Por que a crítica?

Por Fernando Savella

“Crítica” é uma ideia muitas vezes entendida como uma postura, independente de seu conteúdo. Se um liberal se contrapõe a um marxista, o liberal estaria criticando, e adotando uma postura crítica. Se um cético duvida de uma teoria, o faria como uma postura crítica contra algum “dogmatismo” teórico. Mas nenhuma tradição teórica incorpora tão bem o sentido de “crítica” quanto a teoria marxista. De fato, o grande centro da teoria marxista é a imanência da crítica: não há marxismo que não seja a crítica da ideologia, não há análise materialista que não seja a crítica de uma análise idealista.

Mas não é só uma questão quantitativa, do quão crítica é a teoria marxista comparada às outras posturas críticas. O cerne da crítica marxista é muito diferente das outras formas como aparece a crítica: é a superação da experiência imediata, é a superação da fragmentação do mundo concreto. Se a tradição liberal, por exemplo, concebe cada ato como um ato isolado; tal como o contrato entre dois trocantes, de forma que para a análise o único elemento relevante é o fato de ter sido uma troca consentida, o que o marxismo – a real crítica – faz é buscar, nesse mesmo ato o maior número de determinações [1].

É quase terreno do senso comum dizer que a realidade é muito mais complexa do que o nosso tratamento teórico sobre ela. A realidade concreta é a síntese de múltiplas determinações. Em verdade, os teóricos da tradição althusseriana chegam ao ponto de dividir a análise entre o nível mais abstrato, que envolve menos determinações, de forma a lidar com conceitos mais “puros”; e o nível mais concreto, em que lidamos com um maior número de determinações, ainda que teoricamente concebidas. Um exemplo é a relação modo de produção x formação social. Enquanto podemos definir o “modo de produção” idealmente como uma forma específica de produzir, regida por tais e tais leis, a formação social é a existência concreta desse modo de produção com outros modos de produção, eventuais remanescentes de épocas históricas em que outros modos de produção dominavam na sociedade [2], e outras formas de socialização e de estabelecimento de relações sociais. Mesmo numa sociedade dominada pelo modo de produção capitalista, e mesmo que essas demais formas sejam não apenas permeadas, mas sempre determinadas por esse modo de produção, existem outras lógicas operantes nas relações sociais. Raramente podemos deduzir diretamente do modo de produção a qualidade de fenômenos culturais, por exemplo.

E apesar desse terreno comum, se insiste muito nas conclusões mais simplistas possíveis, ou nas conclusões mais abstratas possíveis. Se, por um lado, é possível buscar uma explicação simples como “o Estado é grande demais, por isso a economia não cresce”, sendo essa simplicidade dependente da indeterminação da afirmação; por outro lado também é possível se livrar do peso de examinar criticamente – ou seja, o máximo de determinações envolvidas quanto for possível – dependendo completamente das relações entre conceitos. Por exemplo, derivar de uma afirmação como “a democracia é determinada pelas características X, e se determinado sistema político Y não satisfaz essa condição, não é uma democracia” todo tipo de consequência. O autor de uma frase como essa se satisfaz com a auto-afirmação do conceito de democracia e se contenta em derivar dela todas as suas demais considerações, inclusive generalizando aspectos desse sistema Y como aspectos de um sistema “não-democrático”.

O movimento que se faz nesses dois casos é o movimento de isolar um fenômeno de todo o resto da existência concreta, num esforço de fragmentar essa existência para torná-la mais cognoscível. É verdade que a fragmentação, ou a abstração, que busca as especificidades nesse caos que chamamos de realidade concreta, é necessária para conhecermos o mundo. Mas logo após a obtenção do abstrato, do particular, devemos voltar à totalidade [3] caótica, agora ordenada – isolarmos em teoria as especificidades do real não retira dessas especificidades tudo aquilo que lhe permeia, que são as demais especificidades, ordenadas de forma a afetarem umas às outras, umas através das outras, de formas sistêmicas ou de formas contingentes e aleatórias. Se constatarmos eventualmente que “o Estado é grande” (seja lá o que isso signifique), nem assim poderíamos concluir daí que é por isso que a economia não cresce, tal como fazem alguns liberais até bem conceituados. Existem inúmeros outros elementos que determinam como a economia funciona e como ela cresce ou se contrai, como as escolhas de investimento, a demanda, o mercado internacional, a matriz econômica de um país, etc. etc. Uma análise crítica, como a marxista, busca precisamente nessa multiplicidade de determinações, as suas respostas. Se constatamos que “democracia corresponde aos elementos X”, simplesmente não encontrar os elementos X em um fenômeno concreto, não quer dizer que o conceito de democracia possa prosseguir sua vida tranquilamente, tendo mais uma vez classificado um fenômeno concreto como “não-democrático”. Uma análise crítica, como a marxista, novamente, deve buscar nessa concretude todos os elementos pertinentes de seu sistema político de forma a entender melhor a própria existência do conceito de democracia e o quanto esse conceito, em seus moldes originais, é capaz de explicar os fenômenos diversos em geral, bem como os elementos internos a esse conceito se apresentam em diferentes realidades e as possibilidades das suas relações mútuas.

