Por Gabriel Landi Fazzio
“Já vimos acima que o primeiro passo na revolução dos trabalhadores [Arbeiterrevolution] é a elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia pela luta.” Manifesto Comunista do Partido Comunista.
Após décadas de predomínio da política social-liberal, vivemos hoje um momento de aumento da procura, de parte da classe trabalhadora (em especial sua juventude), por alternativas radicais. Desiludidas com as reformas desenvolvimentistas e assistenciais obtidas através de métodos de conciliação de classes; cada vez mais pessoas (oriundas das fileiras do proletariado e das camadas médias) buscam se envolver na luta de classes com a firme convicção da necessidade da elevação do proletariado à posição de classe dominante, através de uma revolução que permita iniciar a reorganização socialista da sociedade. Cresce exponencialmente a influência das organizações socialistas e revolucionárias – ou seja, aquelas que defendem a necessidade da derrubada do Estado burguês e da socialização dos meios de produção; e, por conseguinte, da constituição de uma nova forma de poder político baseado na iniciativa democrática das massas e no planejamento econômico centralizado. Mas, quando se trata de concretizar este objetivo estratégico em uma palavra de ordem e em táticas, há uma série de polêmicas entres essas forças.
A consigna “pelo Poder Popular”, defendida pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) é uma das respostas que emerge em meio a tais polêmicas, como uma palavra de ordem de popularização da ditadura democrática do proletariado e dos pequenos proprietários pobres (o povo, em sentido marxista). Desse modo, os comunistas se utilizam desta palavra de ordem em sentido distinto daquele dado a esta pelos reformistas – que veem nesta o limitado significado histórico de um “quarto poder”, restrito ao papel de realizar uma pressão reivindicativa sobre os três poderes do Estado burguês. Em nossa concepção, ainda que nascido das lutas parciais, muitas vezes por reformas, o Poder Popular é concebido como embrião do futuro Estado proletário, o gérmen da organização da massa trabalhadora e oprimida apta a assumir integralmente as funções de gestão da vida social.
O presente artigo busca, de modo sucinto, contribuir para uma melhor compreensão teórica do significado do Poder Popular enquanto palavra de ordem de popularização da ditadura do proletariado, à luz da teoria leninista (em especial, levando em conta as contribuições teóricas do camarada Antonio Gramsci). [1]
Lênin e a dualidade de poderes
Nos escritos de Marx e Engels, as formulações sobre a ditadura do proletariado se desenvolvem conforme avança a própria experiência da luta revolucionária da classe trabalhadora assalariada, notadamente no período entre 1848 e 1871. Lênin, em sua brochura “O Estado e a Revolução”, [2] mapeou de modo minucioso essa evolução teórica e sintetizou alguns traços essenciais desta “forma política, enfim encontrada, sob a qual era possível realizar-se a emancipação do trabalho” (como Marx define a ditadura do proletariado, em “Guerra Civil na França”).
À época, a maioria da social-democracia se punha a “revisar” o marxismo, acreditando que a ampliação do sufrágio e a eleição de representantes parlamentares dos trabalhadores modificava essencialmente o caráter de classe do Estado, e a possibilidade de sua utilização como “instrumento” para, mediante reformas, chegar ao socialismo. Na contramão desta tendência, Lênin resgatava em Marx a crítica da democracia burguesa, notando seus elementos formais essenciais, mesmo sob regimes autoritários: a liberdade mercantil, igualdade jurídica, a burocracia estatal-militar autonomizada, etc. Lênin compreendia a unidade dialética entre a forma e o conteúdo burgueses do Estado moderno, e daí concluía com Marx pela necessidade de substituí-lo, mediante métodos revolucionários, por uma nova forma política, distinta também em conteúdo.
Aqui, o Estado passa diretamente às mãos dos trabalhadores, e não mais aparece sob “a forma de um aparelho de poder público impessoal, separado da sociedade”:
“Qual é a composição de classe deste outro governo? O proletariado e os camponeses (vestidos com a farda de soldado). Qual o caráter político deste governo? É uma ditadura revolucionária, isto é, um poder que se apoia diretamente na conquista revolucionária, na iniciativa imediata das massas populares vinda de baixo, e não na lei promulgada por um poder de Estado centralizado. É um poder de um gênero completamente diferente do poder que geralmente existe nas repúblicas parlamentares democrático-burguesas do tipo habitual imperante até agora nos países avançados da Europa e da América. Esta circunstância é esquecida com frequência, não se medita sobre ela, apesar de que nela reside toda a essência do problema. Este poder é um poder do mesmo tipo que a Comuna de Paris de 1871. Os traços fundamentais deste tipo são:
1 – a fonte do poder não está numa lei previamente discutida e aprovada pelo parlamento mas na iniciativa direta das massas populares partindo de baixo e à escala local, na «conquista» direta, para empregar uma expressão corrente;
2 – a substituição da polícia e do exército, como instituições separadas do povo e opostas ao povo, pelo armamento direto de todo o povo; com este poder a ordem pública é mantida pelos próprios operários e camponeses armados, pelo próprio povo armado;
3 – o funcionalismo, a burocracia ou são substituídos também pelo poder imediato do próprio povo ou, pelo menos, colocados sob um controle especial, transformam-se em pessoas não só elegíveis mas exoneráveis à primeira exigência do povo, reduzem-se à situação de simples representantes; transformam-se de camada privilegiada, com ‘lugarzinhos’ de remuneração elevada, burguesa, em operários de uma ‘arma’ especial, cuja remuneração não exceda o salário normal de um bom operário.
