O que faz a filosofia de Alain Badiou?

Por Pedro Rodrigues Naccarato (apêndice: Pedro Rodrigues Naccarato e Rafael Petito Vieira)

Com sua teoria das condições, Badiou afirma que a filosofia só é possível à medida que existam determinados processos não-filosóficos que proponham novidades para o pensamento. Defendo que essa teoria funciona como uma injunção materialista e anti-especulativa no pensamento de Badiou. Além disso, acredito ser possível encontrar nela a chave para compreender a dimensão mimética da filosofia badiouana.


“There was a time I asked myself, What is it. / There were times I answered, It’s the outing. / Two outings. / Then the return. / Where? / To the village. / To the inn. / Two outings, then at last the return, to the village, to the inn, by the only road that leads there. / An image, like any other”

(BECKETT, 1984, p. 143).

(I) Apresentação do problema em linhas bastante gerais

No presente texto, buscarei destacar o que considero ser certa especificidade comportamental da filosofia de Alain Badiou. Para tanto, escolhi como campo privilegiado de leitura a teoria das condições, principalmente tal como está exposta na coletânea Conditions (1992).

Em suma, o que a teoria das condições afirma é que a filosofia só é possível à medida que existam determinados processos não-filosóficos que proponham novidades para o pensamento. A esses processos – que são, assim, condições da filosofia –, Badiou dá o nome de procedimentos genéricos ou verdades, e os apresenta em número de quatro: a matemática, a arte, a invenção política e o amor. A atividade filosófica consiste, a partir daí, no esforço por organizar em um mesmo texto a série de criações heterogêneas que uma época foi capaz de produzir nesses quatro campos.

Ao meu ver, essa teoria funciona como uma injunção materialista e anti-especulativa no pensamento de Badiou, à medida que prende a filosofia a determinados processos reais e extra-filosóficos. Além disso, acredito ser possível encontrar, nela, ainda que sob o preço de uma certa radicalização dos enunciados de Badiou – alguém poderia dizer que se trata de desconstrução –, a chave para compreender a dimensão mimética da filosofia badiouana.

(I*) Considerações preliminares sobre método

Não pretendo fazer uma exegese exaustiva da obra de Badiou, e acredito ter motivos para tanto. Como buscarei mostrar mais à frente[1], a filosofia de Badiou se estrutura de um modo tal que ela permanece tanto mais fiel à sua vocação filosofante quanto menos tenta filosofar. Posso resumir dizendo que a máxima badiouana – me limito a aludir a ela por agora – que institui que a filosofia não deve se confundir com nenhuma das suas condições, sob a pena mesma de se autoaniquilar enquanto filosofia, demanda que ela permaneça suficientemente indeterminada para dizer respeito a todas as suas condições a todo tempo. Quero dizer: um discurso capaz de pensar a compossibilidade de procedimentos científicos, políticos, artísticos e amorosos deve abdicar de pensar a especificidade de cada um desses procedimentos – a generalidade da informação implica em uma perda na sua complexidade[2].

Atribuo a esse fato que grande parte dos comentários que pude encontrar sobre a obra de Badiou, e mesmo muitos dos comentários do próprio Badiou sobre a sua obra, sejam tão… pouco badiouanos. Não digo isso para desmerecer o trabalho de meus colegas pesquisadores, mas tão somente para delinear uma crítica de seu método. Comentar é determinar, é atribuir ao texto uma série completamente nova de sentidos e enriquecer sua capacidade informativa. Ora, se a filosofia de Badiou demanda o maior grau possível de indeterminação, comentá-la diretamente – buscar explicitar seus enunciados, revelar seus movimentos argumentativos, inseri-la no interior de uma rede mais ampla de discussões – só pode ser um desserviço às suas pretensões[3]. Como interpretar filosoficamente um texto filosófico que afirma ele mesmo que “a filosofia não é uma interpretação do sentido daquilo que é oferecido à experiência” (BADIOU, 1992, p. 69)? Uma leitura estrutural de Badiou necessariamente fracassa: porque se é uma leitura de Badiou, não pode ser estrutural, e se é uma leitura estrutural, o que ela está lendo é outra coisa que não Badiou[4].

Tomo como paradigmática a seguinte anedota. Acredito que o ano era 2018, e o grupo Prague Axiomatic Circle organizou um ciclo de conferências acerca da obra de Badiou (as comunicações estão todas disponíveis no YouTube, salvo engano). Nele, discutiu-se muito a polêmica afirmação de Badiou no início de L’être et l’événement: “a ciência do ser-enquanto-ser existe desde os gregos, pois esse é o estatuto e o sentido das matemáticas” (1988, p. 9). Os tópicos eram variados, e iam desde considerações sobre a história da matemática até a querela acerca de qual seria a sintaxe mais adequada para fundamentar uma ontologia contemporânea. Falou-se também da adequação de certas escolhas vocabulares de Badiou aos conceitos matemáticos a que elas faziam referência, e buscou-se inclusive criticá-lo por não entender o real sentido da teoria de conjuntos.

Pois bem, o Badiou também falou neste ciclo, ele foi o último a falar. E, depois de ouvir pacientemente todas as críticas, ele nem sequer tentou se defender. Pelo contrário, deu toda razão aos seus adversários, bastante competentes na leitura que fizeram do texto. Não, a sua resposta seguiu uma linha completamente diferente. Eu a transcrevo:

“Na verdade, eu devo confessar a vocês que essa fórmula […] é uma espécie de fórmula midiática. Se vocês quiserem, foi um modo de ilustrar de maneira simples o resultado de minha atividade filosófica, e eu estou sendo punido por essa concepção midiática por muitas, muitas e muitas refutações da frase ‘a ontologia é a matemática’, e certamente todas as afirmações contra essa frase são corretas. Mas era a tentação de algo como uma fórmula definitiva […]: ‘Badiou disse que a ontologia é a matemática’” (PRAGUE AXIOMATIC CIRCLE, 2018).

A fórmula é midiática, o que quer dizer que ela é propagandística, mas também que é um meio de exprimir uma coisa distinta dela mesma, algo que se encontra em uma atividade filosófica que não se deixa traduzir completamente no discurso publicizado.

Não deixa de ser significativo que, depois disso, Badiou ainda tenha a audácia de tentar explicar qual seria, então, a sua “verdadeira relação” com a matemática. Um modo de dizer: a leitura dos comentadores é correta, mas não é verdadeira. Como se a adequação do comentário fosse um modo de perder de vista aquilo que realmente está em jogo (os livros do Badiou realmente parecem manuais de um jogo que está sendo jogado fora deles, são sempre um apontar incessante para o fato de que o que realmente importa não está na filosofia, mas nas suas condições – “descarte após usar”). Se Badiou nos pede para que não o leiamos tão ao pé da letra assim, é porque corremos o risco, caso o fizermos, de ficar sem pé, sem letra e ainda por cima sem o espírito que anima todas essas coisas.

Não quero dizer com isso que o melhor caminho seja simplesmente fazer silêncio sobre a obra de Badiou, já que todo comentário é impossível. Também não se trata de levar a cabo algo como uma “leitura sintomal”, como se houvesse um outro texto por trás do texto escrito cujo sentido estaria esperando para ser revelado. Há, de fato, algo “por trás”, ou melhor, algo orbitando o sistema, algo que, todavia, não é um texto, mas uma atividade, como o próprio Badiou diz – atividade das condições, que informam sub-repticiamente a verdade das palavras escritas. Ler Badiou é como jogar um jogo de dardos com um buraco bem no meio do alvo: acertar em cheio é o mesmo que errar. Miremos, pois, nas bordas.

Tento colocar objetivamente, então, meu método de leitura.

Primeiramente, proponho que levemos a sério e, mais do que isso, que radicalizemos a confissão feita por Badiou em sua palestra. Mais do que algumas passagens isoladas, defendo que o texto badiouano é, em sua integralidade, uma fórmula midiática. O que quer dizer que a escrita é, para Badiou, um meio de publicizar sua atividade filosófica[5].

Pois bem, agora gostaria de perguntar: em que consiste um comentário? Seguindo uma inspiração mais ou menos peirceana[6], proponho o seguinte esquema como resposta:

Como em um diagrama usual, a bolinha preta significa um fechamento do sentido do texto, enquanto que a bolinha branca significa a abertura da interpretação feita pelo público.

Creio que esse esquema condiz com uma noção por assim dizer intuitiva do que seria um comentário. Comparemos ele, por exemplo, com a seguinte definição selecionada em um dicionário de termos literários escolhido por acaso:

“O que é que o texto diz? Como diz? O que me diz? – estas são as principais perguntas a que temos de dar resposta quando pretendemos fazer um comentário de texto. Para chegar a tais respostas é preciso, em primeiro lugar, chegar a um momento de síntese a que chamamos compreensão. Lemos um texto e, para falar dele, temos que o ter compreendido em primeiro lugar. O acto de falar do texto corresponde, por sua vez, ao acto de explicação, ou seja, o momento em que, uma vez compreendido o texto lido, estamos aptos a esclarecer os outros sobre aquilo que o texto diz, como diz e o que nos diz. O acto de compreensão do texto torna-se, a partir daqui, simultâneo em relação ao acto de explicação, porque explicamos para que os outros possam compreender. Este processo pode ser continuado infinitamente. Só podemos chegar ao comentário, depois de termos compreendido e explicado um texto” (COMENTÁRIO, 2018).

O comentário é a mediação entre um texto compreendido e uma interpretação que pode se desdobrar infinitamente em uma série de novos textos e compreensões. Em sua estrutura mínima, ele é, portanto, uma função de publicização.

Ora, mas, sendo assim, a nossa hipótese sobre a escrita de Badiou não parece ser justamente a de que ela possui a estrutura de um comentário? De modo que poderíamos afirmar que o texto seria, para Badiou, um comentário de sua atividade filosófica. Assim, ocupando a posição de comentadores e intérpretes ativos, não estaríamos mais que repetindo o gesto fundamental do pensamento badiouano. Isto é: estaríamos filosofando como Badiou.

Mas as coisas não são bem assim. Mais acima, já comentei que, para Badiou, a filosofia não pode querer dizer respeito ao plano da interpretação. Comentar Badiou, republicizá-lo, proliferar os sentidos possíveis de sua obra seria a atitude sofística por excelência. Na verdade, a correspondência estrutural entre comentário e filosofia é só aparente. Pois aqui não encontramos um texto que, através do discurso, se dirige a um público, mas uma atividade que, através de um gesto do pensamento, se torna pública como texto. Caso, arrisco dizer, que é como que o exato oposto do comentário: “a filosofia é, então, ruptura com o relato e com o comentário do relato”, ela “opõe o efeito de Verdade ao efeito do sentido” (BADIOU, 1992, p. 69). Esboço seu esquema possível:

Um conjunto aberto e heterogêneo (as práticas reais às quais a filosofia está presa) é reconduzido à univocidade – multifacetada, é verdade, mas apreensível pelo mesmo nome próprio “Badiou” – do sistema.

Levando isso em conta, não farei um comentário de Badiou. À leitura publicizante de seu sistema, prisioneira da compreensão e do vício explicativo, oponho uma leitura intimista, uma leitura que tenta se conectar com os gestos de Badiou e que persegue a abertura real e criativa que circula seu pensamento por todos os lados. Quero me entender com Badiou, e quero isso sem interpretá-lo. Quero ouvir aquilo que ele tem a dizer, e dizer aquilo que tenho a dizer em resposta. Dialogar – mantendo-me fiel à via platônica à qual ele, e eu também, nos filiamos[7].