Mas essas formas acríticas não surgem gratuitamente. Elas surgem justamente porque a experiência humana é por natureza uma experiência parcial, localizada, e, portanto, fragmentada. A tendência é que se reafirme o caráter isolado da experiência por meio das explicações mais abstratas, especialmente quando a análise é feita de forma interessada com finalidades políticas. Essas formas acríticas são exatamente as manifestações da ideologia, uma forma idealmente coerente de representar a experiência imediata em uma sociedade. Os agentes e aparelhos de produção de ideologia produzem conteúdo de forma interessada e coerente com o caráter fragmentado da experiência humana; enquanto o papel da crítica é justamente a superação dessa condição individual, de forma que se alcance uma compreensão da totalidade, uma compreensão de fato científica da realidade de forma que o ser humano seja capaz de se emancipar de suas alienações. Exatamente por esse motivo é que a crítica só foi convertida em uma crítica imanente, ou seja, na teoria marxista, com o movimento concreto de uma classe que busca se libertar do jugo do modo de produção capitalista.

Vejamos alguns exemplos mais interessantes, novamente para atacarmos o liberalismo, em especial o do marginalismo. Considera-se que o valor existe somente em função de um sujeito que atribui um valor subjetivamente calculado a uma certa mercadoria. A troca se daria com base no quanto o sujeito está disposto a dar para satisfazer sua vontade subjetiva. Ora, essa afirmação por si só não é falsa – esse cálculo realmente ocorre. Mas ela tampouco diz alguma coisa sobre qualquer outra coisa que não ela mesma. Os pensadores marginalistas somente constatam uma obviedade, se satisfazem com ela e, sem buscar entender os demais processos em curso no momento de uma troca, fazem a festa retirando dessa afirmação auto-satisfeita toda sorte de conclusões, na maioria das vezes bem nocivas para a condução da economia, em especial para os trabalhadores e desempregados.

O marxismo, por sua vez, não se contenta com esse baixíssimo esforço analítico. O marxismo, por ser a crítica imanente, busca as condições em que se dá esse cálculo da troca, o terreno em comum em que os trocantes estão, o que os condiciona, o que permite que a troca ocorra, o que torna possível que duas mercadorias sejam consideradas pelos trocantes como iguais, e, portanto, trocáveis entre si. Vai mais além, e procura saber como essas condições acabam por organizar as dinâmicas da produção, uma vez que na sociedade em que o marxismo surge, a produção é voltada exclusivamente para a sua realização no mercado. E assim surge a teoria do valor marxista, uma teoria crítica por excelência. Em outras palavras, enquanto os marginalistas se contentam com o particular, o que é concluído em abstrato, o marxismo, a tradição crítica, busca ir além e entender a totalidade do que está em curso. Reconstruir a concretude.