Nisto, e só nisto, consiste a essência da Comuna de Paris como tipo especial de Estado.” [3]
Mas, além disso, Lênin enriqueceu a compreensão da ciência socialista sobre a ditadura do proletariado através de sua análise do fenômeno da “dualidade de poderes” (em estreita relação com o conceito de “equilíbrio de forças”, extraído da ciência militar) – um fenômeno percebido agudamente por Lênin na experiência da Revolução Russa de 1917:
“Uma particularidade extremamente notável da nossa revolução consiste em que ela gerou uma dualidade de poderes. É preciso, antes de mais nada, compreender este fato; sem isso será impossível ir em frente. É necessário saber completar e corrigir as velhas ‘fórmulas’, por exemplo, as do bolchevismo, porque, como se demonstrou, foram acertadas em geral, mas a sua realização concreta revelou-se diferente. Ninguém antes pensava nem podia pensar na dualidade de poderes.
Em que consiste a dualidade de poderes? Em que ao lado do Governo Provisório, o governo da burguesia, se formou outro governo, ainda fraco, embrionário, mas indubitavelmente existente de fato e em desenvolvimento: os sovietes de deputados operários e soldados.” [3]
É visível, portanto, a dimensão extremamente particular da experiência russa: quando a Revolução de Fevereiro pôs abaixo o czarismo, a própria base coercitiva do aparelho de Estado cindiu-se: dois aparatos distintos disputavam a lealdade e a iniciativa da massa dos soldados e operários, em um equilíbrio precário. Enquanto o antigo generalato se alinhou em torno do Governo Provisório (não sem tentar golpes contra este); a massa dos soldados revindicava contra estes primeiros os seus direitos democráticos, e levava a cabo uma série de decisões dos sovietes – embora tais organismos, muitas vezes, se subordinassem ao próprio Governo Provisório. Essas condições peculiares, que desde o início conferiam aos sovietes a influência sobre a massa dos soldados, eram entendidas por Lênin como um fato historicamente novo e, ademais, único da experiência russa. Em torno do poder das massas proletárias e populares se organizava, de fato, o armamento geral do povo.
Foi Trotsky quem buscou dar a esse conceito um significado mais geral e universal:
“Em que consiste a dualidade de poderes? Não podemos deixar de nos interrogar sobre esta questão que não foi esclarecida nos trabalhos de história. Portanto, a dualidade é um estado particular de uma crise social, característica não somente da Revolução Russa de 1917, embora marcada precisamente por ela. Classes antagonistas existem sempre na sociedade e a classe desprovida de poder esforça-se inevitavelmente em fazer pender de um modo ou outro o curso do Estado para o seu lado. Isso não significa de forma nenhuma que, na sociedade, reine uma dualidade ou pluralidade de poderes. O caráter de um regime político é diretamente determinado pela relação das classes oprimidas com as classes dirigentes. A unidade de poder, condição absoluta da estabilidade de um regime, subsiste enquanto que a classe dominante consegue impor a toda a sociedade as suas formas econômicas e política como as únicas possíveis.
[…]
Mas não é o seu único aspecto. Se uma nova classe levada ao poder por uma revolução que ela não queria é, na realidade, uma classe já envelhecida, historicamente atrasada: se ela teve tempo de gastar-se antes de ser coroada oficialmente: se, chegando ao poder, ela cai num antagonismo já suficientemente maduro e que procura meter a mão sobre o leme do Estado – o equilíbrio instável do duplo poder é substituído, na revolução política, por um outro equilíbrio, por vezes menos estável. A vitória sobre a ‘anarquia’ do duplo poder constitui, a cada nova etapa, a tarefa da revolução, ou então… da contrarrevolução.