“Se acaso vires um homem iluminado, / não o abordes com palavras, não o abordes com silêncio” (HELDER, 2016, p. 74): espero que, comunicando meus gestos aos gestos do Badiou, possa emergir uma verdade comum a nós dois. Quanto à minha capacidade de transmitir essa verdade, a única coisa que posso fazer é pedir a você que se esforce para entender os meus gestos, e eu prometo que também tentarei entender os seus[8].

Formulo meu mantra metodológico: deixar as condições conversarem entre si. As do texto do Badiou, as do texto que escrevo. O que isso quer dizer ficará, espero, mais claro nos tópicos seguintes. Passemos, então, à conversa.

*

É hora. Nós havíamos combinado de assistir à peça. É aqui o lugar onde tudo seria encenado? Eu abro. E fecho. “if you could finish it… you could rest… sleep… not before…” (BECKETT, op. cit., p. 137). Não antes, e a verdade é que já passou da hora, meu senhor, é aqui o lugar onde tudo seria encenado? Abro de novo, e “eles dizem, Ele não abre nada, ele não tem nada para abrir, está na cabeça dele” (idem, p. 140). Mas a cabeça, “rítmico pavor / do nome” (HELDER, 1982, pp. 9 – 10) no meio das mãos, nos buraquinhos dos dedos e… nós havíamos combinado de ir assistir à peça. “Eu tenho medo de abrir. / Mas eu preciso abrir. / Então, eu abro” (idem, p. 142), “e entre a tua cabeça e a minha cabeça a luz é tratada / segundo a maravilha” (HELDER, 2009, p. 538). Eu fecho.

Antes da filosofia, […] há verdades” (BADIOU, 1992, p. 65) – injunção materialista e anti-especulativa do pensamento de Badiou. Materialista, já que procura demarcar textualmente (aqui, o itálico desempenha essa função) a antecedência do mundo ao texto  – podemos ler em um outro lugar: “a linguagem não pode induzir existência, mas tão somente cisão na existência” (BADIOU, 1988, p. 58). Anti-especulativa, já que confina o pensamento no interior de limites delineados por práticas concretamente existentes. A teoria das condições institui “o ato filosófico como ato de um pensamento segundo” (BADIOU, 1992, p. 68).

Nesses próximos tópicos, gostaria de tentar descrever a atualidade desse ato[9]. Posso resumir seu movimento geral como sendo o de uma subtração sucessiva, operada pelo pensamento filosófico sobre si próprio, daquilo mesmo que o caracteriza como sendo filosófico. Subtração essa que busca fazer com que, a cada vez mais, a filosofia se assemelhe à anterioridade de onde adveio. Subtração essa que, no entanto, nunca pode ser completa, sob a pena de inviabilizar a filosofia como pensamento. Vamos por partes.

(II) Cada vez menos que nada

Eu havia dito, no primeiro tópico, que a eficácia da filosofia de Badiou está presa à sua capacidade de permanecer indeterminada. Menciono aqui duas justificativas para essa afirmação.

Primeiramente, devemos ter em mente que, como mencionei, Badiou enumera quatro condições para a filosofia: a matemática, a arte, a invenção política e o amor. Esses procedimentos não possuem nada em comum entre si. Mais radicalmente ainda, não há quase nada que permita afirmar, de modo não-problemático, alguma unidade interna aos procedimentos eles mesmos. Quero dizer, se parece mais ou menos óbvio que a invenção da álgebra mantém alguma relação relevante com a demonstração de um teorema em teoria dos tipos, não obstante a conexão entre uma pintura rupestre e um poema da Marília Garcia, ou entre um movimento de sublevação de massas na Alemanha do século XVI e uma ocupação na periferia de São Paulo, ou entre uma história de amor contada em versos por um trovador provençal e a experiência de um casal, digamos, anarcoafetivo; a conexão entre essas coisas não é tão óbvia assim. A princípio, parece, pelo contrário, muito mais fácil afirmar que cada uma delas não tem nada a ver com as outras.

Pois bem, é também por conta dessa heterogeneidade inerente ao que a condiciona que a filosofia deve permanecer, na medida do possível, indeterminada. Pois é preciso que ela não se identifique excessivamente a uma de suas condições em específico, em detrimento de todas as outras.

Em segundo lugar, vale apontar para a pretensão de genericidade sustentada por Badiou. Desde a introdução de L’être et l’événement, Badiou se mostra constantemente preocupado com a transmissibilidade de seu pensamento. Para ele, a filosofia, porque diz respeito a uma problemática que interessa a humanidade como um todo – aquela que trata da existência efetiva de verdades –, deve ser universalmente acessível. De fato, é constante em Badiou a crítica a pensamentos como os de Heidegger e Wittgenstein, que flertam continuamente com o misterioso e com o inefável, assim como a sistemas que, como o de Hegel, demandam algo como um saber preparatório, uma iniciação da consciência.

Acredito que devemos procurar o paradigma histórico da posição de Badiou, platônico também quanto a isso, no Mênon, quando Sócrates coloca na boca de um escravo o desenvolvimento e a resolução de seu argumento (82a – 85b). Aí, trata-se menos de demonstrar tal ou tal tese filosófica do que o alcance universal daquilo que a filosofia enuncia. Platão encontra na matemática um tipo de raciocínio capaz de sustentar essa universalidade, e busca transpô-lo dialeticamente para o pensamento especulativo. A metáfora resultante é poderosa. Se Platão defende a capacidade do escravo de pensar matematicamente, não é para criticar a sua exclusão da categoria dos seres dotados de lógos. Pelo contrário, creio que se trata muito mais de propor uma concepção do pensamento matemático como pensamento que, através do escravo, pensa fora do lógos, e de defender que sua universalidade, sua acessibilidade irrestrita, reside justamente nessa recusa em adentrar o espaço do sentido[10]. Isso é central, pois afirmar da filosofia que sua vocação se encontra no ideal de um pensamento i-lógico é sustentar a ideia de que o que também ela deve procurar organizar é um tipo de texto que se desdobra apesar da palavra.

Gostaria de fazer dois comentários acerca deste ponto. Primeiro, creio ser válido para Badiou, a esse respeito, aquilo que ele mesmo diz acerca da escrita de Beckett:

“Escrever é, para Beckett, um ato regrado por um princípio severo de economia. Ele demanda que se subtraia, a cada vez mais, tudo aquilo que figura como ornamentação circunstancial, tudo que é um divertimento paralelo, de modo a expor, ou ainda, destacar as raras funções a que a escrita pode e deve se agarrar, se ela tem por destino a humanidade genérica” (idem, p. 331).

Não seria inadequado afirmar que Badiou imita Beckett a esse respeito, realizando, se não “um ataque às palavras em nome da beleza” (BECKETT, 2012), ao menos um ataque ao sentido em nome da Verdade. Com a diferença significativa, evidentemente, de que, enquanto para Beckett a subtração ao lógos é operada por uma série de procedimentos narrativos, Badiou busca levá-la a cabo através de uma imitação do matema. Filosofia da despalavra.

Além disso, defendo que é a partir dessas considerações que se torna compreensível o exercício de tradução da República feito por Badiou (2014)[11]. Se Badiou pode dizer coisas como: “frequentemente, afasto-me mais um nível da literalidade do texto original, mas sustento que esse afastamento deriva de uma fidelidade filosófica superior” (idem, p. 11), ou “[…] espero ter conseguido combinar a proximidade constante com o texto original e um distanciamento radical, mas ao qual o texto, tal como pode funcionar hoje, confere generosamente sua legitimidade” (idem, p. 12)[12] – é só a partir da pressuposição de uma diferença entre o sentido do texto e a ideia da filosofia. O que se quer dizer não coincide com o que se diz, e é justamente isso que confere ao dito, ou melhor, ao não-dito do dito, a sua trans-historicidade.

Dito isso, passo, agora, à descrição dos meios pelos quais a filosofia sustenta a sua indeterminação. Eles são em número de cinco, sendo um dentre eles uma categoria, e os outros quatro, operações. Trata-se: da Verdade, do indiscernível, do indecidível, do inominável e do genérico.

O que Badiou tem a nos dizer sobre a categoria da Verdade? Primeiramente, que o que ela realiza é da ordem de uma proclamação: “A filosofia é uma construção de pensamento em que se proclama […] que há verdades. Mas essa proclamação central supõe uma categoria propriamente filosófica, que é aquela da Verdade” (BADIOU, 1992, p. 65). Proclamar vem do latim proclamo, formado, por sua vez, da aglutinação da preposição pro – “antes”, “diante”, mas também “no lugar de” e “a favor de” (PRO, [s.d.]) – e do verbo clāmō – “gritar” (PROCLAMO, [s.d.]), e derivado da mesma raiz que clarus, que quer dizer “claro”, “radiante” (CALO, [s.d.]). Arrisco dizer que proclamar que há verdades pode, assim, ser entendido como um trazer à luz que as verdades existem antes da filosofia, e que a filosofia se debruça diante das verdades e tenta se colocar no lugar delas, a favor delas.

Em outras palavras, penso que é possível afirmar que a categoria da Verdade posiciona a filosofia diante de suas condições, e o faz de um modo múltiplo e paradoxal. Este paradoxo é admitido explicitamente por Badiou logo em seguida à sua proclamação. Ele nos fala que “através dessa categoria, diz-se ao mesmo tempo o ‘há’ das verdades e a compossibilidade de sua pluralidade […]”, de modo que “a Verdade designa simultaneamente um estado plural de coisas (há verdades heterogêneas) e a unidade do pensamento” (idem, p. 65). Sendo assim, podemos entender que uma primeira função da categoria de Verdade é a de situar no regime de um mesmo texto processos que, à primeira vista, são radicalmente diferentes, e eu até diria que incomunicáveis.

Para além disso, Badiou defende o caráter completamente indeterminado da categoria de Verdade: “a categoria filosófica de Verdade é em si mesma vazia. Ela opera, mas não apresenta nada” (idem, p. 66). Esse enunciado parece absurdo, ou até ingênuo. Pois nós sabemos o quanto falar em “verdade” (e ainda com um “v” maiúsculo!) pode ser, e muitas vezes de fato é, problemático, ainda mais se levarmos em conta toda a carga histórica que esse termo carrega.

Isso não é, entretanto, algo que Badiou ignora. Poucas páginas depois, vemos afirmá-lo que “a filosofia deve subtrair a Verdade aos labirintos do sentido” (idem, p. 69). Se é esse o caso, isso decorre de que essa categoria não é a priori vazia, senão que é uma das funções da filosofia esvaziá-la do seu sentido tradicional. “A apresentação filosófica deve se autodeterminar inicialmente sem referência à sua história” (idem, p. 58), de modo que se faz necessário – e essa é uma das principais tarefas da filosofia de Badiou – propor uma nova maneira de conceituar a Verdade, arrancando-a às constrições eurocêntricas do lógos.

Nas duas funções que desempenha, portanto, a categoria de Verdade é uma espécie de indício, dentro da filosofia, de que a sua vocação reside em um outro lugar: de um lado, na anterioridade de suas condições, a que está amarrada, e, de outro, na desidentificação frente a sua própria história, a que está obrigada. Ela marca, assim, “uma falta, um furo” (idem, p.69) um fora dentro do texto filosófico, fora-dentro que é a única garantia que ele mesmo tem de ser de fato um texto filosófico.

