na União Soviética e em outros países socialistas com a homossexualidade, que foi discriminada e reprimida socialmente por considerá-la um desvio ideológico. Se derivarmos das diferentes formas de gozar, ideologias construídas pelo poder, que a princípio pode parecer muito libertador, pode terminar em uma lógica de segregação. Essas formas de “coerência” unificadas ideologicamente não só desconsideram a divisão do sujeito, mas reproduzem um superego sufocante. O mesmo aconteceu em outro debate, sobre a violência assassina contra a mulher, no qual me atrevi a dizer que essa violência que se dizia machista, assumindo esse léxico, não é uma exacerbação do machismo, muito pelo contrário, é testemunha de uma ausência progressiva de machos. Aqueles que matam mulheres, o que eles apontam com seu ato criminoso, é antes o declínio e as impossibilidades estruturais cada vez maiores de alcançar a posição viril. Para poder abrir todas essas discussões, é preciso distinguir as relações de poder, as construções de subjetividade e a posição do sujeito.

Este é o caminho que leva, para mim, a pensar e considerar tudo o que pode ser inapropriável. É o que considero que a psicanálise pode oferecer, agora que sabemos que não há fora do discurso capitalista, e que ela desfez a oposição civilização-barbárie, democracia-terrorismo. Todas essas oposições nos atravessam, nós as colocamos em operação, mas sabemos que elas são insuficientes para o que está acontecendo, porque a circularidade é isso que permite que as oposições já não sejam operativas, pois o movimento é circular. É por isso que para mim a dimensão do inapropriável pode ser o caminho para redirecionar um novo modo de pensar, e acredito que a psicanálise de Lacan e sua crítica, que surgiu depois de 68, quando começou a pensar que não estávamos realmente dominados por pessoas, nem Estados, nem homens poderosos, mas um certo tipo de estruturas, quando radicalizou seu anti-humanismo, me parecem importantes para pensar uma possibilidade do inapropriável.

*Maria Caroline C. Gomes é psicóloga, mestra em psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), especialista em teoria e clínica psicanalítica pela Unifenas. Contato: [email protected]

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