Por Adrian Johnston, via Philosophical Reviews, traduzido por Daniel Alves Teixeira
Esta é a tradução de uma resenha escrita por Adrian Johnston para o livro organizado por Jim Vernon e Antonio Calignano em que são discutidas, em diversas vertentes e formas de abordagem, as possíveis aproximações e distanciamentos entre as filosofias de Hegel e de Badiou. Ao final do artigo disponibilizamos um link para download do livro em inglês.
Desde o seu início, a obra de Alain Badiou contém engajamentos recorrentes com a filosofia de G.W.F. Hegel e seu legado. Obras iniciais de 1970 e 1980 como a Teoria da Contradição, O Núcleo Racional da Dialética Hegeliana e Teoria do Sujeito são caracterizadas por revisitações marxistas (especificamente Maoista) da dialética especulativa hegeliana em que os antagonismos, destruições, divisões e volatilidades são enfatizados e valorizados em detrimento das reconciliações, sínteses, unificações, e estabilidade. O sistema do “maduro” Badiou, começando com o seu opus magnum de 1988 Ser e Evento, parece mudar em direção a uma posição mais crítica frente a Hegel. Os ensaios da oportuna coleção de Jim Vernon e Antonio Calcagno cobrem as múltiplas facetas do relacionamento altamente ambivalente de Badiou com a filosofia de Hegel que se desenrola a partir da década de 1970 até hoje.
O “A medição: algumas consequências da confrontação de Badiou com Hegel” de AJ Bartlett e Justin Clemens está bem posicionado no início deste volume em virtude de fornecer uma útil visão geral e imparcial da história das trocas de Badiou com Hegel através de todo o trajeto de seu itinerário intelectual. Além disso, Bartlett e Clemens explicam claramente porquê e como a reformulação de Badiou da ontologia através da teoria dos conjuntos (de acordo com os axiomas de Zermelo-Fraenkel mais o axioma da escolha [ZFC]) leva-o a conflitos com AS noções de infinito e totalidade associados com o “idealismo absoluto” de Hegel.
O ensaio imediatamente a seguir, “O Bom, o Mau e o Indeterminado: Hegel e Badiou na Dialética do Infinito,” de Tzuchien Tho, complementa e dá suporte a estes aspectos da contribuição de Bartlett e Clemens. Tho valiosamente situa a “meta-ontologia” matemática de Badiou na maior varredura da história da matemática. Ao fazê-lo, ele ilustra muito bem as proposições filosóficas sobre os desenvolvimentos na matemática ocorridos após a morte de Hegel, conduzindo assim a observação de que, “A pergunta natural ‘Badiouniana” para Hegel é … se os desenvolvimentos dentro da própria matemática seriam capazes de reconfigurar o estado da relação entre a matemática e filosofia como ele a encontrou, no início do século XIX “(p. 41). Tho, junto com alguns outros colaboradores, pergunta se a rejeição de Hegel da matemática como mecanicamente impensável e constitutivamente incapaz de lidar com as categorias e conceitos abordados pela especulação dialética é um veredicto que deve ser mantido à luz dos desenvolvimentos da matemática ao longo dos últimos dois séculos.
Bartlett e Clemens, bem como Tho, adequadamente dedicam parte de suas reflexões à distinção notória de Hegel entre o infinito bom/genuíno e o infinito ruim/espúrio. De acordo com a delimitação desta distinção na Lógica Hegeliana e na crítica de Badiou, Bartlett, Clemens, e Tho (e mais alguns outros neste volume) ligam o bom/genuíno infinito com a ideia de totalidade como o Um-Todo de um conjunto de todos os conjuntos. No entanto, o próprio Tho em um ponto estipula que, “estamos apenas falando do infinito matemático, em vez de seus primos metafísicos ou teológicos” (p. 43). Esta admissão pode ser tomada, talvez contra as intenções de Tho, como uma incitação para questionamentos que lançam as sombras de algumas dúvidas sobre a encenação Badiouniana de um confronto entre uma meta-ontologia matemática e a lógica dialética especulativa não-matemática de Hegel. Na medida em que o infinito bom/genuíno de Hegel é apresentado como diferente em espécie de qualquer infinito nos moldes matemáticos, ele é/ou deve ser suscetível às implicações das meditações especificamente matemáticas sobre o infinito?