Pois bem, é justamente através das quatro operações do indiscernível, do indecidível, do genérico e do inominável que a filosofia organiza no seu interior a sua relação com seu fora. Essas operações, por seu lado, tem a sua conceituação fornecida não filosoficamente, mas pela matemática. Em última instância, aqui como em Platão, “matemática” é o nome do furo que instaura na filosofia seu ideal de i-logicidade.

Restrinjo a exposição matemática das operações ao mínimo necessário para o seu entendimento, porque sei que elas podem ser bastante desmotivadoras. Em compensação, indico o excelente livro de Burnahuddin Baki (2015), em que é apresentado de um modo simples e rigoroso o aparato matemático utilizado por Badiou em L’être et l’événement. Uma boa abordagem em português, ainda que mais introdutória, pode ser encontrada em MADARASZ, 2013. Adianto somente que é importante ter em mente, para a compreensão do que se segue, que “múltiplo” (que utilizo como sinônimo de “conjunto”) é um termo primitivo da teoria de conjuntos, e que “pertença” é uma relação primitiva. Isso quer dizer que eles não possuem definição, são puras posições. De resto, tentarei deixar a coisa o mais intuitiva possível.

Dados dois múltiplos quaisquer x, y, diz-se que eles são discerníveis caso exista algum enunciado R formulável na linguagem da situação a que esses múltiplos pertencem tal que R(x, y) não é igual a R(y, x). Em outras palavras, x e y são discerníveis caso exista um enunciado que, aplicado sobre ambos, fornece valores de verdade distintos quando x vem antes de y e quando y vem antes de x. Consideremos o exemplo em que R = “ser maior que”, de modo que R(x, y) = “x é maior que y” e R(y, x) = “y é maior que x”. Se R tem valores diferentes em cada um dos casos – se é, suponhamos, verídico no primeiro e falso no segundo –, então R discerne x e y: x é maior que y, logo x é distinto de y. Se R, no entanto, tem o mesmo valor em ambos os casos – neste exemplo, esse valor só pode ser falso, pois é impossível que x seja maior e menor que y ao mesmo tempo –, então ele não discerne x e y. Assim, podemos dizer que ambos os múltiplos possuem o mesmo “tamanho”.

Dito isso, dois múltiplos são chamados de indiscerníveis se nenhum enunciado da linguagem da situação a que eles pertencem permite discerni-los: se não existe R tal que R(x, y) não tem o mesmo valor que R(y, x). Isso quer dizer, basicamente, que nada permite, no interior da situação, afirmar uma diferença entre esses dois múltiplos – eles são indiferentes aos olhos da língua, de modo que é exatamente a mesma coisa falar de um e do outro.

A importância da indiscernibilidade como operação consiste em que ela estabelece uma distância racionalmente apreensível entre o que é dizível no interior de uma situação e o que é dizível acerca desta situação de fora dela. Pois pode ser que dois múltiplos literalmente diferentes – isto é, diferentes em sua composição-múltipla, o que é o mesmo que dizer, diferentes no que diz respeito à sua formulação matemática – sejam indiscerníveis em uma dada situação. Isso se dá em decorrência de que é possível que aquilo que diferencia intrinsecamente dois múltiplos não faça diferença na situação a que eles pertencem. E isso é central, porque institui que o que não faz diferença poderia vir a fazer, caso os critérios de avaliação fossem outros.

“Será o silêncio, onde estou? Eu não sei, eu nunca saberei: no silêncio não se sabe” (BECKETT, 1978, p. 103). Nessa passagem d’O Inominável de Beckett, o silêncio figura como limite do que é articulável sob a forma de um saber sobre onde se está. A indiscernibilidade é máxima. Estar no silêncio é estar mergulhado em uma ignorância tão profunda que se torna recursiva: o silêncio é o lugar onde se torna impossível afirmar que se está em qualquer lugar, inclusive no silêncio. Ele in-discerne.

Em contrapartida a isso, me vem à cabeça a astúcia d’O roteiro do silêncio da Hilda Hilst (2017, pp. 79 – 112). Astúcia, pois se trata de produzir uma história, uma narrativa justamente a partir daquilo que, n’O Inominável, não propõe história alguma (ou, para colocar de um modo mais exato: propõe a forma “histórica” de uma fragmentação radical e incontornável do histórico). “O não dizer é o que inflama / E a boca sem movimento / É que torna o pensamento / Lume / Cardume / Chama” (idem, pp. 85 – 86). Longe de ser um lugar vazio – o próprio lugar do vazio –, o silêncio está repleto de determinações. Mais significativamente ainda, ele é o lugar mesmo que informa ao pensamento a sua dimensão múltipla, luminosa e incendiária.

Submetendo a identificação a uma injunção radical de relatividade, é o indiscernível que permite pensar que haja criação a partir do nada.

Prossigo. Diz-se de um enunciado que ele nomeia um conjunto caso esse conjunto, em uma dada situação, seja o único a validá-lo. Se um conjunto é o único múltiplo de uma situação que não possui nenhum enunciado como nome, então ele é dito inominável. Quanto ao paradoxo aparente de que o inominável seria o único conjunto da situação a validar o enunciado “ser o único conjunto da situação que não é o único conjunto a satisfazer um enunciado qualquer”, basta mostrar que é impossível formular esse enunciado dentro da língua da situação em questão, o que é de fato o caso.

Admito que esta operação sempre pareceu misteriosa demais para mim. Relendo alguns dos textos do Badiou para escrever esse relatório, todavia, acabei me dando conta de que é justamente esse mistério o que o inominável opera. A subtração integral à nomeação, instituindo o indício de uma impropriedade absoluta no interior do pensamento, funciona como uma marca dos limites de toda articulação discursiva.

Não entendamos, com isso, que Badiou estaria então no mesmo balaio daqueles filósofos do inefável de quem eu o afastei. Porque, e isso é central, ele não suplementa esses limites com uma apologia do silêncio ou uma nostalgia do êxtase dionisíaco pré-socrático. Não: nos limites do discurso, Badiou nos apresenta uma definição matemática, qual seja, a definição mesma de inominável que mencionei acima. Desse modo, o inominável não é, em Badiou, uma prova de que há coisas de que nós não podemos falar. Trata-se, pelo contrário, de afirmar que há coisas que só a matemática pode pensar. Sendo assim, a operação do inominável marca, na filosofia de Badiou, que a afasia matemática configura o pensamento por excelência do impróprio.

Já quanto à indecibilidade, devo mencionar que o quadro geral da teoria de conjuntos é definido por uma série finita de axiomas, que autorizam, a partir de algumas regras básicas de inferência, a formulação de enunciados e sua validação (ou invalidação). Pois bem, acontece que alguns enunciados formuláveis dentro da teoria podem ter tanto a sua veracidade quanto a sua falsidade demonstradas e, por isso, eles são chamados de indecidíveis.

Um caso famoso de enunciado indecidível é o da chamada hipótese do contínuo, sugerida por Georg Cantor, um dos fundadores da teoria de conjuntos. Um teorema de demonstração não muito difícil estabelece que, para um conjunto finito x com n elementos, é verídico que |P(x)| = 2n, isto é, que o número de combinações possíveis entre os elementos de x é igual a 2 elevado ao número de elementos pertencentes a x. Se temos, por exemplo, o conjunto X = {x, y, z}, com 3 elementos, então o número de combinações possíveis entre seus elementos será 23 = 8, quais sejam: {x}, {y}, {z}, {x, y}, {x, z}, {y, z}, {x, y, z} e { }.

Ora, como pensar essa relação entre um conjunto e o conjunto de suas partes no caso de múltiplos infinitos? Seja ω(0) o menor conjunto infinito existente[13]. Hipótese do contínuo é a aposta de que a medida do conjunto das partes de ω(0) é igual ao seu infinito sucessor ω(1): |P(ω(0))| = ω(1). Por quase um século, diversos matemáticos tentaram encontrar a prova ou a refutação deste enunciado. Pois bem, a que resultado chegaram? Se o que digo aqui soa paradoxal, é porque de fato o é: a hipótese do contínuo é verídica… e não é. É possível demonstrar tanto que a consistência da teoria de conjuntos é assegurada caso se o admita, quanto que ela é mantida caso não se o admita.

Não cito este exemplo apenas pela sua importância para a história da matemática. Mais do que isso, o que ele torna evidente é que a indecibilidade, apesar de consistir em uma operação subtrativa, não é, em absoluto, negativa. Se um enunciado é indecidível, isso não decorre de que não seja possível decidir nada acerca dele, mas sim de que é possível decidir qualquer coisa acerca dele. A dificuldade imposta pelo indecidível não é a de sustentar o insustentável. Pelo contrário, trata-se do desafio de sustentar uma decisão apesar da coerência em sustentar o exato oposto do que se decidiu.

Penso no pastor amoroso que, desiludido do amor,

“se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo: / Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre, / As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, / A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem” (PESSOA, [s.d.],  p. 11).

Sinto por ele. E o que é mais espantoso para mim é lembrar que se trata do mesmo pastor que, páginas antes, havia afirmado: “Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio” (idem, p. 8). Que uma mesma realidade possa ser sustentada tanto pelo encantamento quanto pelo desencanto total, nisso está o paradoxo da indecibilidade.

Mas ainda não é exatamente assim. Pois há uma assimetria no “tanto faz” do indecidível. Digo, há sempre uma opção, por assim dizer, mais fácil. É menos complexo, de fato, levar a vida a partir do solipsismo restrito da vida privada do que se colocar nos arredores e na dependência de um outro que se ama. Há menos decisões a tomar, e as tomo sozinho, e o seu peso, que recai apenas sobre mim, é menor. Se o pastor amoroso perdeu seu cajado, não foi por algum mérito da realidade desencantada, mas sim por uma incapacidade sua de sustentar a verdade – que passa, covardemente, a chamar de falsa – a que era convocado pelo amor: “talvez quem vê bem não sirva para sentir” (idem, p. 10).

Também no caso da hipótese do contínuo, há uma via que é, num certo sentido, mais trabalhosa que a outra. É o exame dessas vias que nos permite adentrar na exposição da operação do genérico que, por sinal, coincide com a exposição matemática do conceito de verdade.

Dada uma situação qualquer, uma parte (uma combinação de conjuntos) dessa situação é construtível se existe um enunciado na linguagem que permita identificá-la. Por exemplo: dado o conjunto dos alunos da Universidade de São Paulo, é possível isolar um pedaço seu através da pergunta “é um aluno da faculdade de filosofia?”. Avaliando a matrícula de cada um dos estudantes, constrói-se a parte “alunos da faculdade de filosofia” com os termos para os quais a resposta for sim. Podemos pensar também que, dada a sequência dos números naturais, é possível construir a parte dos números pares e a dos números ímpares. Digamos: “ímpares são os números indivisíveis por 2, e pares são o resto”. Assim, obtemos os subconjuntos (par) = {0, 2, 4, 6, …} e (ímpar) = {1, 3, 5, 7, …}.

O conceito de construtibilidade é central para a demonstração da hipótese do contínuo. Em suma, a estratégia, apresentada pela primeira vez pelo matemático Kurt Gödel nos anos 30, consiste em construir um modelo da teoria de conjuntos onde o enunciado “todo conjunto é construtível” (chamado de axioma de construtibilidade) é verídico. Prova-se, então, que esse modelo é consistente, e em seguida demonstra-se a validade da hipótese do contínuo nele. Desse modo, resulta que se o axioma de construtibilidade procede, e não há problema algum em assumir que este é o caso, então a hipótese do contínuo está correta. Para um aprofundamento, recomendo a monumental coletânea editada por LOURENÇO, 2009.

