Por J-P Caron e Bruno Trchmnn
De que vivem os artistas do fracasso? Somos professores, estudantes, funcionários públicos, carteiros, operários, atendentes, motoristas, garçons, babás, estudantes, desempregados e outras párias da elite artística. Se não podemos vender arte, vendemos nossa força de trabalho, em suas diferentes formas. Ao espaço em que circulamos pode ser dado o nome tosco de “underground”, um nome difícil de assumir sem uma ponta de vergonha, mas que talvez seja o único que temos. Nosso capitalismo dependente não foi (e nunca será) capaz de criar um estado de bem estar social suficiente para que possa se desenvolver uma cultura que consiga sustentar a si mesma na margem do sistema. Movemo-nos abaixo do sistema de arte, abaixo da indústria cultural. Acesse e faça o download de Gato tosco.
1. O mundo ainda pode, se assim se desejar, ser dividido entre artistas e não- artistas. E quando dizemos “artista”, queremos dizer “artistas profissionais”. A arte enquanto uma especialidade profissional parecia ter morrido décadas atrás, quando também morreram o gênio da técnica e o virtuose. No século XX formas muito simples, precárias, puderam ser aceitas enquanto arte, enquanto atividade sensível e intelectual. Uma pincelada. Um som sustentado por um longo tempo. Um borrão. Um punhado de ruídos. Uma palavra. Um grito. Três acordes.
2. Mas eis que, o profissionalismo, o virtuosismo, foi transferido, no entanto, para o trato com o mercado. O artista, entendemos, deve viver de arte. No capitalismo, o artista deve vender arte. Diferente do trabalhador assalariado, o artista não vende sua força de trabalho. O artista vende arte, um produto, um produto que ele mesmo produz e que ele mesmo deve se ocupar de vender. O artista pode até mesmo terceirizar a execução e venda de seu produto, se puder pagar. E para vender bem, o artista deve se singularizar, a todo custo. Cada artista deve produzir uma imagem singular de si mesmo. Ser artista é viver de arte, viver de arte é vender arte, e vender bem arte é vender a si mesmo enquanto uma imagem-conceito-marca. Ser artista é uma forma filosófica (ou mística) de marketing. O que define, portanto, um artista “sério”? Pagar suas contas com o lucro da venda de seus produtos. Quantos artistas “sérios” então, podemos dizer que conhecemos em nosso dia a dia? Quantos artistas “sérios”, podemos dizer que vivem em nossas cidades? É difícil pensar em um punhado. Se excluirmos então aqueles que aparentemente vivem de arte, mas contando sempre com a renda de um apartamento alugado, uma herança (pequena ou grande) ou outros investimentos da família, o número será cada vez menor.
3. A arte “séria” nas condições presentes é uma atividade para as elites. Tanto que o sucesso de um artista é medido pelo quanto este artista é permitido (suportado?) nos círculos sociais destas elites. Esta é a medida do sucesso no “star-system”.
4. No entanto, fazemos arte. Se nos voltamos para questionar a nossa própria relação com a prática artística, em suas mais básicas, emocionais e instintivas motivações, podemos dizer que pela experiência, existe algo de libertador na expressão artística, um grande prazer, um incêndio da forma que instiga o fazer. Não estamos sozinhos, somos milhares, que mesmo distantes do “sucesso”, insistem em se engajar neste fazer, circulação e trocas da nossa produção subterrânea. O sistema de arte é sustentado por uma massa anônima, uma infinidade de artistas que nunca poderão pagar suas contas com suas vendas. Uma legião de não-artistas artistas. Mas nós produzimos, nós circulamos, nós renovamos e nos jogamos em ideais radicais de cultura.
5. De que vivem os artistas do fracasso? Somos professores, estudantes, funcionários públicos, carteiros, operários, atendentes, motoristas, garçons, babás, estudantes, desempregados e outras párias da elite artística. Se não podemos vender arte, vendemos nossa força de trabalho, em suas diferentes formas. Ao espaço em que circulamos pode ser dado o nome tosco de “underground”, um nome difícil de assumir sem uma ponta de vergonha, mas que talvez seja o único que temos. Nosso capitalismo dependente não foi (e nunca será) capaz de criar um estado de bem estar social suficiente para que possa se desenvolver uma cultura que consiga sustentar a si mesma na margem do sistema. Movemo-nos abaixo do sistema de arte, abaixo da indústria cultural.
6. “O termo underground (…) é uma invocação metafórica dos grupos de resistência da segunda guerra mundial frente a ocupação fascista da europa. Crucialmente falando o “underground” entende a si mesmo como uma cultura; não apenas uma comunidade ou estilo de vida, mas uma sensibilidade que poderia realizar o subtexto secreto de libertação útopica da cultura popular.”[1]
7. Alguns, heroicamente, conseguem mover suas vidas de forma a viver do dinheiro que conseguem trabalhando nessa margem do sistema de arte. Alguns destes o fazem por não ter opção, não terem o privilégio de estudar para uma ocupação e ter de escolher entre viver precariamente de sua expressão ou um emprego angustiante e sem futuro. São estes camaradas que mais sofrem quando o cotidiano é drasticamente alterado e vemos como era frágil essa economia. Não reconhecer as adversidades imensas é diminuir os sacrifícios de quem tenta viver nessa margem.
