Por Bruno Santana
Da conjuração entre o projeto colonial das classes dominantes brasileiras e a despossessão dos negros escravizados de suas formas de viver aqui no Brasil atirados às senzalas nasce a territorialização das cidades brasileiras. Para além das capitanias hereditárias num escopo maior, no interior das cidades coloniais, se deflagra de modo aparente o aspecto mais visível da sociedade brasileira do período; onde o espaço do negro escravizado, dos libertos, dos agentes do estado colonial e das classes dominantes brasileiras era estritamente definido.
Traçar o histórico das cidades brasileiras incide portanto, em delinear o percurso histórico do racismo, onde a riqueza mobilizada por meio da propriedade, recurso característico para pilhagem econômica nos países colonizados que construiu materialmente espaços onde o domínio senhorial tornou visível a instituição da escravidão e do racismo.
Faz parte de qualquer projeto civilizatório, especialmente aqueles atravessados pela violência sobre outras etnias ou nações, a eliminação de seus espaços tradicionais de cultura e convívio. Desta forma, mesmo os territórios impostos pelo colonizador aos negros trazidos para o Brasil de África eram por eles desenhados e organizados.
A senzala aqui representou o espaço da brutalidade e da violência do cotidiano da escravidão. Mesmo assim, do corpo negro despojado de sua humanidade, sendo proprietário apenas de seu corpo, no pátio da senzala manteve a memória de sua forma de viver, e por meio da resistência no interior da instituição colonial trouxe à nós configurações de seu espaço onde seus ritos, sua dança e sua revolta pode se expressar a despeito do olhar sanguinário do senhor do engenho.
As cidades do Brasil através dos séculos, destaque para Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, foram palco de transformações estruturais que incorporaram neste processo a violência do Estado, junto à intelectualidade higienista [1] em conluio com interesses oligárquicos de empresas familiares interessadas em reproduzir aqui o aspecto das cidades europeias [2].
Este processo remonta à segunda metade do século XIX, quando concentrar propriedade para aqui criar um mercado de terras (no qual logicamente mesmo os negros libertos não teriam acesso) cria as condições para estabelecer a longo prazo mão de obra disponível, que futuramente irá trabalhar para ter terra ou teto.
Podemos entender a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz e da Lei de Terras, ambas de 1850, como uma estratégia do Império do Brasil para que a aparência das cidades brasileiras fosse bem definida; numa margem onde os negros futuramente libertos ou sexagenários não fariam parte dos planos de transformação urbana da burguesia brasileira. Deles não gozariam seus benefícios, nem os negros egressos da Guerra de Canudos (1897), que ao retornarem para o Rio de Janeiro sem ter onde morar, se estabeleceriam no chamado Morro da Providência, onde nasceu a primeira favela do Brasil.
A história de transformação das grandes cidades brasileiras, passa pela sistemática expulsão dos negros e pobres marginalizados, que estão no caminho do progresso e do desenvolvimento no entendimento do Estado e seus planejadores.
Os centros das capitais nacionais, historicamente ocupados pelos trabalhadores, são alvos de grandes demolições e reformas para embelezar a cidade com grandes avenidas e monumentos. Esta é a história dos Planos de Avenidas de São Paulo e seus sistemáticos ataques a bairros populares como o Bixiga (antigo Quilombo do Saracura), Cambuci e das intervenções nas margens do Tamanduateí e Tietê; da Reforma de Pereira Passos no Rio de Janeiro que atravessou bairros populares e vitimou aos candomblés mais antigos da cidade e as capoeiras do Morro do Pinto, além de sistematicamente expulsar as populações mais pobres para os morros; dos primeiros planos de avenidas da Cidade Baixa e da Calçada em Salvador.
As cidades brasileiras atualmente, possuem um desenho e expressão marcados pela desigualdade por meio de uma delimitação clara do lugar conveniente aos pobres e bem servido aos ricos.
O histórico e a memória da cultura negra e pobre vitimada pela expulsão dos centros das cidades estão ocultos, porém não mais invisíveis. Atualmente iniciativas como o Cartografia Negra e iniciativas da memória cultural dos centros em lugares como o Bixiga, permitem além de trazer a tona a discussão histórica, entender por meio de quais processos se dá a expansão das nossas cidades, e onde nisso tudo estamos situados.
Notas:
[1] O higienismo foi um movimento da intelectualidade burguesa brasileira, influenciado pelas teorias da Eugenia de Francis Galton, tendo adeptos nas principais universidades brasileiras entre o século XIX e XX, dentre as quais participaram o Clube de Engenharia da Escola Politécnica e a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.
[2] Este período histórico é conhecido como Belle Époque, no auge da produção artística e intelectual francesa. A burguesia brasileira e setores próximos a D. Pedro II foram largamente influenciados pela estética deste período, e queriam aqui reproduzir os costumes da boemia parisiense e imitar as transformações empreendidas pelo prefeito de Paris Barão de Haussmann.
Alguns links complementares:
Artigo da Urbanista Raquel Rolnik sobre os territórios negros no Brasil
Documentário “Famílias Negras da Brasilândia” sobre o surgimento do distrito
Matéria da BBC sobre um roteiro turístico em São Paulo através da história negra
Matéria da Folha de S.Paulo sobre um passeio que busca mapear a história negra
Livros sobre a relação do racismo e o urbanismo:
O negro no mundo dos brancos, de Florestan Fernandes
O centro da cidade de Salvador, de Milton Santos
Pereira Passos, um Haussmann Tropical, de Jaime Larry Benchimol