Alfred Sohn-Rethel e a falsa consciência necessária

Por Daniel Tutt, via Spirit is a Bone, traduzido por Daniel Fabre

Professor da Marymount University, Daniel Tutt, aborda o conceito de falsa consciência necessária do filosofo marxista do século XX Alfred Sohn-Rethel. Este em sua obra-prima – Trabalho Intelectual e Manual – tece as bases de uma epistemologia marxista que busca romper com a clássica, e mais atual do que nunca, divisão do trabalho. Sem se valer de uma teoria do inconsciente Sohn-Rethel elabora uma crítica da abstração mercadológica e dos fundamentos do pensamento humano.


No capitulo final da obra-prima de Alfred Sohn-Rethel, Trabalho Intelectual e Manual, é invocado o conceito de “falsa consciência necessária”. Essa é um tipo de falsa consciência que não é meramente uma consciência faltosa, mas antes um tipo de falsa consciência que é logicamente correta. Isso é o que ele chama por “consciência inerentemente corrigível”. Não é falsa contra seus próprios padrões, mas contra a existência social como tal. Sua falsidade não pode ser corrigida pela lógica ou por ajustes conceituais. É necessária de forma pragmática, para a manutenção da ordem social. A falsa consciência necessária é uma adaptação das teorias da alienação e da abstração real de Marx. É claro, a formula “eles não sabem o que fazem” de Marx, que forma a base da ideologia é usada de uma boa forma por Zizek no começo de O Sublime Objeto da Ideologia, mas Sohn-Rethel a usa sem apoio em nenhuma teoria do inconsciente.

Sohn-Rethel é um marxista do século XX que define sua posição como um materialista histórico, o que significa que ele busca defender – em um nível meta-teórico – o devido legado e a aplicação do materialismo. Sua crítica é travada no nível da epistemologia – corrigindo a crítica marxista, mas seu trabalho não é parte da constelação de teorias pós-modernas. Ele se vale de uma ideia emancipatória de solidariedade dos trabalhadores, mas que é assentada em uma crítica da epistemologia.

Ele deveria ser lido hoje em dia especialmente quando nos defrontamos com as teorias da crise. Seu trabalho é baseado em um esforço de pensar para além de muitos clichés que marxistas se filiaram durante o século XX. Por exemplo, ele sabia muito bem que a abolição do capital privado pela revogação dos direitos de propriedade não disporia automaticamente da antítese do trabalho intelectual e manual. É essa antítese que permanece sendo e que ajuda na continuação de uma sociedade antagônica. Ele argumenta  que essa antítese deve ser resolvida, mas isso requer uma alteração no nível superestrutural – no nível da consciência. Se Sohn-Rethel deve ser criticado é em como destruir a divisão entre trabalho manual e intelectual. Como pode ser realizado e quais são suas consequências não estão bem articuladas.

Amplamente desacreditado pelos marxistas por sua teoria radical da abstração das mercadorias, que exploraremos abaixo, o trabalho de Sohn-Rethel é, entretanto, fascinante. Assim como Marx, ele reivindica que todos conceitos cognitivos são derivados do ser material de onde eles surgem, e porque os conceitos cognitivos são derivados do ser, não o ser da natureza exterior e do mundo material, mas o ser social das épocas históricas nas quais esses conceitos surgem e desempenham seu papel, que é o que nos importa mais em termos de análise.

Para Sohn-Rethel os sofistas (se você preferir) são aqueles para quem o mundo externo existe sem relação com a consciência. Quando você pergunta a um desses como uma certa ideia é, uma reflexão do ser, ele responde reiterando a mesma versão galgada na aparência de uma verdade primeira – de uma verdade que é assentada em um intelecto a-histórico. É esse intelecto que gera a falsa consciência necessária e é esse intelecto que Sohn-Rethel traz à luz em sua obra.

O que é a falsa consciência necessária? Sua natureza pragmática sugere que ela aumenta na medida da socialização e normalização. Ao invés da ideia de Marx de que a falsa consciência necessária afeta apenas o proletariado, a ideia de Sohn-Rethel é mais universal. De fato, podemos sugerir que há uma relação inversa direta entre a normalização dos processos sociais e a falsa consciência necessária. Porque? Isso ocorre precisamente porque, como Sohn-Rethel aponta, “a mente socializada do homem é dinheiro sem seus acessórios e é imaterial, ela é puro intelecto”. É aqui que descobrimos a contribuição mais original e importante de Sohn-Rethel, de que na troca de mercadorias, a base do pensamento abstrato surge causada por uma abstração que exclui o valor de uso.