Entrando mais fundo no campo da ideologia, temos formulações como as que justificam a superexploração do trabalho e todo tipo de abusos por parte dos proprietários dos meios de produção. Quando se diz que um trabalhador trabalha para uma empresa porque consentiu em fazê-lo, e porque consentiu em fazê-lo nas condições que lhe foram apresentadas (salários, insalubridade, despotismo no ambiente de trabalho, etc.), a análise é ainda mais estreita do que na teoria marginalista: considera-se existente apenas o momento em que, ao assinar um contrato, o trabalhador se coloca como um ser livre que decide livremente o que faz. Puramente para fins legais de satisfação da existência ideal de um ser humano genérico, considerado juridicamente igual ao seu novo patrão. O que foge a essa análise, novamente, são as demais determinações envolvidas. A principal delas, que o trabalhador é, especialmente quando se trata de um trabalhador manual, obrigado a aceitar os termos de trabalho das grandes empresas para que não caia na desgraça e morra de fome, junto de sua família. Essa condição fundamental é solenemente ignorada por todos os defensores da naturalidade e do consentimento da exploração econômica. A mesma coisa é feita nas avaliações sobre economias de países dependentes, que aparecem como meramente incompetentes em explorarem bem seus recursos naturais e humanos, e não como vítimas de um sistema econômico globalmente organizado que lhe impõe condições desfavoráveis.

Tudo isso é recusado e superado pela crítica da teoria marxista. Deixamos o terreno do particular indeterminado para entendermos a totalidade. Mas essa recusa também não deve ser realizada de forma grosseira. A crítica não existe no sentido de recusar toda a fragmentação em todos os sentidos, mas justamente em reconhecer que a experiência é
fragmentada e, portanto, saber quais são as consequências dessa fragmentação. Entre essas consequências está a própria existência da ideologia, e dessas formas acríticas de pensamento. E podemos citar outras. A fragmentação da experiência envolve também o surgimento de diferentes lógicas de produção e reprodução da vida e da sociabilidade, não necessariamente decorrentes diretamente do modo de produção dominante, mas sim de posições específicas em seu interior e no interior das relações desse modo de produção com outras formas materiais existentes. É muito comum que se façam críticas, por parte de marxistas, à perspectiva de origem weberiana das “esferas” ou “campos” sociais em que operam lógicas relativamente autônomas de relação entre os indivíduos. Esse tipo de conceito, no entanto, é útil no momento de entender o particular (o funcionamento das instituições religiosas, por exemplo, ou do campo da arte ou das disputas políticas institucionais), ou seja, é útil em um dos momentos da crítica imanente da tradição marxista. A crítica não é a interpelação pura da totalidade, mas a interpelação do particular frente à totalidade e vice-e-versa. Sem entender o particular em suas especificidades, nunca teremos acesso às formas concretas em que se manifestam os aspectos mais gerais da totalidade.

O chamado “marxismo ortodoxo”, defendido por Lukács como a preservação do método de Marx de apreensão da realidade não significa o tal “marxismo dogmático” de recusa de toda a novidade em termos teóricos ou metodológicos. Se a sociologia burguesa, ou o pensamento em geral, deve ser criticado o tempo todo, deve ser feito com a devida atenção para a validade de algumas conclusões acerca do particular – seu objeto por excelência -, pois a análise crítica marxista também deve passar pelo particular. A recusa grosseira de toda análise do particular normalmente se revela como sendo o próprio objeto que o marxismo combate, ou seja, a análise puramente abstrata que, ao tentar lidar somente com a totalidade, acaba por perder de vista as determinações que compõem essa totalidade e substituí-las pela pureza dos conceitos mais gerais como modo de produção, sistema político, classes antagônicas, etc.

Por muitas vezes me foi perguntado: “por que o marxismo, e não outra tradição de pensamento, desenvolvida por grandes teóricos, eventualmente tão bem formados quanto Marx?”. A grande resposta a essa pergunta está justamente na imanência da crítica, e não de uma postura crítica indeterminada. Uma perspectiva crítica que significa se aproximar cada vez mais do concreto, e não o movimento contrário. Uma perspectiva crítica que não se contente em parar no meio do caminho ao primeiro sinal de uma explicação coerente e auto-satisfatória. Se os ideólogos se contrapõem ao marxismo negando nossas formulações e conclusões e colocando suas pequenas contribuições no lugar como verdades auto-evidentes, a contraposição crítica aos ideólogos é: “ora, isso é apenas um pixel. Veja aqui a imagem que ele forma com os demais”.


[1] Determinações aqui significam condicionantes, a imposição de condições, pressões, limites e causalidades sobre um fenômeno, agente ou objeto.

[2] Eis o significado de “Na sociedade onde domina o modo de produção capitalista”, primeira frase d’O Capital.

[3] Uma formulação muito mais enxuta pode ser encontrada na Contribuição à Crítica da
Economia Política.

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