8. A partir dos anos 60, se constrói uma nova abordagem sobre a prática experimental em música (e nas artes em geral), que dissolve as fronteiras entre alta e baixa cultura, entre a vanguarda e o popular. Nisso temos o desenvolvimento de uma prática experimental da música que pouco se difere das práticas populares. Mais do que pensar na maneira como essa dissolução de barreiras se dá sobre os aspectos formais daquilo que é produzido, essa dissolução de barreiras se da também nas formas sociais e organizacionais do fazer artístico, as formas em que essa nova música radical circula e é elaborada. Não seria difícil pensar a improvisação livre, o drone, o noise, o free jazz e o punk como formas culturais urbanas e mundiais, que circulam em estruturas tão comunitárias quanto eventualmente apropriadas pelo mercado.
9. Dizer que esse “underground” é composto principalmente pelas classes média e alta é uma verdade, mas tomado como verdade incontestável se torna um pressuposto que serve apenas para realçar o elitismo que cerca a ideia de arte em nossa sociedade. Este é no fundo o pressuposto de que não apenas a arte é uma atividade de elite, mas que apenas a elite tem capacidade de se interessar por esta atividade. No pior dos casos, o “underground” é um mero curral de novas ideias para o apetite insaciável dos mercados. No pior dos casos, tentamos emular as formas e relações do mercado na esperança fútil de por imitação ascender aos círculos maçônicos das elites esclarecidas. Em nosso melhor, podemos ser um espaço de expressão e renovação cultural sem compromissos com os códigos ideológicos da elite.
10. É preciso eliminar de vistas qualquer idéia de que o mercado ou o pensamento mercadológico configura um tipo de corrupção que não pode tingir, de forma alguma, o fazer artístico. O mercado, o capitalismo em si, é um fato material com o qual qualquer ação terá que lidar. Lidar com os fatos materiais é também sobreviver, e sobreviver para tornar possível a radicalização cada vez maior das conquistas para o futuro. Esperar que se possa organizar qualquer ação radical dentro de uma bolha de pureza conceitual é sucumbir a um utopismo oco que prefere as torres de marfim. O imperialismo distribui forças destrutivas por todos os lados, o utopismo é um gosto pela derrota. O que é preciso é o esforço de enxergar onde o mercado se impõe enquanto ideologia, onde o mercado se impõe sobre as possibilidades do novo. Devemos destruir o mercado de arte primeiro enquanto dogma.
11. Por outro lado se o artista não é exatamente um trabalhador, pois é orientado por uma perspectiva extremamente individualista de venda de seu próprio trabalho criativo [2], o que é o artista fracassado, que não consegue viver da venda de seu trabalho artístico, mas, mesmo assim, não deixa de produzir? Que tipo de fileiras podemos fechar com a massa de trabalhadores assalariados- na medida em que somos e não somos da classe trabalhadora?
12. Reconhecemos que esta “vanguarda fora da vanguarda”, a “vanguarda fracassada”, a massa anônima do underground, não faz parte do sistema de arte enquanto uma força ativa, e sim como uma cultura orientada pela inovação formal e por relações orgânicas, que é constantemente apropriada por este sistema. Enquanto a massa de desempregados é reserva de mão de obra para o capitalista, a massa de artistas falidos é reserva de mais-valia e capital cultural para o marchand bem sucedido. Contra o marchand profissional, fazemos nossas próprias curadorias parafraseando Kodwo Eshun, com “uma postura que visa intervir na política cultural, que se molda para articular um descontentamento – para enfocar o desespero e a depressão nas teorias que vivem.”[3] “Teorias que vivem”, pois são o reconhecimento do pensamento que se desdobra na prática. Que não se reduz à concretude imediata, mas que se nutre da própria alienação, separação do real, como um contínuo trabalho de aprofundamento, e não resolução, do estranhamento e da construção de mundos [4].
13. Os trabalhadores se reúnem e apropriam-se “de uma nova carência, a carência de sociedade, e o que aparece como meio, tornou-se fim. (…) Nessas circunstâncias, fumar, beber, comer, etc. não existem mais como meios de união ou como meios que unem. A companhia, a associação, o entretenimento, que novamente têm a sociedade como fim, basta a eles; a fraternidade dos homens não é nenhuma frase, mas sim verdade para eles, e a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho.”[5] Esta reversão entre meios e fins [6] – a reunião e organização como um meio para a revolução se torna um fim em si mesmo, malgrado ser malvista por algumas pessoas engajadas na militância como uma desativação do ímpeto revolucionário, exibe não a confraternização como solução e desativação das demandas de emancipação e sim como lugar onde a carência desta associação, prazer, entretenimento, em suma, se torna visível a todos, e na prática artística essa carência encontra uma realização possível. Uma carência que não é do tempo livre determinado pelos limites do tempo do trabalho, mas do tempo liberado. Uma carência que, ao ter sua existência enquanto carência admitida, pode vir a ser motivadora para o exercício da transformação social.