Abstração Mercadológica

Em outras palavras, o ato de uma troca de mercadorias não bane o uso da mente das pessoas. No ato de troca de moedas, porque a ação é social, as mentes das duas pessoas engajadas no ato se apresentam privadamente. Há sempre, portanto, uma mais-valia do capital sobre o trabalho que produz uma paridade inerente entre as equivalências em qualquer troca.

A troca em-sí cria um espaço de abstração fora da relação social. Essa relação social abstrata surge apenas da mente. De muitas formas, ela funciona como uma relação diferencial excedente como a que podemos encontrar na teoria da diferença sexual de Lacan mas, essa não é uma teoria que se baseia na ideia de inconsciente. A abstração da troca de mercadorias situa tempo e espaço, e em seu ato, todo fenômeno observável está sujeito a esta abstração (p.74). A premonição mística de Marx no Capital de que as mercadorias são compostas de propriedades teológicas e sutilezas metafísicas é aqui radicalizada.

No simples ato de dispor de uma moeda há a criação de uma nova temporalidade que é abstraída de uma dimensão quantificável e é isso o que cria o intelecto científico, exploraremos mais sobre isso abaixo.

Foi a declaração de Parmênides de que ser e pensamento são um só o que representa a primeira prova filosófica do impacto da troca de mercadorias no pensamento abstrato – na invenção de trabalho intelectual. Para Parmênides, o pensamento é o que é, mas ainda assim, muito diferente, é o a priori transcendental de Kant que herda seu legado e o trás para a abstração da mercadoria e, de fato, é Kant o filósofo mais perigoso para Sohn-Rethel porque o sujeito transcendental é apenas um fetiche da troca de mercadorias.

A troca de mercadorias permitiu o nascimento de todo pensamento especulativo na cultura grega. O fato de que alguém poderia revindicar um conhecimento objetivo e válido lastreado apenas em uma base subjetiva e universal é uma concepção grega. Foram os gregos que primeiro desenvolveram um senso de maestria sem quaisquer livros sagrados, apenas face-a-face com a natureza.   

A crítica da natureza e da ciência de Sohn-Rethel parte das reflexões de Marx nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, onde encontramos que toda história é o processo do homem tornar-se homem, e que a natureza será subsumida na ciência do homem. Isso é o porquê para Sohn-Rethel a matemática é a lógica de todo pensamento. A ideia de movimento inercial de Galileu tem a mesma noção que a troca de mercadorias e o fato de que Kant foi capaz de desenvolver conceitos a priori que não estavam galgados na natureza é a prova de que a troca de mercadorias subsumiu a natureza. A fórmula que guia a investigação de Sohn-Rethel é que a “a ciência exata é o conhecimento da natureza na forma mercadoria” (p.132).

Rompendo a Divisão Intelectual e Manual do Trabalho

A divisão entre trabalho manual e intelectual é parte crucial do que tornou possível o surgimento da civilização. O surgimento da propriedade privada levou a transição de produtos em mercadorias, advindas do comércio entre indivíduos. Há dois tipos de sociedades, sociedades de produção, que são geradas por relações de trabalho onde a síntese social é direcionada para a solidariedade e o pensamento dos trabalhadores, e há sociedades de apropriação. Sociedades de apropriação são sociedades baseadas da troca recíproca de mercadorias, amparada na produção privada. “Não importa o tipo de trabalho, a síntese social determinará a consciência da era” (p.86). Romper a divisão entre trabalho intelectual e manual é uma tarefa no nível do que Marx se referiu como a superestrutura – é uma tarefa que clama por uma mudança da consciência. É uma tarefa do século XX, conforme Sohn-Rethel, e é a isso que ele se propõe atingir em seu livro.

Em sua crítica ao taylorismo Sohn-Rethel oferece algumas pistas sobre como abolir a divisão entre trabalho intelectual e manual. Foi Taylor quem forneceu a possibilidade de tirar poder das mãos dos operadores de máquinas para os da gestão, o que levou a automação em larga escala e a necessidade de superprodução do capital. Como Marx previu, a separação entre trabalho intelectual e manual, que resulta na dominação das faculdades humanas como poderes que articulam o capital sobre o trabalho, é finalmente completa pela indústria de larga escala erigida sobre a fundação da maquinaria (Marx em O Capital, p. 156).

A solução de Sohn-Rethel permanece no nível de teoria voltada para os trabalhadores:

“Para que os trabalhadores não se dividam por seus salários, as mentes dos trabalhadores deveriam ser construídas em conformidade com o caráter composto de seu trabalho combinado” (p. 162).


Daniel Tutt é professor adjunto na Universidade de Marymount e diretor da Unity Productions Foundation, onde produziu diversos projetos e filmes sobre o islã nos EUA. Atualmente produzindo e dirigindo um documentário chamado “Insurrections” ele explora a filosofia por detrás dos protestos e movimentos contemporâneos.

 

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