Já a refutação da hipótese do contínuo, por seu lado, não é tão fácil assim de resumir. Ela depende de um método chamado forçamento, que é cheio de minúcias, e é também onde entra em jogo o conceito de genérico, cunhado pelo matemático Paul Cohen quando da apresentação de sua prova. Tentarei dar uma dimensão de sua complexidade, apesar de que muita coisa ficará dita pela metade. Para o caso de quem queira consultar a apresentação feita por Badiou do raciocínio, me remeto a L’être et l’événement (1988, pp. 391 – 428, 449 – 470, 501 – 520). Uma abordagem mais técnica pode ser encontrada em JECH, 1971. Em suma:

  • Constrói-se um modelo “minimal” da teoria de conjuntos;
  • Encontra-se, neste modelo, um conjunto regrado por determinados princípios de ordem, coerência e inferência – são as chamadas condições de forçamento;
  • Estabelecem-se regras formuláveis na linguagem da situação que permitem designar certos conjuntos como sendo “partes corretas”;
  • Mostra-se que certas partes corretas são indiscerníveis e, assim, se as denomina genéricas;
  • Descobre-se que uma parte genérica geralmente não pertence à situação de que é parte, mas que, por outro lado, sua existência pode ser assegurada de fora, pela teoria de conjuntos “expandida”;
  • Determina-se que existem na situação múltiplos de tipo especial, designados nomes, tal que é possível definir para eles um conceito de valor referencial a partir do estabelecimento de hipóteses acerca da parte genérica desconhecida;
  • Chama-se de extensão genérica da situação o conjunto obtido pela fixação de um valor referencial para cada nome da situação;
  • Mostra-se que esta nova situação é de fato uma extensão da primeira, e não uma outra completamente descolada dela;
  • Demonstra-se que a parte genérica, inexistente e indiscernível na primeira situação, não obstante existe na extensão, apesar de continuar indiscernível aí;
  • Define-se, na situação fundamental, a relação de forçamento entre condições e fórmulas aplicadas a nomes, de modo que se torna possível controlar a veracidade de um enunciado qualquer na extensão genérica sem sair da primeira situação;
  • Utilizando a relação de forçamento, constata-se que os axiomas da teoria de conjuntos permanecem válidos na extensão genérica;
  • Prova-se que alguns enunciados não-demonstráveis na teoria de conjuntos podem ter sua veracidade decidida na extensão genérica e, particularmente, demonstra-se a refutabilidade da hipótese do contínuo.

Não importa que as coisas não estejam tão claras. São só dois os apontamentos que gostaria de fazer a partir desse esquema.

Primeiramente, chamo a atenção para como a assimetria das vias divididas no indecidível é muito bem expressa pela diferença no grau de complexidade das provas. É claro que privilegiei aqui o resumo da estratégia de Cohen, e a demonstração da hipótese do contínuo está longe de ser algo fácil. Ainda assim, não é possível negar que a quantidade de etapas e o caráter plástico dos procedimentos envolvidos no forçamento chegam a ser bizarros. Enquanto a via da construtibilidade não demanda mais que a adequação da teoria de conjuntos a um axioma adicional, a orientação genérica exige o engajamento com uma sequência exaustiva de manipulações, cortes, recortes, extensões etc.

Além disso, vale a pena notar como, no método do forçamento, estão amarradas em sistema as quatro operações de subtração de que estou falando aqui. Primeiramente, temos que uma parte genérica é, ela mesma, indiscernível. Em segundo lugar, é através da manipulação nominal que o genérico comanda que se torna possível decidir pelo caminho do indecidível contrário à onipotência da construtibilidade. Finalmente, é o inominável – quer dizer, o caráter absoluto da matemática, que é a instância em que se pode provar a existência de uma multiplicidade genérica, inexistente mas operativa no interior de uma situação –; é o inominável que insiste no exercício maníaco de nomeação que se organiza aqui termo por termo. Ora, creio que é justamente por conta disso que, dentre as operações de subtração, Badiou julga o genérico a mais adequada para funcionar como apresentação matemática da categoria de Verdade. Sendo ao mesmo tempo um e quatro, é ele quem dispõe da forma mais indiferente e concisa o esforço árduo de tornar compossíveis as afirmações de uma unidade operativa do pensamento e de seu caráter quadripartido.

Um pouco aquém do esquema geral, penso ser também interessante mencionar algumas das características que especificam um múltiplo genérico. Primeiro, vale notar que se um conjunto é uma parte genérica de uma situação, então ele é necessariamente infinito. De fato, toda multiplicidade finita é construtível, e seu método de construção é bastante intuitivo: basta agrupar todos os conjuntos que pertencem a ela. Sendo assim, para que um conjunto não tenha regra de construção enunciável na linguagem de uma situação, não pode ser o caso que ele seja finito.

Ainda mais importante que isso, ao meu ver, é o fato de que, assim como no caso do indecidível, a subtração operada pelo genérico não é negativa. Pelo contrário, o que temos aqui é algo como uma pura positividade. Em meu esquema, eu disse que um múltiplo genérico é indiscernível. Essa indiscernibilidade é, entretanto, de um tipo especial. Ao invés de ser caracterizada pelo fato de nenhum enunciado da língua ser capaz de discernir esse tipo de múltiplo, ocorre aqui o contrário: um conjunto genérico é indiscernível justamente porque satisfaz todos os enunciados que a linguagem da situação em que ele é múltiplo pode formular. De modo que, dado qualquer enunciado R dessa linguagem, um múltiplo genérico satisfaz simultaneamente R e não-R, seu contrário. Estamos diante de uma subtração por acúmulo de predicados, diagonal perfeitamente traçada entre o excesso e a exceção.

“Você deve ir em frente. Eu não posso ir em frente. Irei em frente” (BECKETT, 1978, p. 103). É esta conjugação entre imperativo e impossibilidade, e a decisão, ela mesma imperativa e impossível, de dar um passo à frente, que fecha O Inominável. Está aí a síntese máxima das operações que organizam o sistema de Badiou.

Temos, portanto, as quatro facetas da subtração, que organizam sistematicamente o esvaziamento da categoria de Verdade:

“o indecidível como subtração às normas de avaliação, ou subtração à Lei. O indiscernível como subtração à marcação da diferença, ou subtração ao sexo. O genérico como subtração infinita e excessiva ao conceito, múltiplo puro, ou subtração ao Um. O inominável como subtração ao nome próprio, ou como singularidade subtraída à singularização” (BADIOU, 1992, p. 187).

A cada momento, essas operações servem para lembrar o pensamento filosófico de sua vocação pela Verdade, assim como do fato de que esta vocação demanda uma disciplina rigorosa e atenta. É preciso relativizar tudo aquilo que, em uma situação qualquer, figura como limite intransponível. É preciso compreender que há assuntos que, excluídos como estão de qualquer lógica do sentido, só podem ser verdadeiramente abordados pela matemática. É preciso aceitar que um mesmo mundo pode ser sustentado por duas decisões completamente contraditórias. E, frente à imposição de se tomar uma destas decisões, é preciso decidir por aquela cujas implicações, exigindo uma quantidade imensa de coragem e esforço, apontam não para o solipsismo fechado da linguagem, mas sim para a abertura infinita e incalculável das verdades.

(III) O teatro dos conceitos

A segunda hipótese que enunciei mais acima é a de que há uma teoria mimética da filosofia em Badiou. Também aí ele se mantém fiel a Platão, cujos textos eram sempre escritos, não podemos esquecer, em forma de peças de teatro[14].

Fundamento minha hipótese na seguinte passagem:

“Ficção de saber, a filosofia imita o matema. Ficção de arte, ela imita o poema. Intensidade de um ato, ela é como um amor sem objeto. Direcionada a todos para que todos estejam na apreensão da existência de verdades, ela é como uma estratégia política sem jogo de poder” (BADIOU, 1992, p. 79)[15].

Infelizmente, não encontrei praticamente nenhum desenvolvimento explícito desta tese no resto da obra de Badiou. Quer dizer, não faltam menções, alusões à noção de imitação, e podemos encontrar algumas poucas descrições da imitação filosófica, mas em nenhum momento, até onde eu sei, Badiou se dedicou a uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de mimese.

Em sua acepção platônica, a noção de imitação está estreitamente ligada àquela de imagem: “o fazedor de imagens (eidolou poietes), o fabricante de imagens (eidolou demiourgos) é o que denominamos um mimêtês, um imitador” (VERNANT, 2011, p. 3[16]). Ser capaz de discernir a atividade de imitação naquilo que ela possui de particular passa necessariamente, portanto, pela possibilidade de pensar a especificidade da imagem – do eidolon – como produto.

O eidolon é concebido como o duplo de um modelo original. Sua etimologia sugere um campo semântico associado à visão: o termo é originado de eîdos (EIDOLON, 2022), que significa “ver”, “olhar para ou através” (EÎDOS, 2020). Mirando na imagem, no duplo e através dele, procura-se a coisa de que ela é imagem. De modo que o domínio do imaginário é definido por uma estrutura remissiva: uma imagem é sempre imagem de, ela invariavelmente aponta para um fora sem o qual não pode se constituir como imagem.

Platão distingue, a partir das diferentes maneiras de se relacionar com a coisa em sua remissão, duas modalidades do eidolon. Por um lado, temos o eikôn, imagem que remete ao duplicado de que é o duplo por via de semelhança:

“quando Platão divisa, n’O Sofista, a arte da mimética, ele define o eikôn como uma reprodução fiel, que conserva de maneira estrita as proporções e cores do original (235d – e). Eikôn evoca, portanto, sobretudo o lado positivo da imitação, aquele que se agarra ao que existe, e entendemos que o termo resultou em ícone e todos os seus derivados” (SIMON, 2019).

A palavra provém da raiz –weik, que significa “assemelhar-se, ter o aspecto de” (BOTTER, 2016, p. 115).

Por outro lado, phantasma, “substantivo proveniente do verbo phainestai, ‘brilhar, mostrar-se, parecer’, via phantazesthai, ‘mostrar-se, aparecer’” (SIMON, op.cit.), possui o sentido de “isto que se apresenta à observação” e, mais especificamente, de “falsa aparência” (BOTTER, op.cit., p.215). Se eikôn denota um aspecto positivo da imagem, quer dizer, sua fidelidade àquilo de que ela é imagem, phantasma recai mais do seu lado dissimulatório, enganador. Podemos mencionar como seu paradigma a técnica do trompe-l’oeil (SIMON, op.cit.), que consiste em, através de certos truques de perspectiva, fazer com que formas bidimensionais aparentem ter três dimensões.

Longe, todavia, de constituírem dois tipos incomunicáveis de imagem, eikôn e phantasma formam um par responsável por indicar uma ambiguidade no interior mesmo do eidolon (cf. VERNANT, op.cit., pp. 10 – 12). Imagem é “aquilo que vemos como se fosse a própria coisa, mas que não passa de um duplo” (SIMON, 2019) – o “como se” da semelhança e o “não passa de” da falsidade são inseparáveis na teoria platônica da imagem. De fato, toda imagem ao mesmo tempo dissimula aquilo a que se assemelha e se assemelha àquilo que dissimula: ela é outra que aquilo de que é a mesma, e vice versa.

Dessa dialética do mesmo e do outro instituída no eidolon pela tensão entre eikôn e phantasma decorre também um modo paradoxal de articular presença e ausência. A imagem é imagem da coisa, de modo que a coisa se presentifica através da imagem. Ao mesmo tempo, entretanto, a imagem, justamente porque é imagem, não é a coisa. “No eidolon, a presença real se manifesta ao mesmo tempo como uma ausência irremediável” (VERNANT, op.cit., p. 8). Buscando dar a  ver a coisa, o presente da imagem marca o sentido de uma ausência do visado. O eidolon, de uma só vez fiel e enganador, concede a falta como dádiva.