A dualidade de poderes não somente não supõe mas, geralmente, exclui a partilha da autoridade em partes iguais e, em suma, todo o equilíbrio formal das autoridades. É um fato não constitucional, mas revolucionário. Prova que a ruptura do equilíbrio social já demoliu a superestrutura do Estado. A dualidade de poderes manifesta-se onde as classes inimigas se apoiam já sobre organizações de Estado profundamente incompatíveis – uma caduca, a outra formando-se – que, a cada passo, afastam-se entre elas no domínio da direção do país. A parte do poder obtida nessas condições para cada uma das classes em luta é determinada pela relação de força e pelas fases da batalha.
Pela sua própria natureza, uma tal situação não pode ser estável. A sociedade necessita de uma concentração de poder e, seja na classe dominante, seja, para o caso presente, nas duas classes que se partilham a potência, procura irresistivelmente esta concentração. A fragmentação do poder não anuncia outra coisa senão a guerra civil.” [4]
Com alguma atenção, observamos que Trotsky mantém uma ressalva quanto à potencial universalidade das experiências de poder dual: são situações atípicas, possíveis apenas quando uma revolução leva ao poder uma burguesia já caduca, ao mesmo tempo em que existe um proletariado altamente consciente e organizado. Em outras palavras: esta forma da dualidade de poderes é possível apenas no contexto de uma revolução burguesa levada a cabo sob a hegemonia do proletariado no movimento revolucionário, expressa através de sua organização independente na forma de conselhos de massas – organismo apto a realizar aqueles traços essenciais do poder proletário, conforme já expostos: o poder baseado na iniciativa das massas, o armamento geral do povo e o controle popular sobre o funcionalismo.
Qual significado, então, pode o conceito de “dualidade de poderes” em nossa estratégia socialista, uma vez que atuamos em um país onde o poder burguês já há muito se estabeleceu?
Engels e as modificações táticas da revolução contemporânea
Engels foi o primeiro marxista a compreender as severas implicações táticas das modificações nas condições políticas e técnico-militares dos países Ocidentais burgueses – não sem sofrer todo o tipo de distorção de sua compreensão por parte dos reformistas. [5] Em sua Introdução à coletânea de escritos de Marx sobre 1848 (“Luta de classes na França”), o socialista científico raciocina da seguinte forma:
“A rebelião de velho estilo” “tornou-se consideravelmente antiquada”, pois os “exércitos aumentaram”, e a desigualdade de forças entre organizações revolucionárias e exércitos estatais (com suas tecnologias sofisticadas) tornavam agora mais difícil a insurreição armada. Desta justa consideração de Engels, floresceram toda uma série de entendimentos revisionistas: sendo impossível vencer ao aparato militar estatal, deveríamos nos esforçar em “conquistá-lo” eleitoralmente.
Mas o que Engels afirmava era bastante diferente dessa suposta impossibilidade: com os avanços das técnicas e da organização militar, a insurreição armada espontânea passava a ter uma importância secundária. “Por toda a parte se imitou o exemplo alemão do emprego do direito de voto, da conquista de todos os lugares que nos são acessíveis, por toda a parte passou para segundo plano o ataque sem preparação” (grifo meu). Sem descartar totalmente a “rebelião”, o texto de Engels não explica, no entanto, como poderia se dar a passagem da luta eleitoral para a insurreição preparada, em uma eventual correlação de forças favorável à classe trabalhadora. A despeito dessa limitação de sua formulação, Engels é muito nítido ao recusar qualquer abandono da perspectiva insurrecional:
“Quer isto dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa. Por conseguinte, uma futura luta de ruas só poderá triunfar se esta situação desvantajosa for compensada por outros fatores. Portanto, ocorrerá menos no princípio de uma grande revolução do que no decurso da mesma e terá que ser levada a cabo com maiores forças. Estas, porém, hão de preferir a luta aberta à tática passiva da barricada como aconteceu em toda a grande Revolução Francesa.” [6]
A própria história da Revolução Russa confirma parcialmente essa assertiva: apenas após obter um apoio decisivo nos sovietes (compensando, assim, com “outros fatores” políticos sua desvantagem militar) foi possível aos bolcheviques iniciar o assalto ao poder. Também neste episódio, em outro aspecto, a afirmação de Engels demonstra seu acerto: após meses de uma desgastante experiência de lutas de barricadas, uma tática “passiva”; foi apenas através de uma tática insurrecional ofensiva, planejada à luz da arte militar [7], que puderam os bolcheviques conduzir a Revolução Proletária à vitória. Então, tendo surgido um poder proletário apto a assumir o papel de governo revolucionário (ou seja, o poder soviético), foi possível finalmente passar à tática insurrecional ofensiva, como desfecho de uma longa guerra de posições dos bolcheviques contra o reformismo e a burguesia.