Tanto para colocar um ponto mais nítido sobre a questão cética anterior, bem como para seguir para um tratamento do terceiro capítulo, a articulação definitiva da diferença entre o infinito bom/genuíno e o infinito mau /espúrio na Ciência da Lógica é complementado por uma “observação” imediatamente a seguir ” sobre o tema do “idealismo”. Nesse sentido, Hegel especifica que, para o idealismo absoluto do realismo do bom/genuíno infinito, tudo é o que é apenas em e através de suas relações com outras coisas. Isto é, o idealismo absoluto de Hegel do infinito bom/genuíno equivale ao holismo orgânico de uma ontologia realista relacional. Os badiounianos de Badiou e Hegel:Infinito, dialética e subjetividadeevidentemente assumem que o holismo de Hegel é equivalente ao, por assim dizer, “totalismo”, ou seja, a postulação ontológica de um Todo (isto é, a totalidade de um Um-Todo proibido por ZFC). No entanto, pode-se perguntar: Será que insistir em uma interrelação generalizada de estilo orgânico implica necessariamente em uma totalização na forma recusada por Badiou e seus seguidores?
As questões que acabo de levantar são diretamente relevantes para o terceiro capítulo, “Badiou contra Hegel: o materialista dialético contra o mito do Todo” de Adriel M. Trott. Ecoando o Badiou que ecoa ele próprio certas queixas profundamente arraigadas sobre Hegel na filosofia Continental do século XXI, Trott retrata a filosofia de Hegel como um pensamento totalizador (e, talvez, até mesmo totalitário) da unicidade auto-idêntica – e isto em contraste com as multiplicidades destotalizadas da teoria dos conjuntos (meta) ontológica de Badiou. Ligado a isso, para Trott, Badiou, com sua ênfase nas forças destrutivas das negatividades reais, é um herdeiro dos combates materialistas dialéticos contra o absolutismo de Hegel como o paradigma de um idealismo anti-realista sob o disfarce de um holismo tranquilo de uma unidade ideal serena. O que eu já disse acima adequadamente sinaliza minhas sérias reservas com relação a essas características do retrato antipático que Trott faz de Hegel.
Além disso, Trott agressivamente subestima e minimiza a centralidade da negatividade na filosofia de Hegel. Como resultado, uma de suas notas finais considera “hegeliana” a negação “de que a contradição ou inconsistência pode ter ser real” (p. 72). Entretanto, não se encontra toda a crítica de Hegel da filosofia teórica de Kant, com a sua coisa-em-si, em nada mais do que contestar a suposição kantiana da não-existência ontológica de negatividade (como a contradição, incoerência e semelhantes) como acrítica e indefensável? Dito de outro modo, enquanto é kantiano negar que o “ser real” numenal per si contém contradições e inconsistências, isto definitivamente não é hegeliano – muito pelo contrário, dado a ontologização de Hegel da dialética de-ontologizada de Kant.
Antes de ir para o quarto e último capítulo da primeira parte do livro, acho que é oportuno observar o que me parece uma oportunidade para um verdadeiro debate entre filosofias hegelianas e Badiounianas que restou quase completamente perdida nos três primeiros capítulos. Como eu observei anteriormente em referência à “Observação sobre o Idealismo” na Ciência da Lógica, o idealismo absoluto de Hegel envolve uma ontologia realista da relacionalidade completa-contínua. Entretanto, o que é logicamente (proto) ontológico em Hegel é fenomenologia não-ontológica para Badiou. Ou seja, a sequência de Badiou para Ser e Evento, Lógica dos Mundos, complementa a ontologia matemática conjunto-teórica de seu magnum opus de 1988 com uma fenomenologia lógico teórico-categórica na qual a relacionalidade reina suprema. Para Badiou, enquanto o objetos-como-aparências são completamente relacionais (de acordo com a lógica da teoria categoria/topos) os seres-em-si numenais (como as multiplicidades da teoria dos conjuntos) são totalmente descrevidos como não-relacionais. O sistema maduro de Badiou desloca a relacionalidade essencial do idealismo absoluto anti-finitista de Hegel da ontologia fundamental para a fenomenologia, um movimento que Hegel deveria resistir. Um ensaio ou um livro sobre essa diferença autêntica e profunda poderia encenar o que provavelmente seria uma verdadeira e produtiva colisão entre hegelianos e Badiounianos.
O ensaio que fecha a Parte Um é “A questão da arte: Badiou e Hegel” de Gabriel Riera. Riera compara e contrasta, por um lado, a filosofia de Hegel da estética, em que a arte é vista como o veículo (agora historicamente obsoleto) de verdades em última análise pertencentes à filosofia, e, por outro lado, a “aestética” de Badiou, em que os artistas, obras de arte, e gêneros artísticos autonomamente produzem verdades propriamente artísticas impactando a filosofia enquanto tal como um campo de fora extra-filosófico. Como Riera descreve, este é um exemplo da caracterização mais ampla de Badiou da filosofia como dependendente de “eventos” em que transparecem dentro de suas quatro “condições” mais-que-filosóficas (arte, amor, política e ciência) as verdades que ela contempla.