Voltando agora à mimêsis, proponho que tentemos caracterizá-la a partir desse seu produto paradoxal. Imitar é, simultaneamente, reproduzir e dissimular, organizar uma fidelidade à coisa e falsificá-la. É tornar visível na ausência e, por esse processo mesmo, tornar visível a ausência. É mostrar a coisa em seu lugar e dizer que ela não está lá onde deveria estar. É colocar dentro do pensamento o pensado como estando em seu fora.

Enquanto ofício, a imitação é realizada pelo pintor e pelo poeta trágico, pelos atores e pelos dançarinos. Mas, e isso não deixa de ser curioso, também pelo sofista:

“O sofista é um mimetes, como o pintor, ou mais precisamente um mimetes com as palavras, como o poeta. Seu discurso formula o real tanto quanto o pintor desenha uma cama de verdade ou o autor trágico vive de fato a ação dramática imitada sobre o palco; o sofista também produz imitações da realidade, semelhanças ilusórias, ‘eidola legomena’, imagens faladas” (VERNANT, op.cit., p. 16).

O sofista é ele mesmo um imitador, um fazedor de imagens. Através do uso habilidoso e convincente da língua, ele falsifica a realidade, produzindo um discurso que se assemelha a ela, mas que não corresponde com ela.

Dito isso, posso agora passar à parte da discussão em que o Badiou entra na história. Porque não é estranho que ele, que se reivindica platônico e afirma categoricamente que “toda definição da filosofia deve distingui-la da sofística” (BADIOU, 1992, p. 62), caracterize o gesto filosófico justamente através do exercício realizado pelo sofista? E mais: não é estranho que ele, que insiste continuamente na proximidade do pensamento filosófico com os procedimentos de verdade e na centralidade da categoria de Verdade, enxergue a filosofia justamente como o produto de um ofício que só produz o falso?

É no texto La pornographie du temps présent (2013) que Badiou discute de modo mais demorado a questão da imagem. Aí, ele procura, através de uma leitura da peça Le Balcon, de Jean Genet, “produzir uma análise real das imagens do tempo presente” (idem, p. 7).

Assim como ocorre com Platão, o posicionamento de Badiou diante da imagem tem um aspecto bastante negativo. Na verdade, Badiou parece inclusive, nesse ponto, ser mais radical do que o mestre grego, associando inequivocamente a imagem ao mercado, à espetacularização e ao triunfo (ainda que provisório) da ética e da lógica neoliberais, assim como esvaziando ela de toda função epistemológica relevante. Não deixa de ser significativo que o título da conferência que originou o texto em questão fosse Images du temps présent. A mudança, em sua sutileza, parece um modo de sugerir que não há problema algum em postular uma correspondência exata entre o imagético e o pornográfico.

Mas sendo as coisas desse modo, qual o interesse de Badiou nas imagens, então? Vale pontuar aqui que Badiou não é um filósofo crítico, no sentido alemão da coisa. Para ele, tratar das imagens não é um modo de descobrir reflexivamente os fundamentos materiais do seu poder encantatório, de revelar seu caráter ideológico. Não, a filosofia de Badiou não se comporta de modo crítico. Lembro você, leitor, que ela opera subtractivamente através da categoria de Verdade.

Por que, então, demorar-se tanto diante da sofística obscena organizada pelo capital, se o que se almeja é encontrar as verdades? Acredito que é na resposta a essa pergunta que se dá a reviravolta que permite pensar a mimese filosófica. Porque, repito, a filosofia como lugar de pensamento é caracterizada, em Badiou, de um lado, por operadores de subtração e, de outro, por uma categoria que é vazia. Isso não é algo que possa ser ignorado. Todo gesto filosófico é animado, do começo ao fim, por uma atualidade subtrativa e vazia de sentido. Coisa que também deve ser válida para o gesto imitativo.

A filosofia, se se posiciona em meio às imagens dissimuladoras do seu tempo, é tão só para levá-las até o absurdo em que permanecem in-fundadas. A imaginação filosófica não se presta nem à apologia niilista do espetáculo, nem à farsa delirante das armas da crítica – dois lados, acredito eu, de uma mesma escolástica “da resistência”, esse grandioso sistema organizado por nossos estimados intelectuais. Ao invés disso, ela é um modo de nos rememorar, através de imagens, de que aquilo que se busca não possui imagem possível.

Imitar é, para a filosofia, subtrair a imagem de seu caráter imagético. Ou, na formulação explícita de Badiou: “para nós, avançar em meio às imagens do tempo presente é em grande medida tentar apreender aquilo que não tem imagem” (idem, p. 11). Através da imitação, a filosofia contempla, naquilo que imita, o vazio daquilo que imita. “É preciso desimaginar [désimager, désimaginer]” (idem, p. 11) – é esse o imperativo metodológico fundamental que deve acompanhar a mimese filosófica.

Pois bem, e em que isso se difere da simples crítica?

Criticar é, num certo sentido, demonstrar a inadequação da imagem ao real para, então, revelar o verdadeiro fundamento tanto da imagem quanto do real. Retomemos o dispositivo platônico. O eidolon é ao mesmo tempo eikôn – correspondência com o real – e phantasma – dissimulação do real. Desse modo, a questão para a crítica é a de tornar evidente a natureza fantasmática do ícone e, assim, descobrir a essência da imagem. Fazendo o eikôn passar para o phantasma, busca-se reconduzir o eidolon ao seu eidos. A crítica realiza, através do fantasma, a sua iconoclastia.

Já a imitação badiouana, por seu lado,  busca  operar, como vimos, a subtração à imagética da imagem. Essa subtração, se se pretende completa, tem de ser um esvaziamento integral de tudo aquilo que constitui o eidolon como eidolon. O que quer dizer que ela não pode ser uma mera volta do ícone ao fantasma. Desimaginar deve ser um modo de desativar, a um só tempo, iconicidade e fantasia.

A crítica se desdobra no interior da imagem, a imitação aponta para fora dela. Mais que crepúsculo, a filosofia se erige, através da mimese, como a noite em que os ídolos estão obscurecidos de uma vez por todas. Assim, se o phantasma é a marca no eidolon de que ele é outro daquilo de que é o mesmo, a filosofia busca trazer à tona o outro desse outro. Não o fora da imagem, mas o fora desse fora. Desimaginar é atravessar o fantasma por meio da mimese.

Cabe perguntar: o que a filosofia encontra nesse lá-do-de-lá da fantasia? Nada menos que sua categoria específica: o Real do real é a Verdade. Imersa no mais profundo da sofística, a filosofia descobre seu im-próprio e o ex-propria. Não o fundamento, mas o infundado. O infinito. “O fora da imagem não é somente o real, mas o real como verdade” (idem, p. 12), na noite da filosofia, a coruja de Minerva pode enfim alçar seu voo. Imitando, quer dizer, cavando um vazio no vazio deixado pela disseminação das imagens, a filosofia reencontra sua vocação.

*

 

A filosofia “imita as feições da arte, visando a produzir um sítio subjetivo para a Verdade”, e “a Verdade é o indizível desta ficção” (BADIOU, 1992, p. 67). De modo análogo, “ela se parece com um saber”, e “a Verdade é o in-sabido desta ficção” (idem, p. 67). Verdade é o nome daquilo que, em sua produção mimética, a filosofia produz como ex-produtivo, daquilo que permanece irrecursível no recurso da filosofia às suas condições.

A filosofia imita o poema e o matema, e nessa imitação ela não busca dizer algo ou se afirmar como um saber, mas sim o mal-dito e o insuspeito. Desativando a sofística e radicalizando a crítica até que ela passe para o seu contrário, a filosofia é fantasma do fantasma, contra o ímpeto iconoclasta dos doutores –

“desculpe, / estou com pressa, / alguém lá fora dança na floresta devorada, / desculpe dr. mas já desapareci como quem se abisma / num espaço de hélio e labaredas, / eu próprio atravesso o incêndio imitando uma floresta, / fui-me embora pela floresta infravermelha fora, / não estou para essas merdas floresta infravermelha fora” (HELDER, 2009, p. 579).

Two outings. Then no return. “An image, like any other” (BECKETT, 1984, p 143).

Gostaria de apontar, uma última vez (mas então eu abro), para a relação paradoxal da filosofia com suas condições. Pois, mirando nelas como em seu fundamento pro-clamatório, imitando-as como se nelas encontrasse seu modelo ante(anti)-textual, a filosofia ainda assim tem de afirmar sua diferença diante delas, e é justamente nessa diferenciação que reside seu gesto fundador. “A Maga não sabia que meus beijos eram como olhos que começavam a se abrir para além dela, e que eu andava meio alheio, debruçado sobre outra figura do mundo, piloto vertiginoso numa proa negra que cortava a água do tempo e a negava” (CORTÁZAR, 2019, p. 22): na intimidade que organiza junto às verdades a que conclama nossa apreensão, o que a filosofia procura é seu êxtimo, o êxodo do intus – “dentro”, “em casa” (INTUS, [s.d.]), de onde provém a palavra “íntimo” (INTIMO, [s.d.]) – em que busca se acomodar.

Se falo que o gesto que caracteriza a filosofia de Badiou é um constante fugir “em direção a”, tenho também de fazer, a cada momento, a ressalva de que ela não o realiza em busca de um sentido. Pois o modo como ela toca, se é que toca, as verdades que persegue, é simultaneamente um aproximar-se e um afastar-se, um encantamento e uma repulsa.

“Viver na intimidade de um ser estranho não para dele se aproximar, para torná-lo conhecido, mas para o manter estranho, distante e mesmo inaparente – tão inaparente que o seu nome o contenha por completo. E, mesmo no desconforto, dia após dia não ser outro que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece sempre exposta e murada” (AGAMBEN, 2002, p. 41[17]).

Essa é a ideia de amor que Agamben nos apresenta, e creio que Badiou concordaria com ela[18]. Pois bem, filosofia é o amor pelas verdades. É, portanto, ao mesmo tempo um estar-com-elas e um fugir-delas: “poema, matema, política e amor ao mesmo tempo condicionam e ofendem a filosofia. É desse jeito: condição e ofensa” (BADIOU, 1992, p. 101).

Se a filosofia se mantém sempre nos arredores das verdades, ela o faz também para manter as verdades sempre nos arredores da Verdade. E insistir no caráter vazio da categoria de Verdade é, também, insistir nisso: na incompletude inerente àquilo que se aponta como condição desta categoria. É porque as verdades são irremediavelmente inacabadas que a categoria de Verdade deve permanecer indeterminada. Ou ainda: a categoria de Verdade é o modo pelo qual a filosofia remete o pensamento ao inacabamento constitutivo dos procedimentos de verdade. Se a filosofia aponta para as suas condições, nomeia suas condições e as imita, ela não o faz, não o deve fazer, mirando nelas como em seu sentido. Pelo contrário, trata-se de rememorar, de rememorar incessantemente e de organizar racionalmente essa rememoração, que, para lá da concretude histórica que são capazes de instituir, a Verdade das verdades habita, fora de toda habitação, no infinito.

(*) Apêndice – Subtração no segundo Beckett.