Gramsci, teórico do Poder Popular
Algumas décadas mais tarde, seguindo a pista desta formulação de Engels (e atento aos debates no seio da nascente Internacional Comunista sobre as diferentes táticas aplicáveis na Ásia e na Europa), Antonio Gramsci apresentará formulações bastante úteis à solução do problema da “dualidade de poderes” nos países onde o poder burguês já se estabeleceu. Apoiado no conceito leninista de hegemonia [8], Gramsci busca estabelecer as condições para a aplicação da estratégia e dos métodos bolcheviques em países “Ocidentais”. São oportunos, antes de mais nada, alguns esclarecimentos conceituais:
Nos escritos de Gramsci, dois pares categorias se relacionam intimamente, e facilmente são distorcidos pelos intérpretes reformistas do leninista italiano: os conceitos de Ocidente / Oriente e de Guerra de Posições / Guerra de Movimento (ou “Guerra de Manobra”). A primeira distinção guarda relação com o debate gramsciano sobre a “sociedade civil” e o “Estado ampliado” [9]: enquanto no Oriente (ou seja, nas sociedades pré-capitalistas) o Estado galvanizava sob seu poder uma “sociedade civil gelatinosa”, sendo possível conceber sua derrocada por meio de um ataque rápido e frontal, no contexto de uma crise (“guerra de movimento”); no Ocidente, o Estado em sentido estrito (aparato de coerção) se ampara em toda uma rede de aparelhos privados de hegemonia burguesa, tornando-se mais “resistente aos ‘ataques’ catastróficos do elemento econômico imediato (crises, depressões etc.)”. [10]
No entanto, aqui se erguem uma série de confusões. De modo absolutamente errôneo, os gramscianos de direita utilizam estas formulações para opôr Gramsci a Lênin. O leninismo, afirmam, apenas fazia sentido na “Oriental” Rússia. Mas será verdadeira essa afirmação?
Ora, se refletirmos com cuidado, veremos que o exemplo mais perfeito de “Oriente” se encontra não na experiência russa, mas na da revolução chinesa. Nesta, efetivamente, encontramos as circunstâncias de uma guerra de movimento revolucionária – ou, em termos maoistas, uma Guerra Popular Prolongada. Na Rússia, por outro lado, encontramos fortes características “Ocidentais”. Não à toa, Lênin insistia tanto na luta do proletariado pela hegemonia sobre o movimento revolucionário quanto na necessidade do proletariado revolucionário obter a maioria política nos sovietes antes de iniciar a insurreição. Teria qualquer sentido essa exigência se a sociedade civil russa fosse o perfeito exemplo da “gelatinosidade”? É evidente que não. Por isso mesmo, Gramsci se refere à revolução russa como “um giro decisivo na história da arte e da ciência da política”: um episódio em que elementos “orientais” e “ocidentais” se combinaram de maneira inovadora, servindo de ponto de partido para o estudo das condições da revolução proletária no “Ocidente”.
Os gramscianos de direita querem enxergar na ideia da preponderância da guerra de posições uma apologia da luta parlamentar-eleitoral reformista. Seria esse o caso?
Athos Lisa, companheiro de Gramsci na prisão de Turi, relatou em 1933 algumas das discussões com o leninista italiano na prisão. Seu relato ajuda a afastar categoricamente as leituras reformistas-culturalistas de Gramsci:
“Com respeito ao ‘problema militar e o partido’, estabelecia os seguintes conceitos: a conquista violenta do poder exige do partido do proletariado a criação de uma organização de tipo militar que, apesar de sua forma molecular, se difunda em todas as ramificações da organização estatal burguesa e seja capaz de torná-la vulnerável de acertá-la com golpes fortes no momento decisivo da luta. […]
O partido tem como objetivo a conquista violenta do poder, a ditadura do proletariado, mas deve realizá-lo usando a tática que melhor corresponda a uma determinada situação histórica e na realização das forças de classe existentes nos diversos momentos de luta.
Da aptidão do partido para manobrar nestas fases de luta […] dependerão as possibilidades de superar as alianças intermediárias que assinalaram as etapas do desbloqueio dos estratos sociais a conquistar e à modificação das relações de forças”. [11]
Como nota o socialista britânico Chris Harman:
“Gramsci nunca sugere nos Cadernos do Cárcere que a luta pela hegemonia possa resolver, por si só, o problema do poder estatal. Inclusive em um período no qual a ‘guerra de posição’ cumpre um papel dominante, Gramsci fala de um ‘elemento parcial de movimento’, e diz que a ‘guerra de movimento’ cumpre ‘mais uma função tática que uma função estratégica’”. [12]
Não é por falta de explicações de Gramsci que os reformistas distorcem em direção ao parlamentarismo o significado dessa guerra de posições – concebida pelo italiano exatamente em analogia à luta dos bolcheviques pela maioria nos sovietes:
“A guerra de posições, em política, é o conceito de hegemonia, que só pode nascer depois do advento de certas premissas, quais sejam, as grandes organizações populares de tipo moderno, que representam as ‘trincheiras’ e as fortificações permanentes da guerra de posições.