Além disso, e em contraste com a disputada tese hegeliana sobre a “morte da arte”, a visão de Badiou de temporalidades históricas genéricas e de eventos artísticos especificamente sugere que a arte tem incalculavelmente mais guardado para a filosofia no futuro imprevisível, que a filosofia nunca termina para a arte ou vice-versa. Apesar destas bem notadas diferenças entre Hegel e Badiou, Riera destaca uma tese sustentada em comum entre Hegel e Badiou: As atividades e produtos de arte expressam ideias e verdades vitais para o florescimento e fomento da própria filosofia.
A Parte II abre com o artigo de Frank Ruda “Badiou com Hegel: Observações preliminares sobre uma leitura (qualquer) contemporânea de Hegel.” Ruda, na sua introdução, pergunta, “e se se houver um Hegel que é desconhecido para Badiou? E se houver um Hegel que pode servir como um suplemento muito útil, talvez até necessário, para Badiou?” (P. 105). Essas questões estabelecem uma versão Badiouniana da trajetória geral da Lógica Hegeliana. Para ser mais preciso, Ruda retrata a Lógica de Hegel como um “procedimento verdade fiel” tal como pensado por Badiou, um processo de fidelidade a um ponto de partida específico iniciado através do fundamento não-fundamentado de uma decisão axiomático em relação ao “Ser puro.”
Me parece que existe uma tensão não resolvida assombrando o ensaio intrigante e sugestivo de Ruda. Por um lado, ele insiste no início de sua contribuição, “nunca se deve esquecer que a Fenomenologia de Hegel foi a própria condição prévia para sua Ciência da lógica” (p. 106). Por outro lado, Ruda, de modo a reformular a lógica hegeliana segundo linhas Badiounianas, apresenta o início da Ciência da Lógica de Hegel, em particular, como incondicionada/incondicional, nomeadamente, como “inderiváveis, indeduzíveis, inanalisáveis” (p. 120). O reconhecimento inicial de Ruda de que a Fenomenologia é a “escada” para a lógica fica deslocada lado-a-lado com a sua posterior versão incitada por Badiou do começo da Lógica com uma ex nihilo ab initio.
O próximo capítulo, Norman Madarasz “O Desafio biolinguístico para uma Ontologia intrínseca” confronta o anti-naturalismo neo-racionalista da teoria da subjetividade de Badiou de um ângulo naturalista incorporando considerações empíricas, científicas, da vida. Madarasz se volta para a biolinguística de Noam Chomsky para complementar a teoria do sujeito de Badiou com uma filosofia bio-materialista da mente, arguindo a compatibilidade entre as duas. Apesar do recurso de Madarasz a Chomsky ser original no contexto da recepção em curso da filosofia de Badiou, a seu fundamental “desafio” naturalista para Badiou não é. Por exemplo, Ray Brassier, Lorenzo Chiesa, Fabio Gironi, Peter Hallward, Slavoj Žižek, e eu mesmo já elaboramos longamente, em várias ocasiões anteriores, críticas (quase-)naturalista, materialistas, e influenciadas pela biologia, do anti-naturalismo Badiouniano. Mas Madarasz não se envolve, e nem sequer menciona de passagem, qualquer um de nós.
O próximo capítulo, “O Desafio biolinguístico para uma Ontologia intrínsica” de Norman Madarasz, confronta a teoria anti-naturalista e neo-racionalista da subjetividade de Badiou de um ângulo naturalista incorporando considerações empíricas e científicas da vida. Madarasz vai em direção à biolinguística de Noam Chomsky para complementar a teoria do sujeito de Badiou com uma filosofia naturalista e bio-materialista da mente, arguindo a compatibilidade entre as duas. Apesar do recurso de Madarasz a Chomsky ser original no contexto da recepção em curso da filosofia de Badiou, o seu “desafio” mais fundamentalmente naturalista para Badiou não é. Por exemplo, Ray Brassier, Lorenzo Chiesa, Fabio Gironi, Peter Hallward, Slavoj Žižek, e eu mesmo já elaboramos longamente, em várias ocasiões anteriores, críticas (quase-)naturalista, de cunho biológico, materialista do anti-naturalismo Badiouniano. Mas, Madarasz não se envolve e nem sequer menciona de passagem qualquer um de nós.
