Chile: Poder Popular e Contra-Revolução

Tradução por Gabriel Landi Fazzio.

Segue abaixo a tradução inédita para o português do último capítulo do livro do historiador chileno Hugo Cancino Troncoso, Professor Catedrático da Universidade de Aalborg na Dinamarca, chamado: “Chile: A problemática do Poder Popular no processo da via chilena ao socialismo, 1970-1973”, publicado em 1988 pela Aahus University Press.

O capítulo selecionado proporciona uma ampla visão sobre a emergência do Poder Popular no Chile e as tensões sociais que se disseminaram pela sociedade durante os últimos anos do governo da Unidad Popular, antes do golpe de estado de 11 de Setembro.


8.2. – Auge e desenvolvimento dos Cordões Industriais, Comandos Comunais e Órgão de Abastecimento Direto.

8.2.1. – O grande debate sobre o Poder Popular

O debate em torno do Poder Popular se verificou em três momentos que se inscreviam em três conjunturas diferentes do processo. A fase preliminar da discussão ocorreu com base nos acontecimentos de Concepción, que culminaram na chamada Assembleia do Povo, em 27 de junho de 1973. O segundo momento se iniciou com posterioridade à resolução da crise de outubro e tem como ponto de referência a emergência dos Cordões Industriais e Comandos Comunais. Esta fase se encerra com o “tanquetazo” [levante militar frustrado], em 29 de junho de 1973. O terceiro e último momento deste debate se inicia ulteriormente às mobilizações dos Cordões Industriais e às jornadas de ação convocadas pela CUT ante o levante militar frustrado e se conclui com o golpe de 11 de setembro. Esta discussão, sem precedentes na tradição e experiência revolucionária latino-americana, se desenvolveu no Chile em distintos âmbitos e níveis do movimento popular. Em primeiro lugar, em fóruns e em mesas redondas, eventos abertos ao público e que contaram com a participação de representantes dos partidos de esquerda envolvidos no debate e na promoção das novas organizações populares de base. A segunda forma de intervenção se realizou através de artigos de dirigentes nacionais dos partidos de esquerda ou de contribuições emanadas de intelectuais vinculados ou militantes destas organizações. Um terceiro nível de discussão, cujo aporte não ingressa neste estudo, foi aquele que se levou a cabo no interior das próprias organizações do Poder Popular e no movimento operário e de massas em geral. Tampouco integramos nesta avaliação e balanço do debate a discussão interna dos partidos da Unidad Popular e da esquerda, cujas atas ou notas e pontos de discussão foram voluntariamente destruídos pela militância dessas organizações frente ao evidente risco de que esta documentação caíssem em poder das FFAA [Forças Armadas] após o golpe militar. Os protagonistas do debate público foram principalmente os partidos implicados na tarefa de animar a construção do Poder Popular e que estavam disponíveis e receptivos a canalizar os novos movimentos de base. O debate tendeu a centrar-se em torno das posições do Partido Socialista e do MIR, ainda que também contribuíram a este os pequenos grupos da UP, provenientes de rupturas da Democracia Cristã, o MAPU e a IC, dentro da Igreja, o Movimento de Cristãos Pelo Socialismo. O Partido Comunista foi em geral refratário ao debate e só se manifestou conjunturalmente sobre o Poder Popular e emitiu prudentes pronunciamentos quando depois do “tanquetazo” os Cordões Industriais começaram em sua ação a transbordar as organizações sindicais tradicionais e à CUT. Dois foram os eixos centrais do debate na fase que resenhamos, quais sejam: a) O status do Poder Popular no marco da estratégia ao socialismo; b) O Poder Popular sob a forma de Comandos Comunais e suas relações com o Governo e o sistema democrático representativo.