[…]
Já assinalei em outra ocasião que em uma determinada sociedade ninguém está desorganizado e sem partido, sempre que se entenda organização e partido em sentido amplo e não formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares […] uma ou mais delas prevalecem relativa ou absolutamente, constituindo o aparato hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil), base do Estado entendido estritamente como aparato governativo-coercitivo.
Tática das grandes massas e tática imediata de pequenos grupos. Entra na discussão sobre a guerra de posições e a de movimentos […]. É também, (pode dizer-se) o ponto de conexão entre a estratégia e a tática, tanto em política como na arte militar. Os indivíduos isolados (inclusive como componentes de vastas massas) tendem a conceber a guerra instintivamente como ‘guerra de guerrilhas’ […] Na política o erro se produz por uma inexata compreensão do que é o Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia).” [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
Em outras palavras: no Ocidente (onde o poder burguês já estabeleceu para si uma ampla rede de aparelhos de coerção e hegemonia), na maior parte do tempo, os revolucionários se ocupam de combinar a luta ideológica às lutas políticas e econômicas, em busca de obter um apoio revolucionário decisivo entre os organismos de massas do proletariado (sindicatos, conselhos populares, etc) e de fortalecer estes organismos. Para esse fim, utilizam inclusive, por vezes, a tática da frente única proletária em lutas parciais, para tomar a direção do movimento operário das mãos dos reformistas. [13] Ainda há momentos periódicos de violenta confrontação, nos quais um dos lados tenta romper as trincheiras do outro por meio de um ataque frontal. Por isso, por exemplo, Gramsci trata as grandes manifestações e greves de massas como formas de guerra de movimento. O mesmo vale para as formas de guerra de movimento da burguesia contra o proletariado – lembremos que, poucos anos antes de sua prisão, Gramsci havia presenciado a Marcha dos Camisas Negras de Mussolini sobre Roma. A insurreição armada seguia sendo, para Gramsci (como deixou claro nas conversas que teve na prisão), “o momento decisivo da luta” – um momento último; ponto culminante, na forma de guerra de movimento, de uma prolongada guerra de posições.
A citação acima é de extrema importância para que compreendamos a relação entre o pensamento de Gramsci e a concepção do PCB sobre o Poder Popular: “A guerra de posições, em política, é o conceito de hegemonia, que só pode nascer depois do advento de certas premissas, quais sejam, as grandes organizações populares de tipo moderno, que representam as ‘trincheiras’ e as fortificações permanentes da guerra de posições”. Ora, não se trata de uma visão bastante semelhante àquela defendida nas resoluções do XV Congresso do PCB, quando se elencam os estágios do desenvolvimento do Poder Popular, desde suas formas embrionárias (nos sindicatos, movimentos populares, vistos como “as trincheiras e fortificações permanentes da guerra de posições”) até sua forma de poder estatal efetivo?
“59) O tema do Poder Popular apontado pelas resoluções do XIV Congresso do PCB ganhou, na conjuntura atual, uma nova dimensão, uma vez que se tornou uma palavra de ordem que encontrou grande repercussão no movimento de massas e entre várias organizações de nosso campo de ação política. Ao afirmar a necessidade de construir um Poder Popular, o PCB chama a atenção para um processo político que não pode ser confundido com instâncias e organizações de massa ou articulações políticas entre os partidos de esquerda, isto é, não é um mero elemento de ação tática. Este processo se desdobra em pelo menos quatro momentos fundamentais, que articulam o plano tático e o estratégico:
a) A luta pelo Poder Popular se expressa nas ações independentes da classe trabalhadora em seus embates contra as manifestações mais evidentes da ordem do capital, os quais ganham a forma mais expressa de mobilizações, greves e movimentos que colocam em marcha os diferentes segmentos do proletariado e da classe trabalhadora em geral. Neste aspecto afirmamos que o Poder Popular existe já em germe na construção da autonomia e da independência de classe destes movimentos que se chocam com o bloco conservador e sua política em defesa da ordem burguesa, através das organizações próprias da vida cotidiana, da organização e da resistência da classe trabalhadora (movimentos sociais, sindicatos, organizações e partidos de esquerda, fóruns de luta pela saúde, educação, moradia, transporte, etc.), ainda que, neste momento, atuem de forma fragmentada e sem a unidade política necessária.