Ainda mais, o ensaio de Madarasz ensaio é cheio de um vocabulário técnico sub-explicado e mesmo não explicado. Ele parece ter a intenção de que os termos “intrínseco”, “imanente”, e “inato” devem ser entendidos em sentido peculiares a um jargão filosófico idiossincrático que nunca é explicitado em seu artigo. Da mesma forma, uma vez que os leitores provavelmente não irão estar familiarizados com várias obras de Chomsky, o frequente emprego de Madarasz de definições sem explicação de jargões especificamente chomskyano provavelmente fará sua contribuição opaca e pouco atraente para esses leitores.
No próximo capítulo, “Badiou e Hegel no Amor e na Família,” Vernon fornece uma avaliação crítica hegeliana das considerações de Badiou sobre o amor. Ele oferece aqui uma série de críticas perspicazes e instigantes de como Badiou retrata as relações amorosas. Além disso, Vernon faz isso em parte com base em uma reconstrução cuidadosa e persuasiva da representação do amor e da família em Hegel no Princípios da Filosofia do Direito.
Calcagno fornece o penúltimo capítulo com seu “Fidelidade ao Evento Político: Hegel, Badiou, e o Retorno ao Mesmo”. O eixo central da contribuição de Calcagno é problematizar o que ele vê como um pressuposto-sem-argumento de Badiou, de que processos políticos verdadeiros podem, devem e fazem repetidas circun-navegações de volta para um evento fundador inaugural que em si permanece inalterado ao longo do tempo histórico subsequente. Calcagno acusa que Badiou falha em postular uma concepção da identidade trans-temporal que ele no entanto não pode evitar pressupor na sua teoria dos acontecimentos políticos e fidelidades aos mesmos.
Eu não estou convencido de que Calcagno articule um criticismo particularmente potente de Badiou aqui. Para ser franco, Badiou está bem ciente das estruturas temporais e dinâmicas que Calcagno tem em mente e mesmo os incorpora abertamente em sua teoria do evento como envolvendo os componentes inter-relacionados de segundos eventos (retroativamente “eventalizando”, por assim dizer, eventos primeiros) “, forçando “, e” nomeando”. Colocando de forma simples, eu acredito que Calcagno derruba uma porta aberta.
O capítulo final é de Alberto Toscano “Domando as Fúrias: Badiou e Hegel em O Eumênides”. Toscano examina as facetas e afirmações especificamente políticas de Hegel e Badiou com referências a antigas tragédias gregas. De uma forma marxista em termos gerais, Toscano aponta no sentido de uma política ao mesmo tempo trágica e dialética em que a tragédia da polis dividida, disfuncional, é a fonte e o local da política propriamente dita. De modo semelhante, ele sustenta que tanto Hegel como Badiou, apesar de trazer à tona um tal quadro da política, no entanto simultaneamente obscurecem esta mesma imagem através de suas alegadas preocupações com a reconsolidação, reconstrução, e reconciliação da sócio-política.
Para os interessados em Badiou e nas relações de Badiou com Hegel, certamente vale a pena a leitura de Badiou e Hegel. Ele contém resumos úteis e análises dos lugares de Hegel na obra Badiouniana. Mas, para aqueles interessados em Hegel tanto quanto ou mais do que em Badiou, ele é menos do que totalmente satisfatório.
Eu acho que um maior equilíbrio poderia ter sido atingido entre as metades de “Badiou” e “Hegel” do livro. Em muitos de seus capítulos, há muita confiança no que Badiou e as tradições do século XX da filosofia francesa/Continental dizem sobre Hegel como auto-evidente e verdadeiro. No entanto, muitas dessas representações de Hegel são altamente controversas e discutíveis, quando não mesmo caricatas.
Finalmente, eu gostaria de sugerir uma abordagem do tema da Badiou com Hegel tomando nota da versão de Žižek de Lacan com Hegel. Žižek propõe corretamente que Hegel muitas vezes é mais relevante para o pensamento de Lacan precisamente nos momentos em que Lacan não pronuncia uma palavra sobre o filósofo alemão. Aplicado à intersecção das filosofias badiounianas e hegelianas, isto poderia ser aconselhável: olhar não só para referências e respostas explícitas de Badiou a Hegel, mas examinando momentos nos textos de Badiou em que ele não (parece) referir-se à Hegel, mas quando as ideias e argumentos de Hegel são no entanto bastante pertinentes. E se Badiou e Hegel tivesse contido um pouco mais desse tipo de abordagem?
Para download do livro em inglês, clique aqui
[1] Adrian Johnston é professor de filosofia na Universidade do Novo México.