A intervenção dos representantes do PS nesta fase do debate testemunhou a existência de um consenso, de uma apreciação compartilhada sobre o Poder Popular, ainda que algumas tendências dentro do partido ou intelectuais socialistas expressassem no debate uma leitura diferente da oficial. Ao começo de dezembro de 1972, Hernán del Canto, dirigente socialista e Secretário Geral do Governo, declarava à revista “Chile Hoy” que os Comandos Comunais não eram manifestações e um “poder dual, de um poder que se contraponha ao Governo”. Os Comandos Comunais de Trabalhadores deviam operar como organismos de apoio ao Governo, ao Programa e à política de alianças desenhada pela Unidad Popular. Del Canto acrescentou que no processo de discussão interna do Comitê Central do PS em novembro, se havia concluído que os Comandos Comunais “deveriam ser presididos pelo Intendente, o Governador ou o Subdelegado, segundo o caso”, ou seja, os representes do Poder Executivo. Julio Benítez, membro da Comissão Política do PS escreveu um artigo sobre essa temática na revista socialista “Posición”, em 27 de dezembro de 1972. No dito artigo, ratifica as posições esboçadas por Del Canto e admite que o Comitê Central havia resolvido a princípio que os Comando Comunais “deveriam ser liderados pelo representante o Poder Executivo a nível local (…), isto se sucedeu porque quando eles recém apareceram estávamos sendo diretamente atacados pelo fascismo e a reação, que tratou de paralisar o país e derrocar ao Governo”. O PS, segundo Benitez, compreendeu mais tarde que os Comandos Comunais deveriam eleger soberanamente seus dirigentes e que eles deviam ser organismos não sectários, mas espaços abertos a todas as tendências atuantes no movimento operário e popular. Benitez rechaçou também as concepção dos Comandos Comunais e do Poder Popular como uma forma de poder dual, em contraposição ao governo da Unidad Popular: “não pode pensar-se que estamos trabalhado pela criação de um poder substituto. Nosso propósito é robustecer a organização do povo em sua própria base com o fim de ajudar a aprofundar o processo revolucionário”. Victor Barbieris, representante do PS no foro sobre o Poder Popular organizado pelo sindicato de trabalhadores do diário “Clarín”, em meados de janeiro de 1973, ratificou as teses sustentadas com antecedência por Del Canto e Benitez. Todavia, uma posição marcadamente discrepante da oficial foi assumida pela Regional Cordillera, do PS de Santiago, em um documento político interno do mês de março. Neste texto, os Comando Comunais aparecem concebidos como órgão de base de uma construção do Poder Popular que culminaria na Assembleia do Povo. A Regional Cordillera exorta no documento à radicalização do programa e do processo revolucionário. Marta Harnecker, vinculada ao PS e membra do conselho de redação da revista “Chile Hoy” participou na discussão, explicitando uma concepção do Poder Popular próxima daquela formulada pelo MIR. De acordo com Marta Harnecker, o governo UP deve complementar sua ação com os organismos do poder popular surgido na base. Nesta ação de articulação e coordenação de ambas instâncias deve gestar-se as “condições que permitam destruir os limites impostos pelo atual aparato de Estado, criando um novo aparato ao serviço dos interesses do Povo”. Theotonio dos Santo examinou o status do Poder Popular às vésperas das eleições parlamentares e em relação ao projeto de transição ao socialismo no quadro da institucionalidade. Dos Santos expressou que o processo constitucional e o movimento das bases deveriam complementar-se e articular-se; que a democracia representativa que se manifestava no parlamento e na organização municipal deveria ser complementada com as formas de democracia direta surgidas através do Poder Popular. Dentro de uma perspectiva de análise semelhante à de Santos, Pío García critica as concepções que atribuem no caso chileno ao poder popular o caráter de esboço de poder dual frente ao Governo e ao Estado. Em seu artigo Pío García critica implicitamente a essas concepções instrumentalistas do Estado que estavam na base da tese da conformação do poder dual.