b) Essas lutas e os enfrentamentos tendem a se intensificar e, diante da reação esperada do poder burguês, caminhar no sentido da necessária unidade programática em torno de eixos comuns de luta que unifiquem as demandas setoriais apresentadas de forma fragmentada em uma pauta cada vez mais precisa de bandeiras e reivindicações, sob as quais o movimento de massas define sua independência em relação aos governos da ordem e ao bloco dominante, dando forma ao campo popular e de esquerda.
c) A culminância das lutas de massas e das resistências desenvolvidas aponta para o aprofundamento da autonomia do campo popular expressa nas bandeiras de luta, na pauta das demandas apresentadas e em formas organizativas capazes de se configurar como força política contraposta ao bloco dominante e como alternativa de poder, formulando um programa político de transformações necessárias de caráter anticapitalista. Neste momento, o Poder Popular encontrará as formas organizativas necessárias que não podem ser antecipadas (Conselhos, Assembleias Populares, Comitês, etc.).
d) No quadro de uma situação revolucionária ou pré-revolucionária, esta construção política pode e deve assumir a forma de uma dualidade de poderes que prepare as condições para os enfrentamentos decisivos contra as classes dominantes e seu Estado – a ditadura da burguesia –, combinando formas diretas de luta que possibilitem a constituição de uma real alternativa de poder dos trabalhadores. Neste momento, o Poder Popular assume toda sua potencialidade como germe de um novo Estado sustentado pelas massas populares e pela classe trabalhadora, na perspectiva da transformação radical da sociedade. Plenamente desenvolvido em seu potencial, o Poder Popular se converte em germe de um Estado Proletário – a Ditadura do Proletariado – que conduzirá a transição socialista visando erradicar a propriedade privada, as classes e, portanto, o próprio Estado através da livre associação dos produtores.
60) Distanciamo-nos de algumas concepções de poder popular: 1) da micropolítica ou da pequena política dos conselhos, dos fóruns e de todos aqueles espaços onde se procura envolver a população com a política ilusória da “cidadania participativa”, não permitindo a tomada de decisões relevantes, nem incidindo na correlação de forças entre as classes, ao ocultar as contradições fundamentais; 2) as institucionalizantes e eleitoreiras, que organizam grupos e coletivos apenas na época das campanhas ou pretendem canalizar as lutas e a revolta da classe trabalhadora meramente no campo institucional, formulando projetos de lei, planos diretores, etc.; 3) a dos “novos socialistas utópicos”, que apostam todas suas fichas no poder local, nas pequenas experiências cooperativas, nos projetos de economia solidária ou de autogestão, pois acham que a proliferação dessas experiências e de novos espaços de sociabilidade porá em xeque o sistema capitalista e o Estado burguês.
61) No campo contrário a essas formulações, entendemos Poder Popular como a superação da fragmentação das lutas, imprimindo a elas um projeto de classe em torno do qual elas se articulam, cuidando sempre de fortalecer a autonomia e independência de classe dessas lutas frente ao Estado e ao capital, na experiência concreta do enfrentamento permanente ao inimigo de classe, buscando sempre impulsionar as contradições e contribuindo, desta forma, para o amadurecimento da ruptura socialista.” [14]
Sem uma tal compreensão, que avalie minuciosamente os estágios do desenvolvimento da organização do proletariado como classe rumo à sua dominação política, toda a noção de dualidade de poderes perde qualquer sentido no “Ocidente”: sem compreender as formas de organização do proletariado em luta como embriões do poder de Estado proletário, restaria apenas esperar uma crise fatal, que abalaria o poder burguês e faria nascer, apenas então, num passe de mágica insurrecional, as formas conselhistas de poder proletário. Bastaria, então, diante de uma grande crise econômico-política, partir para o ataque frontal, no curso do qual “se revelariam” as formas do poder proletário. Esquece-se, assim, o caráter pronunciadamente excepcional da situação russa, em que os organismos do poder proletário nasceram apenas após a Revolução de Fevereiro de 17 (momento em que também se ampliou a liberdade ação e debate nos sindicatos, até então submetidos à polícia czarista), em paralelo ao poder burguês.
É precisamente o idealismo desta concepção “movimentista” da revolução que Gramsci tem em mente quando critica a fórmula trotskista da “revolução permanente” (excertos extraídos do Volume 3 dos “Cadernos do Cárcere”):
“Guerra de posição e guerra manobrada ou frontal. Devemos ver se a famosa teoria de Bronstein [Trotsky] sobre a permanência do movimento [revolução permanente] não é o reflexo político da teoria da guerra de manobra (recorde-se a observação do General dos Cossacos Krasnov), em última análise, o reflexo das condições gerais-econômicas-culturais-sociais de um país em que os quadros da vida nacional são embrionários e relaxados e não podem tornar-se ‘trincheiras’ ou fortalezas.