Ao falar da obra de Beckett, o filósofo Alain Badiou chama a atenção para o caráter subtrativo que singulariza suas operações formais (principalmente em sua fase mais tardia):

“Escrever é, para Beckett, um ato regrado por um princípio severo de economia. Ele demanda que se subtraia, a cada vez mais, tudo aquilo que figura como ornamentação circunstancial, tudo que é um divertimento paralelo, de modo a expor, ou ainda, destacar as raras funções a que a escrita pode e deve se agarrar, se ela tem por destino a humanidade genérica” (BADIOU, 1992, p. 331[19]).

Como se vê, Badiou associa essa subtratividade à busca por tornar evidentes certas propriedades genéricas do ser humano. Desse modo, ele vincula aos textos de Beckett uma pretensão de universalidade negligenciada por parte dos intérpretes que enxergam neles a perda completa de esperança na humanidade e em sua capacidade de agência.

Não podemos perder essa dimensão genérica de vista quando vemos Badiou falar em subtração. É verdade que subtrair é um processo negativo, e que consiste em retirar da obra final tudo aquilo que, nela, figura como inessencial. Por outro lado, subtrair também é destacar, ao final dessa retirada minuciosa, um certo resultado positivo e, por assim dizer, irretirável. Quer dizer: trata-se, a um só tempo, de esvaziar e produzir um resto. A lição fundamental a ser extraída da leitura de Badiou é a de que compreender Beckett pela via estrita do fracasso, da despalavra e do silêncio não basta. O que está em jogo, mais do que isso, é o que sucede ao fracasso, ou que sucede no fracasso, o aquém-palavra, o silêncio e o possível. É questão “de comunicar o incomunicável, de extrair o algo do nada, o movimento, do impasse” (ANDRADE, 2012) – negação e afirmação irremediavelmente amarradas nessa imensa discordia concors que é a invenção beckettiana.

No presente trabalho, buscaremos compreender melhor a dimensão subtrativa da obra de Beckett. Para tanto, investigaremos, em um primeiro momento, as operações formais colocadas em jogo em Film. Em seguida, e a partir da análise precedente, analisaremos o movimento de Beckett em direção ao rádio, tomando a peça Embers como caso privilegiado.

  1. Tudo Pupila

“Os olhos. Hora de tentar piorar. De algum modo tentar piorar. Descerrar. Dizer fixos abertos. Tudo branco e pupila. Branco sombrio. Branco? Não. Tudo pupila. Buracos pretos sombrios. Inabaláveis escancarados” (BECKETT, 2012, p. 76).

 

“Sssh!”. Uma única vez e um único som no único filme de Beckett – e ele pede silêncio. Film, um média-metragem protagonizado por Buster Keaton, é constituído, de acordo com o roteiro escrito, por três partes: “The street”; “The stairs”; “The room”. Seu protagonista se divide em dois: Object (O) e Eye (E) – que se revelarão self no fim do filme, quando o personagem caolho contempla o personagem caolho e descobre que perseguia a si mesmo, que fugia de si mesmo.

Na divisão, E assume ao longo de todo o filme (exceto ao final) a posição espectadora da câmera, dos espectadores. Enquanto isso, O (Keaton) é visto por E e por nós sempre por trás, em um ângulo que não excede quarenta e cinco graus. Esse é seu “ângulo de imunidade” (BECKETT, 2006, p. 372[20]): enquanto a visão de E estiver limitada a ele e não ultrapassá-lo, a percepção da percepção não se apercebe; contudo, quando ultrapassado, coisa que ocorre uma vez em cada parte, O tem a consciência de ser percebido e o terror se instaura para ele, que tenta cobrir as faces, escondê-la da percepção. Nesse sentido, a personagem de Buster Keaton é, em linhas gerais, um homem que busca escapar à percepção, em busca de escapar da existência.

Já em seu nome, Film – produzido por Beckett em sua fase tardia – revela seu caráter reflexivo, a vidência do filme por si sendo como que um reconhecimento da visibilidade do ver(-se). “As coisas (…) eu não as   percebo sem que elas me percebam; toda percepção como tal é percepção de percepção” (DELEUZE, 1997, p.34) – a isto que se propõe evidenciar Beckett, num jogo em que a câmera, o espectador e o espectado são todos espectadores/espectados, em que todos se relacionam através de uma reconversão que faz com que sejam isso que são: percebedores percebidos, videntes visíveis.

Isso se torna mais compreensível se atentarmos ao roteiro do filme. Para tanto, tomamos como base teórica os estudos de Deleuze (1997) e Gontarski (1985) acerca do Film, nos servindo também de algumas das ideias apresentadas por Merleau-Ponty em O Visível e o Invisível (2014).

Na seguinte passagem, Gonstarski comenta sumariamente a problemática do filme de Beckett:

O problema de O é evitar ser o objeto da percepção, de toda percepção, humana, animal, até a percepção simbólica de objetos inanimados como fotografias, cadeiras de balanço, envelopes. Em um típico trocadilho beckettiano, O está tentando evitar o Eye (órgão da visão e da câmera), o I (pronome em primeira pessoa), e o Aye (afirmação). Por tentar evitar a percepção, O está tentando deixar de existir. (GONTARSKI, 1985, p.101).

Os apontamentos de Gontarski nos servem, estrategicamente, para pensar a última parte do Film – “The room”, que Deleuze entende como contendo dois casos, dois problemas: o da percepção e o da afecção.

Ao adentrar o quarto, O observa as coisas, os animais e se inquieta. Ele vê que, ao ver as coisas e os animais, é também por eles visto. Vê que não pode ver sem ser visto, pois há uma espécie de palpação pelo olhar que faz com que, ao tocar com sua visão, seja tocado. Percebe, enfim, que “uma vez que vejo, é preciso (…) que a visão seja redobrada por uma visão complementar ou por outra visão: eu mesmo visto de fora, tal como se outro me visse, instalado no meio do visível, no ato de considerá-lo de certo lugar”(MERLEAU-PONTY, 2014, p.133). Por conta disso, O decide cobrir tudo que lhe causa a percepção da percepção. Ao mesmo tempo, e apesar dos esforços de O, nós o percebemos percebendo ser percebido – a percepção, assim, se instaura, evidenciando os jogos implicados na relação reflexiva e multifacetada de percipere e percipi: “agora a câmara percebe o personagem dentro do quarto, e o personagem percebe o quarto: qualquer percepção torna-se dupla. […] Agora o personagem percebe por sua própria conta, suas percepções tornam-se coisas que por sua vez o percebem” (DELEUZE, op.cit., p. 34).

Após acabar com as evidências de que percebe, O senta-se na cadeira de balanço (símbolo, para Deleuze, do berço) e cerra os olhos a fim de dar fim no jogo sem fim da percepção. Entretanto, é nessa hora que a câmera aproveita para ultrapassar definitivamente o ângulo de imunidade e defrontar-se com O – frente a frente, O and Eye. Quando isso ocorre, temos o desfecho que se abre: “percepção de afecção, isto é, percepção de si por si, puro Afecto” (DELEUZE, 1997, p.35), O percebe que é E, percebe definitivamente isto: o puro Afecto que é a percepção de si, duplo reflexivo, este que percebe, pois é percebido. E o espectador entra, assim, também e definitivamente, neste jogo de duplos: porque ao dar-se conta de que E é uma personagem, de que E é O, de que não há uma divisão entre sujeito e objeto no filme, ele percebe ali também sua própria percepção, entende-se como o próprio self desse perceber. É quando se dá conta de que é vidente, porquanto visível, i.e, sente o que se reconverte a si no visível vendo a reconversão do visível no filme, que explicita de maneira tangível a tangibilidade do Eye, que é I, e Aye.

Desta forma, entra em questão o defrontamento de my EYE com the OBJECT. E “quem vê não pode possuir o visível a não ser que seja por ele possuído, que seja dele, que, por princípio, conforme o que prescreve a articulação do olhar e das coisas, seja um dos visíveis, capaz (…) de vê-los, ele que é um deles” (MERLEAU-PONTY, 2014, p.133), isto é, é preciso que, quando eu veja, seja ao mesmo tempo visto por meio de uma visão redobrada em que só percebo enquanto sou percebido. Esta reconversão nos faz reconhecer nosso corpo como coisa entre as coisas, ao mesmo tempo que as vê e as toca. Vê e toca, e é através de seu próprio ser que pode participar da ordem das coisas, porquanto é visto e tocado em uma duplicidade de um mesmo I. Há algo visivelmente palpável no filme de Beckett que, já nesse “visivelmente palpável”, percorre meio caminho para o filosofês.

Diz-se que, diferentemente do teatro – onde temos a experiência da morte de modo palpável, com o envelhecer do personagem junto conosco –, no cinema temos a experiência da morte em um afastamento que não nos toca diretamente, que não é palpável, pois é atravessado pela tela, por um tempo e espaço outro. Diz-se. E, contudo, não dizemos isto aqui. Por toda obviedade que o que dissemos acima traz para contrapor-se ao que “diz-se” por aí, fica claro porque, em Film, Beckett impede que qualquer símile desta afirmação ocorra. O que ocorre no filme é que, assistindo a ele, o experienciamos palpavelmente – experienciamos o amadurecimento de uma visão através do movimento. O movimento do EYE, lembramos, é o movimento do I. E sim, quando E se movimenta, uma série de movimentos estão acontecendo concomitantemente. Podemos citar: O movimento do Eye (olho), o movimento do I (eu), o movimento do Object/Other (Buster Keaton), o movimento do Eye (olho do espectador), o movimento do I (eu, espectador), o movimento do O (Object/Other, o próprio Film, Buster Keaton, Eye, I), o movimento da câmera, o movimento de E defronte com O (e aqui também o nosso defrontar-se), etc.

O que está aí em jogo é evidente: trata-se de um jogo de visão, movimento, espelhamento, carne, corpo, mundo, self. E, nesse jogo, não temos nada além da visão em jogo. Beckett não se lança a outros meios para articular a lógica do  percipere e percipi. Temos a visão, e se a redobramos temos de novo a visão, o nosso Eye. Em Film, é a nossa visão que está em jogo, e é ela que faz com que Film exista e com que, no fim, percebamos existir em um meio relacional perceptivo, afetivo. Ao final do filme, não é só o bispo Berkeley quem pode dizer que ser é ser percebido: aqui todos nós de fato só podemos ser sendo percebidos –

Em Film o espectador se torna participante da obra, uma vez que ele percebe tanto aquele que percebe quanto aquele que é percebido no filme, dando a eles uma existência, validando sua existência; portanto os espectadores se tornam parte do cenário “investido”, isto é, afirmação. O espectador garante a existência do objeto Film e seus sujeitos E/O, e sua participação irá sugerir uma série de percepções. (GONTARSKI, 1985, p.102)

2.

Não seria completamente absurdo afirmar que a reflexividade de Film é, num certo sentido, ela mesma reflexo de uma reflexão realizada pela obra de Beckett sobre si mesma. Quer dizer: há uma mudança significativa nesta obra, que pode ser situada mais ou menos em meados dos anos 50 e cuja “forma” parece coincidir com aquele surpreender-se no ato de se tornar imperceptível que podemos observar no filme.