14. O artista trabalha por salário para liberar o tempo para a arte, e faz a arte para conseguir um dia se liberar do tempo do trabalho. Porque os artistas que somos ainda precisam vender sua força de trabalho no mercado somos também trabalhadores, e a demanda de subsistência daquilo que nos é mais caro- a arte que fazemos- participa do mesmo conjunto de demandas que nos fazem trabalhar. Pensar os dois lados de nossas vidas- o de artista e o de trabalhador- como separados é não compreender como se relacionam e como a demanda artística pressiona pela atuação política em prol de sua continuidade. Das duas maneiras o fato de haver uma disjunção interna na sua vida de trabalhador e artista mostra um horizonte regulativo de demandas- o do tempo liberado- que se confunde com a conquista do comum. Esse horizonte só se faz presente por meio da consciência da falta- que não é simplesmente a falta que existe, embora não saibamos, mas a falta que é sentida como falta quando temos o gosto da liberdade permitida pelo tempo livre.
15. Mas dizer isto, não seria negar a realidade das condições materiais em que estas vivências acontecem? Não seria endossar uma política pre-figurativa nos moldes de uma “zona autônoma temporária”, cujo conceito é indistinto daquele de um jantar de família (quando sabemos que “a revolução não e um convite para um jantar”)? Estas vivências não acontecem em um vácuo social, são espaços que precisam ser erguidos e depois sustentados em maior parte pelas mesmas pessoas que vão o ocupar. Mas mesmo o espaço mais livre e mutável não sobrevive no cotidiano sem que seja materialmente estruturado por alguma forma de organização. É essa organização que sustenta tudo. Esse espaço já existe, é necessario reconhecer os seus potenciais emancipatórios e os perseguir, sem arrogância e pretensão.
16. Contra a posição apaziguadora da arte como produtora de uma sensação de satisfação pela distração, dentro da composição que imaginamos, a arte satisfaz, sim, temporariamente, mas por essa satisfação acende uma nova carência. Não basta existir o desejo, mas é pela existência dos objetos de nossa carência que sabemos que existe uma carência. A produção artística coloca assim uma demanda, que a prática política deve lutar para suprir.
17. Por muitos anos se tentou entender, formalmente, como diferentes classes poderiam produzir diferentes tipos de arte. Nisso a questão de diferenciar o que seria arte burguesa de arte proletária. Hoje podemos ver que o desenvolvimento da autonomia da arte enquanto instituição libertou o artista de responder diretamente a seus estímulos sociais de maneira homogênea. Não precisa existir, hoje, uma diferença real entre a arte produzida entre as elites e a produzida entre os trabalhadores. No entanto, a forma como a arte se organiza entre as diferentes classes, isso sim é de máxima importância.
18. Maiakovski estava certo a cobrar que o poeta produza coisas úteis. Essa utilidade, no entanto, se já na construção de um espaço onde o público e os artistas estejam na mesma condição horizontal de engajamento com o fazer artístico, é o momento em que o sujeito se apercebe de uma necessidade que não sabia ter de ser um agente de sua própria cultura. Uma utilidade que nada mais é que a reinvindicação, mobilização e politização da inutilidade enquanto tempo liberado exigida pelo trabalhador.
19. Não se trata de apenas compreender as condições do sistema de arte, mas de transformá-las. A constituição da composição artista-trabalhador é a constituição da organização autônoma onde são temporariamente suspensos os imperativos e demandas de sobrevivência de cada um. A organização é a obra e a teoria e o prazer e a vivência. O tempo da construção do futuro é o tempo livre que se torna liberado. Mas o tempo livre só se torna liberado pela mediação das condições materiais. E as condições materiais se transformam pela mediação de mediações. O mapa dessa transformação só poderá ir sendo recolhido pelo exercício da própria organização.
20. Se somos nada, sejamos tudo.
Notas:
[1] Reekie apud CADELL, Adam. Subterranean Blues: World Revolution and the Underground Violinists. Perspectives of New Music. 52. 111-140.
[2] Conforme diz Ben Davis, em 9.5 Theses on Art and Class. Haymarket Books, 2013.
[3] Kodwo Eshun- “Mark Fisher Memorial Lecture” https://www.youtube.com/watch?v=ufznupiVCLs
[4] “We want superior forms of corruption” Laboria Cuboniks in https://laboriacuboniks.net/#firstPage
[5] Marx – “Manuscritos econômico-filosóficos”, pp. 145-46 6 Círculo de Estudos da Idéia e da Ideologia. “O fim da organização” https://18.118.106.12/2016/05/20/o-fim-da-organizacao/