Nesse caso, poder-se-ia dizer que Bronstein, que aparece como um ‘ocidentalista’ era, pelo contrário, um cosmopolita, isto é, superficialmente nacional e superficialmente ocidentalista ou europeu. Ao invés disso, Ilitchi [Lênin] era profundamente nacional e profundamente europeu.”
“138. Passado e presente. Passagem da guerra manobrada (de ataque frontal) à guerra de posição também no campo político. […] [Esta questão] está ligada às questões levantadas por Bronstein, o qual, de um modo ou de outro, pode ser considerado o teórico político do ataque frontal em um período em que este é apenas causa de fiasco.”
O mesmo ocorre com sua crítica às formulações de Rosa Luxemburgo (que Gramsci via, neste aspecto, como muito semelhantes às de Trotsky):
“24. Sobre a comparação entre os conceitos de guerra manobrada e guerra de posição na arte militar e os conceitos correspondentes na arte política, deve-se recordar o opúsculo de Rosa, traduzido para o italiano em 1919 por C. Alessandri (traduzido do francês). No opúsculo, são teorizados um pouco apressadamente – e também superficialmente – as experiências históricas de 1905: Rosa, com efeito, negligenciou os elementos ‘voluntários’ e organizativos que, naqueles eventos, foram muito mais difundidos e eficientes do que Rosa podia crer, já que ela era condicionada por um certo preconceito ‘economicista’ e espontaneísta. Todavia, este opúsculo (e outros ensaios da mesma autora) é um dos documentos mais significativos da teorização da guerra manobrada, aplicada à arte política. O elemento econômico imediato (crises, etc.) é considerado como a artilharia de campo que, na guerra, abria a brecha na defesa inimiga, brecha suficiente para que as tropas próprias irrompessem e obtivessem um sucesso definitivo (estratégico) ou, pelo menos, um sucesso importante na diretriz da linha estratégica. […] Era uma forma de férreo determinismo economicista, com a agravante de que os efeitos eram concebidos como rapidíssimo no tempo e no espaço; por isso, tratava-se de um verdadeiro misticismo histórico, da expectativa de uma espécie de fulguração milagrosa.
O último fato deste gênero na história da política foram os acontecimentos de 1917. Estes assinalaram um giro decisivo na história da arte e da ciência da política. Trata-se, pois, de estudar com ‘profundidade’ quais são os elementos da sociedade civil que correspondem aos sistemas de defesa na guerra de posição.
[…]
Uma tentativa de dar início à revisão dos métodos táticos deveria de ter sido aquele exposta por L. Davidovitch Bronstein [Trotsky], na quarta reunião, quando traçou um paralelo entre a frente oriental e a frente ocidental: enquanto aquela caiu imediatamente, mas foi seguida por intensas lutas, nesta última as lutas teriam lugar “antes”. Ou seja: tratar-se-ia de saber se a sociedade civil resiste antes ou depois do assalto, onde este tem lugar, etc. Contudo, a questão foi exposta apenas em forma literária brilhantes, mas sem indicações de caráter prático.”
“Guerra de posição e guerra manobrada ou frontal[…] A teoria de Bronstein pode ser comparada àquela de certos sindicalistas franceses sobre a greve geral e à teoria de Rosa, no opúsculo traduzido por Alessandri.
O opúsculo de Rosa e a teoria de Rosa influenciaram, além disso, os sindicalistas franceses, tal como surge de certos artigos de Rosmer sobre a Alemanha, contidos em ‘Vie Ouvrière’ [Vida Operária] (primeira série em folhetins): ela depende, também, parcialmente, da teoria do espontaneísmo.”
A formulação do Poder Popular sintetiza, portanto, o que há de mais rico na concepção leninista de Gramsci para a estratégia e a tática da revolução proletária em um país capitalista desenvolvido, no qual o poder burguês já há muito se estabeleceu e precisa ser diretamente confrontado pela classe trabalhadora da cidade e do campo, em aliança com o conjunto do povo pobre. Uma formulação que, bem como as de Marx, Engels e Lênin, se ergue a partir do balanço crítico da própria experiência organizativa do proletariado revolucionário: notadamente, sua experiência no Chile dos anos 70.