Poderíamos dizer, sumariamente, que o sentido mais fundamental do trabalho de Beckett havia sido, até os anos 50, exercitar metodicamente a destruição dos dois maiores vetores da arte ocidental pós-romântica: o romance e o teatro. Nesse ponto, Beckett seria, na verdade, um continuador do próprio projeto da literatura moderna: ao menos desde Heine, senão desde Schiller e Novalis, a arte romântica não é mais que um dispositivo (irônico) de desativação da própria arte romântica[21]. Desse modo, não seria incorreto dizer que o primeiro Beckett pode ser lido mais ou menos como um autor “hiper-romântico” – como se se tratasse de proliferar as técnicas literárias de destruição da literatura, a partir da constatação de um certo esgotamento da eficácia proporcionada pela ironia:

“Num primeiro momento, só podemos nos ocupar da questão de encontrar, de alguma maneira, um método pelo qual possamos representar esta atitude de ironia para com as palavras, através de palavras. […] A caminho desta literatura da despalavra, para mim tão desejável, alguma forma da ironia nominalista poderia ser um estágio necessário. Mas não é suficiente que o jogo perca um pouco de sua sacrossanta seriedade. Ele deveria cessar” (BECKETT, 1937).

Como podemos ver, trata-se de realizar a ambição do idealismo alemão: tornar absolutos e literais os meios de dissolução da linguagem, fazendo assim com que até mesmo a própria ironia – essa rebelião linguística da língua contra sua natureza linguística – se torne supérflua. A narrativa afásica da trilogia (Molloy, Malone morre e O inominável) com suas personagens incapazes, doentes, marginalizadas, assim como o drama desdramatizado, ação tornada inativa, em Esperando Godot – em que nada acontece além da espera pelo acontecimento – constituem dois exemplos maiores dessa iconoclastia dos estetas.

Nos termos que estabelecemos na introdução deste trabalho, seria quase como dizer que a primeira fase da obra de Beckett é uma ampla experimentação da faceta processual da subtração. Escrever por fragmentos, abdicar da língua nativa em prol de uma pobreza vocabular inaudita, colocar em xeque praticamente todos os princípios da narrativa clássica, despsicologizar as personagens etc.: todos esses procedimentos se deixam subsumir na negatividade operacional da des-palavra.

Pois bem, acreditamos que a transformação ocorrida nos anos 50 – isto é, o acontecimento que permite distinguir um “primeiro” de um “segundo” Beckett – consiste numa passagem para uma literatura do resto: ember art. Trata-se, em poucas palavras, da tomada de consciência – de que Film é a maior expressão – do fato que a atividade desconstrutiva da despalavra já é ela mesma a afirmação de alguma coisa, de que mal-dizer já é algo de maldito, de que devir-imperceptível é por si só dar a ver o invisível como processo maníaco de invisibilização do visível. Tomada de consciência que talvez seja o ponto mesmo em que a literatura moderna se torna Afecção – percebe-se a si mesma como o paradoxo de uma existência que só pode se afirmar através da dissimulação reiterada de sua própria morte.

Essa tese deve, de fato, ser (bastante) nuançada. Primeiramente, não há uma separação tão clara entre um “momento negativo” e um outro “momento afirmativo” na obra de Beckett, e é verdade que a mesma literatura da despalavra continuará sendo experimentada – de modo ainda mais radical – em livros tardios como Pra frente o pior e Mal visto, mal dito, assim como a negatividade ainda constituirá motivo central de peças como Não eu. Nosso argumento, a parte isso, consiste unicamente em sustentar que, à medida que faz algum sentido falar em um “primeiro” e em um “segundo” Beckett, a diferença entre eles pode ser pensada metonimicamente através das proposições conceituais elaboradas a partir dos movimentos formais encontrados em Film. Em nossa opinião, isso não implica na necessidade de identificar uma transformação total na obra, mas tão somente em ressaltar alguns aspectos seus que consideramos relevantes para compreender a parcialidade da paralaxe.

Além disso, seria falso dizer que essa passagem para a Afecção constitui um privilégio da obra beckettiana. Em alguma medida, toda a crise pela qual passou o surrealismo já apontava para ela. Podemos tomar a exemplar passagem de Breton no segundo manifesto: “O mais simples ato surrealista consiste, revólver nas mãos, em ir à rua e atirar ao acaso, tanto quanto possível, na multidão” (2009) – o encontro da arte moderna com sua vocação, a afirmação mais pura de sua essência, não passa de uma coincidência com a vida no ponto mesmo em que esta é produção massiva da morte.

Dito isso, ainda consideramos a obra de Beckett paradigmática no que diz respeito ao questionamento radical e à superação da modernidade. E é a partir disso que propomos compreender as peças radiofônicas de Beckett. Ou melhor, o fato de que Beckett tenha se proposto a compor peças radiofônicas.

Para tanto, falaremos aqui principalmente sobre Embers, que resumimos brevemente. Um homem chamado Henry está sentado numa pedra observando o mar, enquanto pensa em (ou fala de – já não há uma separação clara entre monólogo interior e exterior) seu pai morto e em como ele mesmo é como pai, lembra de momentos de sua vida, tem devaneios de ancestralidade e projeta um mundo mudo e iluminado. Em certo ponto, sua esposa Ada o interrompe, revelando ter estado ali desde o início, e ambos começam a conversar sobre o estado mental de Henry, sobre sua filha, Addie, e sobre as coisas que ele vinha falando. Quando Henry expressa vontade de ir embora, descobrimos que o casal está esperando a filha sair da aula de piano. Ao fim, Ada deixa Henry sozinho, e ouvimos mais um monólogo. O som do mar insiste durante toda a peça de modo muito pouco natural, se assemelhando mais a um ruído eletrônico que a qualquer outra coisa.    

Everett Frost chama a atenção para como o recurso ao rádio surge como um modo de superar certas limitações da literatura como mídia:

“Por se tratar de uma mídia capaz de suportar a verbalização sonora sem qualquer referencialidade visual externa, Beckett enxergava no rádio um meio ideal para a dramatização de vozes desincorporadas na cabeça, de monólogos interiores e ‘de l’autologie créatrice’ (a autologia – autoinspeção – criadora) […]. No início dos anos 50, após a publicação de O inominável e Textos para nada, parecia para Beckett que sua tentativa de fazer isso na ficção havia alcançado um ponto de impasse e que ‘as possibilidades abertas pela sua introdução ao rádio de bisbilhotar a consciência humana’ forneciam […] uma alternativa dramática ao monólogo interior” (FROST, 2014., p. 254).

Para Frost, essa alternativa teria se afigurado para Beckett a partir de uma intuição schopenhaueriana. Segundo ele, o autor teria constatado a suficiência expressiva do som – “Não olhe, disse Mercier. O som basta, disse Camier” (Beckett apud idem, p. 251) – a partir de suas leituras d’O mundo como vontade e representação, livro em que se defende, entre muitas outras coisas, a capacidade inerente à música de exibir diretamente a Coisa em seu caráter absolutamente indeterminado (idem, pp. 252 – 254).

Não obstante a adequação biográfica desta explicação e o respaldo que ela encontra em passagens do próprio Beckett, não podemos concordar com ela. Primeiro porque, desarranjando um pouco um apontamento de Merleau-Ponty, não aceitamos como dado que existe alguma proximidade entre música e montagem radiofônica; pelo contrário, a segunda parece estar muito mais ligada à composição de um filme: “o verdadeiro antepassado do som cinematográfico não é o fonógrafo, mas, sim, a montagem radiofônica” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 112). Ademais, seria absurdo – ou no mínimo hegeliano demais da nossa parte – definir a superação definitiva da modernidade na obra de Beckett através do retorno à música, por muito tempo considerada como a mais romântica das artes.

Nossa tese, pelo contrário, é a de que o recurso ao rádio em Beckett advém de uma busca que é menos a de expressar a Coisa que a de coisificar a expressão. Mais relevante que a musicalidade da palavra – que, afinal de contas, ainda pode ser trabalhada literariamente: a última trilogia (Companhia; Mal visto, mal dito e Pra frente o pior) sendo justamente efeito deste trabalho –, o que a especificidade da montagem radiofônica proporciona é o desdobramento de um texto que toma como pano de fundo não o silêncio, mas a paisagem sonora (Beckett estaria, portanto, muito mais perto de John Cage do que de Mallarmé – no such thing as silence): o ruído metálico do mar, o cavalgar de uma manada de cavalos, os diversos barulhos que preenchem o vazio de uma Irlanda provinciana (em All that fall).

Ruminando por baixo da dissimulação suicidária da modernidade, há a palavra muda das coisas. E uma arte que queira se libertar verdadeiramente da obsessão romântica deve, abdicando da tese idealista que postula a criação a partir do nada, tomar esta palavra, e não aquela outra – tão demasiado humana… –, como sua matéria primeira: nothing to hear beyond the sea.

  1. What is enough?

“Agora ando por aí com o meu gramofone. Mas esqueci ele hoje” (BECKETT, 1984, p. 101), ouvimos Henry dizer a Ada em Embers, enquanto ambos esperam a filhinha sair da aula (de piano!), onde fracassa em tocar a abertura da 5ª valsa do Chopin (idem, pp. 98 – 99). É inclusive o mesmo nó de esquecimento e fracasso que impede Henry de rir, num outro momento da peça: “Ada: Ria, faça isso por mim, Henry. Henry: Você quer que eu ria? Ada: Antes você ria de um jeito tão charmoso, acho que essa foi a primeira coisa que me atraiu em você. Isso e seu sorriso. [Pausa.] Por favor, vai ser como nos velhos tempos. [Pausa. Ele tenta rir, fracassa.]” (idem, pp. 97 – 98).

Não pode ser como nos velhos tempos: esquecemos como sermos românticos. Somos incapazes tanto da música quanto da ironia – fracassamos. E, se a modernidade tem um resto, ele é surdo e irrisório.

Henry se esforça para trazer seu pai de volta à vida. Com isso, ele também espera reatualizar um passado muito distante, quase geológico: “meu pai, de volta dos mortos. […] Um mamute de dez toneladas de volta dos mortos” (idem, p. 93). Não se trata, para ele, de meramente acessar algo como uma lembrança, de formular uma imagem do pai-mamute. A questão é estar novamente com ele, coloca-lo “ali diante do fogo” (idem, p. 94). “Como um outro tempo, no mesmo lugar” (idem, p. 98).

Mas esse pai já não responde, ele não pode responder – Henry o cansou (idem, p. 102).

E o ponto é que, uma hora, todo mundo cansa: “vai chegar o tempo em que ninguém mais vai falar com você, nem mesmo completos estranhos. [Pausa.] Você vai estar sozinho com a sua voz, não vai haver nenhuma outra voz no mundo que não a sua” (idem, p. 102) – é Ada quem diz isso ao marido, logo antes de ir embora.

Resta, para Henry, a colocação daquela voz desincorporada e melancólica, solitária, de Companhia: “você como você sempre esteve. Sozinho” (BECKETT, 2012, p. 63).

Nothing to hear beyond the see – uma única vez e um único som no único filme de Beckett, e ele pede silêncio.

“Também não isso. [Pausa.] Também não lá” (BECKETT, 1984, p. 95).

Shh!

*

O som não basta. Nossos pais estão mudos, e nossas crianças já não sabem mais tocar piano. As salas das madames estão vazias. Keine Luft von anderem Planeten, pas de faune au jardin.

“Nenhum som” e, no entanto…

“correia de cachorro talvez ou um galho gemendo se você ficar ouvindo por tempo o bastante [long enough], mundo branco” (BECKETT, 1984, pp. 94 – 95) – “ouça a luz agora, você sempre amou a luz” (idem, p. 93) –, “[…] mundo branco, mesmo o pináculo, branco até a grimpa, mais inusual, silêncio na casa, nenhum som, só o fogo, sem chamas agora, brasas. [Pausa.] Brasas” (BECKETT, 1984, p. 95).

Embers são cinzas, mas também brasas – se prestamos bastante atenção.

O sound is enough caduca, é essa a condição em que nos encontramos[22]. Boulez est mort, proibido barulho depois das 20.