A intervenção do MIR no debate se caracterizou pela absoluta unidade de concepções e critérios dos expoentes de sua política em foros, entrevistas ou artigos na imprensa. O MIR inseriu sua concepção do Poder Popular no contexto da formulação de uma nova aliança de forças sociais e da proposta de um programa alternativo. Para o MIR, o marco da aliança operário-camponesa se fazia insuficiente e estreita para conter os novos agentes sociais: “Há que falar”, assinalou Miguel Enríquez em novembro de 1972 “de aliança do proletariado industrial e agrário com os pobres do campo e da cidade (…) os pobres da cidade do campo são uma camada extensa (…) desempregados, semi-empregados, trabalhadores por conta própria, etc, os sem casa”. Os Comandos Comunais são concebidos dentro de seu discurso, isto é, o discurso oficial do MIR, como o espaço de articulação e de formalização da nova aliança, que sob a direção do proletariado devia inscrever sua ação em um quadro de programa alternativo ao da UP, cujos rudimentos se encontravam no “O Caderno do Povo”. O Poder Popular devia, de acordo com o MIR, estruturar-se como “poder independente do Governo atual, como um poder autônomo”. Em janeiro de 73, Miguel Enríquez sustenta que as organizações de base surgidas outubro de 72 são o antecedente do poder dual “e que, sem temores de nenhum tipo” – haviam de – “caminhar, em essência, rumo à dualidade de poderes”. O Secretário Geral do MIR aludiu em sua intervenção à experiência revolucionária russa, contrastando-a com o caso chileno da conjuntura de outubro de 72, manifestando que “Santiago não era Petrogrado, nem o ano de 72 tinha muito a ver com 1917, mas algo tinham em comum. Não havia aqui uma crise geral do sistema no qual as tarefas que os bolcheviques então se colocaram estivessem na ordem do dia, mas sim as linhas essenciais do desenvolvimento da luta de classes, nos períodos fundamentalmente definidos, tinham sim um fio condutor geral”. Na citação transcrita parece central a afirmação de que o outubro de 72 no Chile não correspondia exatamente ao “outubro de 17” russo; mas a expressão “algo tinha em comum” condensa inequivocamente a concepção revolucionária do MIR, na qual se aceita um paradigma fundacional e universal da revolução A diferença do processo chileno com o outubro russo seria somente de ritmos, intensidades de prazos históricos, mas a revolução chilena teria de seguir uma sequência lógica e uma regularidade, já inscrita em um a priori clássico. A conquista do poder, que restaria materializado nos aparatos de Estado; a destruição física e voluntarista destes aparatos que condensariam a vontade, os interesses e o projeto burguês, e a construção de um aparato estatal substituto, a serviço do proletariado erigido em classe dirigente através de seu partido de vanguarda. Na leitura do MIR, os Comitês Coordenadores / Comandos Comunais surgidos em outubro constituiriam uma forma de poder popular transicional e provisória que deveria desenvolver-se até a conformação dos “Conselhos Comunais de Trabalhadores” – como – “aqueles organismos nos quais já se cristalizam tarefas de poder”. Nesta fase do debate, o MIR atribuía aos Conselhos de Trabalhadores a forma possível de organização de poder dual frente à institucionalidade burguesa: um verdadeiro “soviet”, no interior do qual “as distintas correntes revolucionárias deveriam lutar e competir para ganhar sua direção”. Estes órgãos se conformavam no palco de massas do “combate ideológico” – que deveria ser implacável – “contra o reformismo, contra qualquer desvio reformista que atente, não à constituição orgânica formal de um Comando Comunal, senão à geração de um poder alternativo, de uma dualidade de poderes”. Os núcleos de esquerda cristã, o Movimento de Cristãos pelo Socialismo, também participantes no debate do Poder Popular, não formularam posições que se descolassem demais daquelas expostas pelo MIR. Seu protagonismo ao nível das massas foi bem mais modesto, e sua significação consistiu no carisma de setores do mundo cristão que acolhiam o projeto socialista, comprometendo-se com suas expressões mais radicalizadas.

O presidente Allende não participou diretamente no debate público em que se confrontaram as distintas leituras do processo e do Poder Popular. Contudo, em sua Terceira Mensagem Presidencial, a temática do Poder Popular alcançou um status significativo no contexto de sua re-explicitação e revalorização da via político-institucional ao socialismo. Allende introduziu na Mensagem Presidencial o conceito de socialização do poder político, para denotar que o projeto socialista não se esgotava na socialização dos meios de produção estratégicos, senão na transferência do poder político às organizações populares de base. À luz do balanço do processo chileno, Allende expressou que o sistema hierárquico de autoridade do ordenamento burguês “perdeu vigência ante os trabalhadores, que se esforçam por criar, dentro do regime institucional do Estado e sua normativa legal uma ordem e uma disciplina que repouse socialmente neles mesmos”. Allende mencionou nesta relação as diferentes formas de organização popular, que haviam emergido depois de 1970, expressando uma tendência ao exercício da democracia direta, como os Cordões Industriais e os Comandos Comunais. Frente à institucionalidade tradicional, “as instituições da nascente organização social estão buscando, ensaiando, criticando seu próprio estatuto de trabalho e disciplina”. Nesta, sua última Mensagem Presidencial, Allende insta uma vez mais os legisladores a recorrer ao impulso das bases populares e de sua experiência democrática direta, a articula-las às instituições da democracia representativa, em definitivo a dar-lhe ao Poder Popular emergente um calço jurídico-institucional. Allende destacou que a “democracia é tanto mais autêntica quando mais imediato e direto se faz seu exercício”. O espaço privilegiado de realização da democracia direta devia ser, na visão de Allende, na Comuna ou Município, a base de um processo de aprofundamento da democracia e da socialização do poder. No âmbito comunal “junto às instituições comunitárias e sindicais atualmente existentes” – deviam criar-se – “um novo centro de organização, os Comandos Comunais, formados por representantes eleitos pelas organizações comunitárias e de trabalhadores”. Além de discutir e buscar soluções para os problemas locais, estes organismos deviam ser “capazes de fazer possível o controle popular sobre as instituições administrativas contribuindo para combater o lastro burocrático”. A proposição de construir um Poder Popular complementar do Governo Popular, como elemento chave neste processo de democratização/socialização do poder político, emergirá no discurso do Presidente Allende como uma constante, depois de sua Terceira Mensagem Presidencial ao Congresso Pleno em Maio de 73. Este Poder Popular germinal não podia desembocar na experiência chilena em poder dual frente ao governo da UP. Na concentração pública convocada pela CUT na tarde de 29 de junho, logo após o frustrado levante militar, o Presidente Allende convoca com voz firmes os trabalhadores dos Cordões Industriais, “a criar e criar o Poder Popular, mas não antagônico nem independente do governo, que é a força fundamental e a alavanca que têm os trabalhadores para avançar no processo revolucionário”. Nesta fase do debate sobre o Poder Popular, focalizada nos Comandos Comunais, as posições em jogo alcançaram um ponto mínimo de consenso, qual seja, a necessidade de alentar o desenvolvimento do Poder Popular. Os dissensos residiram na concepção do Poder Popular e de seu status no contexto de uma estratégia para o socialismo. Para os socialistas, cujo discurso estava atravessado pela tensão de ser partido de governo e ao mesmo tempo partido imerso nos novos movimentos populares, o Poder Popular não devia ser antagônico ao governo, mas complementar, e também ser um elemento de radicalização do processo revolucionário. Já o MIR, fora da UP, de seu programa e estratégia, podia proclamar sem ambivalências nem equívocos as concepções leninistas. O Poder Popular nascente constituía para o MIR o germe de uma situação de dualidade de poderes, cujo desenvolvimento conduziria à quebra da institucionalidade existente, à formação de um novo governo baseado nos órgãos do Poder Popular, à construção de um novo Estado. Para o Presidente Allende, uma nova Constituição Política devia canalizar e integrar as novas instituições surgidas da práxis social e fazê-las complementares com as instituições da democracia representativa.

      

Resenhas sobre o livro no link 1 e 2.

     

A SEGUIR: O DESENVOLVIMENTO DOS CORDÕES INDUSTRIAS E COMANDOS COMUNAIS

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