Mas, todavia, um long enough vem e toma seu lugar.

O pai de Henry já não o responde, ele está morto. Mas Henry é ele mesmo um pai que não espera por sua filha e que não responde a nada além dos seus próprios pensamentos.

Caolho olhando caolho.

É Henry quem morre quando o pai de Henry morreu.

O som não basta porque falar é desde o princípio dar testemunho da morte.

Isto é: não há crise do romance, pois “romance” é desde o início o nome de uma certa crise.

Nós somos o mamute pintado na parede de Lascaux, desde sempre já sempre abatido.

 But long enough

Brasa. Se persistirmos por tempo bastante, há algo que dá um basta ao basta do som, uma coisa vem instituir a audibilidade de um ruído luminoso: mar, correia, galho, estrela.

Beckett foi talvez um dos primeiros autores pós-pós-modernos. Pois teve a coragem de, sem recusar a modernidade – nós já fomos sim muito modernos! –, denunciar como vão o luto pela sua consumação, tão difundido até hoje em nossas universidades. Quer dizer: a coragem de experimentar os escombros do século XX como um espaço potente de criação artística (por que lamentar o surgimento das mídias de massa? Produzamos coisa para televisão e rádio ao invés disso), ao invés de pensa-los com um eterno sentimento de nostalgia.

E, afinal de contas, isso basta: a coragem.

A obra beckettiana tardia é uma experiência autológica vivida não como trauma, mas como Afecção: positividade restante, absoluta no fracasso inelutável da subtração.

Se desde sempre estivemos mortos, então a literatura deve ser isso: o lugar por excelência em que a vida se afirma como interrupção de nosso martírio. Estranha metafísica, a de Beckett – mas uma metafísica para nós, órfãos de nossa própria orfandade.

“De onde se deita ela vê emergir Vênus. Adiante. De onde se deita quando o céu está limpo ela vê emergir Vênus seguida do sol. Então ela se dirige à fonte de toda vida. Adiante” (BECKETT, 1981, p. 7). O ponto cintilante que ressoa nos limiares da modernidade, imagem que nos reconduz ao princípio da nossa potência vital, é uma correia arrastada no chão, o vento batendo num galho, a órbita dos planetas, as ondas quebrando na praia. Em suma, movimento das coisas – apesar do espaço generalizado de paralisia que a brutalidade romântica nos legou: “Fluxo faz / Que toda coisa / Ainda sendo, / Toda coisa, / Esta portanto, / Mesmo aquela, / Ainda sendo / Não seja. / Falemos” (Beckett apud BADIOU, op.cit., p. 329). Se falhamos, “não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor” (BECKETT, 2012, p. 65).

Como coloca Badiou (op.cit.), a obra tardia de Beckett é orientada por um imperativo: o de continuar falando, já que falar é reconduzir a coisa à indecidibilidade ontológica, ao mover-se catatônica numa velocidade infinita, em que ela está fundada.

A subtração, em Beckett, é um modo de procurar na inumanidade de um mundo estranho, cego e eletronicamente construído, um caminho para que nos tornemos humanos.

Morremos, estamos mortos. E se falar é continuar morrendo, é levar as coisas a morrerem conosco, então é aí que pode haver espaço para nossa vida: em deixar as coisas falarem, para que morramos com elas.

“De algum modo adiante” (BECKETT, 2012, p. 65).

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[1] Cf. a parte II.

[2] Para uma discussão mais técnica sobre isso, cf. GELL-MANN, 1995 e GELL-MANN, LLOYD, 1996.

[3] Rancière tece considerações bastante interessantes sobre a relação entre comentário e desentendimento em 1995, p. 75 – 78.

[4] É impossível, todavia, não reconhecer a importância de trabalhos como os de Norman Madarasz (2011) e Ivan de Oliveira Vaz (2021), principalmente pelo seu caráter inaugural dos estudos mais sistemáticos de Alain Badiou no Brasil. Também o trabalho dos camaradas do LavraPalavra, assim como do falecido Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII), devem ser mencionados, pela insistência em procurar apresentar o pensamento de Badiou para o público brasileiro sem dissimular a sua filiação direta a um certo marxismo.

[5] Nesse ponto, surge uma questão, que me limito a apontar aqui, e que é a do estatuto da filosofia oral de Badiou em meio a tudo isso. Sabemos que Badiou deu aulas durante toda a sua vida, concedeu uma série de entrevistas e também entrevistou várias pessoas, participou de inúmeros debates e conferências etc. Ora, isto recai mais do lado do texto ou da atividade? Uma decorrência dessa reflexão é a necessidade de tematizar, também, as transcrições publicadas de falas do Badiou (caso de alguns dos textos que cito neste trabalho, inclusive).

[6] Sobre a definição peirceana de signo, cf. PEIRCE, 1995, pp. 63 – 76.

[7] De passagem, gostaria de declarar – e declarar também faz parte do jogo – que este método é uma imitação do procedimento amoroso, com todas as suas potencialidades e riscos. Será que encontrarei Badiou ou que estamos fadados a, no fim das contas, nos mantermos irremediavelmente separados? Ainda mais fundamentalmente: será que encontrarei você, meu leitor? Cf. (III).

[8] Não ignoro a advertência de Badiou: “o desastre no pensamento filosófico está na ordem do dia quando a filosofia se apresenta como sendo […] ela mesma uma situação de verdade” (1992, p. 70). Tudo que estou fazendo aqui é em nome de uma imitação bem feita, e o único desastre que espero encontrar é bastante merda na saída do teatro (mesmo essa nota já é uma concessão grande demais à realidade).

[9] Parcialmente amparado numa série de conversas com os camaradas Lucas Negri e Thiago Alexandre acerca dos desenvolvimentos apresentados em FONG, MYERS, SPIVAK; 2020, acredito ser possível dizer que um sistema filosófico, compreendido como ato de pensamento, coincide com as operações que realiza, e também que o aparato instrumental de um sistema filosófico coincide com o estoque historicamente conformado de categorias que ele mobiliza. Se isso é fato, podemos afirmar que a soma categoria + operação é o que faz um sistema. Digo isso tanto no sentido de que é dela que um sistema é feito, quanto no de que é ela o que um sistema faz: ela é ao mesmo tempo, portanto, sua estrutura e seu comportamento. É desse modo que devemos compreender a pergunta feita no subtítulo deste trabalho: “o que faz a filosofia de Alain Badiou?” Trata-se, assim, justamente da pergunta pela atualidade do ato badiouano.

[10] Veja bem: se é correto dizer que Platão é “logocêntrico”, a isso deve se seguir a observação que a dialética é o modo pelo qual ele insiste incessantemente em sair pela tangente.

[11] O bebedor nocturno, de Herberto Helder (2016), reúne poemas de uma série de povos distintos. Aí, Helder defende que não traduziu, mas mudou os poemas para o português. O caso de Badiou com Platão é similar, ao meu ver, de modo que faria sentido falar em uma “República mudada para o francês”, e depois traduzida para o português.

[12] A preocupação de Badiou com o funcionamento do texto de Platão é análoga à nossa preocupação com o comportamento de sua filosofia.

[13] Um dos resultados mais impressionantes da teoria de conjuntos é que existam infinitos infinitos. Assim como ocorre com os números naturais, que formam uma sequência crescente – {1, 2, 3, …, n, …} –, os infinitos também “aumentam” progressivamente de tamanho – {ω(0), ω(1), ω(2),…, ω(n), …, ω(ω0), …}.

[14] Por mais que, em Platão, a problemática da mimese esteja mais diretamente ligada à pintura e à poesia, ainda encontramos em seus diálogos um uso do termo vinculado ao teatro: “encontramos a origem teatral de mimêsis na distinção entre mimêsis e diêgêsis, em que o discurso mimético corresponde às formas da tragédia e da comédia por oposição ao simples relato, onde o poeta fala em nome próprio, sem se esconder atrás de um personagem” (LICHTESNTEIN, DECULTOT; 2019). As autoras se referem a (Rep., III, 392c – 394d).

[15]  O fato de Badiou não utilizar exatamente a palavra “imitar” para se referir às relações da filosofia com o amor e a política, mas tão somente sugerir uma semelhança nesses pontos – “a filosofia é como um amor”, “a filosofia é como uma política” – é potencialmente importante, mas o deixo de lado neste relatório. Não acredito que isso traga grandes prejuízos para a minha argumentação. Vale apontar de passagem, ainda assim, que é possível que a filosofia só imite de fato a matemática e a literatura, e que a sua relação com a política e com o amor tenha de ser pensada a partir de um outro modelo gestual. No que se segue, eu considero a teoria mimética da filosofia coextensiva a todas as condições.

[16] Não obtive acesso ao texto original de Vernant e, portanto, adapto da tradução parcial de Juan Fernando Mejía Mosquera.

[17] Utilizo aqui a tradução de Vinícius Nicastro Honesko, disponível em: http://flanagens.blogspot.com/2011/05/ideia-do-amor.html.

[18] Em Logiques des mondes (2006, p. 86), Badiou também propõe uma ideia – uma forma matematicamente exprimível – daquilo que singulariza o acontecimento amoroso: (m disj f) & [(∃u) (m ≤ u & f ≤ u)]. O que isso quer dizer, basicamente, é: não há nenhum objeto que contenha simultaneamente m e f, e existe um objeto u que contém simultaneamente m e f. O amor é, assim, ao mesmo tempo uma completa disjunção e uma união impossível. Algumas considerações importantes sobre esse tema também podem ser encontradas no texto dedicado à obra de Beckett em Conditions (1992, pp. 329 – 366).

[19] Todas as citações provenientes de fontes estrangeiras foram traduzidas livremente.

[20]  Como fazemos aqui um exercício de leitura que se mantém em grande parte preso à descrição dos movimentos formais do filme, preferimos não proliferar as menções ao texto escrito do roteiro, limitando-nos a indicar apenas citações diretas e/ou passagens que julgamos absolutamente necessárias. De qualquer maneira, a evidência do que dizemos aqui pode ser muito melhor atestada pelo que o próprio Film – a que se pode assistir gratuitamente através do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=5yAnYQGqefk&ab_channel=Artes2 – expõe.

[21] Sobre isso, podemos aludir à seguinte passagem de Rancière: “O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barreira mimética que distinguia as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das ocupações sociais. Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destrói ao mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. Funda, a uma só vez, a autonomia da arte e a identidade de suas formas com as formas pelas quais a vida se forma a si mesma” (2009, pp. 33 – 34). Com a noção de regime estético, Rancière procura fornecer uma alternativa ao conceito, que julga dissimulador, de modernidade. Nesse sentido, seu argumento consiste em afirmar que o que singulariza o pensamento da arte desde o romantismo é a situação paradoxal de conceber o estético como registro autônomo e, ao mesmo tempo, torná-lo completamente inespecífico, minando qualquer maneira de diferenciá-lo de modo essencial do não-estético.

[22] Ou melhor, em que Beckett se encontrava. Pois, é claro, estamos dois passos distantes dessa grande crise da subjetividade europeia que caracterizou o século XX: um passo geográfico (como sustentar que as grandes narrativas entraram em crise num território onde elas sempre circularam fora do lugar?) e um outro histórico (a “condição pós-moderna” já não apresenta, se é que já apresentou, um problema para o pensamento, rapidamente recomposto em torno de novas ficções capazes de norteá-lo e conferir-lhe sentido: contra todos os diagnósticos – tão franceses – o marxismo não está morto, a literatura não está morta, o teatro não está morto…).

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