A experiência chilena
A bem da verdade, a terminologia do “Poder Popular” não é exclusiva da experiência chilena. Veja-se, por exemplo, o caso do Moçambique [15]: em muitos países africanos, denominações semelhantes designaram o nascente poder das massas, especialmente camponesas, que se organizava em torno das guerrilhas revolucionárias – situações bastante “orientais”, como definido anteriormente. Mas o caso chileno é especialmente importante para os revolucionários contemporâneos justamente porque foi neste país que a experiência da dualidade de poderes “ocidental” parece ter ido mais longe (em termos de seu desenvolvimento sob o Estado burguês) antes de sua derrota pelas forças da reação militar burguesa. Para uma observação particularmente rica da experiência histórica do Chile de 1970 a 1973, recomenda-se assistir ao documentário “A Batalha do Chile”, em especial sua terceira parte, intitulada justamente “O Poder Popular”. [16]
No período entre a eleição do socialista Salvador Allende para a presidência e a sua violenta derrubada pelos militares, uma intensa luta entre as classes sociais chilenas levou à emergência de inúmeros organismos de massas. Em um primeiro momento, os Comandos Comunais foram constituídos buscando enfrentar a sabotagem dos comerciantes, que escondiam produtos a fim de comercializá-los em mercados paralelos, acima do preço. Assim, além de organismos mais gerais de intervenção política nos bairros populares, os Comandos Comunais detinham funções de fiscalização sobre os comerciantes e distribuição de víveres, mediante as Juntas de Abastecimento e Preços. Eram organismos de massas que uniam a iniciativa do proletariado e das camadas exploradas (desempregados, autônomos, pequena burguesia pobre, etc).
Posteriormente, buscando combater os locautes patronais, uma ampla onda de ocupações de fábricas deu causa ao surgimento dos Cordões Industriais, compostos por delegados dos operários de várias fábricas de uma mesma região. Expressando o poder direto do proletariado sobre a produção, esses organismos surgiam sem que, contudo, a expropriação revolucionária da burguesia e a reorganização socialista da sociedade fossem postos na ordem do dia pelas direções políticas predominantes da classe trabalhadora. A insurreição, a guerra do movimento pela deposição do velho Estado e estabelecimento do novo, jamais foi empreendida – dando causa ao afogamento em sangue das classes exploradas pelas armas da reação, quando rompeu-se este frágil equilíbrio de forças. Mas enquanto duraram, os Cordões Industriais deram causa a toda uma série de polêmicas e atritos no interior do movimento popular: sua iniciativa e decisão ultrapassava em muito a dos sindicatos tradicionais, e sua coordenação com os Comandos Comunais geravam toda uma série de dificuldades.
Como notou depois Ruy Mauro Marini, leninista brasileiro exilado à época no Chile:
“Em outubro de 1972, momento em que a burguesia se sente forte o bastante para empreender uma ofensiva e decide ir à greve patronal, encontra-se com a inesperada resposta da classe operária que, contra tudo e contra todos – ocupando fábricas, recusando as tentativas de suborno (oferta de pagamento pelos dias não trabalhados) e as ameaças de demissões, caminhando quilômetros a pé após o transporte coletivo aderir à greve – manteve o aparato de produção em funcionamento. Galvanizada pelo exemplo da classe operária, e agrupada em torno a ela, as demais camadas populares assumiram o transporte, as tarefas de distribuição de bens essenciais, etc. Jamais uma sociedade latino-americana pôde observar tão claramente o enfrentamento aberto, sem rodeios de nenhum tipo, entre o capital e o trabalho; jamais houve prova tão palpável de que é a classe operária, definitivamente, quem pode reunir em torno de si as massas exploradas e enfrentar vitoriosamente a burguesia.” [18]
No interior da esquerda, duas posições se dividiam quanto a apreciação deste fenômeno: de um lado, o Partido Socialista (PS) e seus aliados da Unidade Popular compreendiam estes organismos como mero apêndice do poder executivo de Allende; de outro lado, o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR) compreendia estes órgãos como embriões da futura ditadura democrática do proletariado e do povo pobre:
“A intervenção dos representantes do PS nesta fase do debate testemunhou a existência de um consenso, de uma apreciação compartilhada sobre o Poder Popular, ainda que algumas tendências dentro do partido ou intelectuais socialistas expressassem no debate uma leitura diferente da oficial. Ao começo de dezembro de 1972, Hernán del Canto, dirigente socialista e Secretário Geral do Governo, declarava à revista ‘Chile Hoy’ que os Comandos Comunais não eram manifestações e um ‘poder dual, de um poder que se contraponha ao Governo’. Os Comandos Comunais de Trabalhadores deviam operar como organismos de apoio ao Governo, ao Programa e à política de alianças desenhada pela Unidad Popular. Del Canto acrescentou que no processo de discussão interna do Comitê Central do PS em novembro, se havia concluído que os Comandos Comunais ‘deveriam ser presididos pelo Intendente, o Governador ou o Subdelegado, segundo o caso’, ou seja, os representes do Poder Executivo.
[…]
O MIR inseriu sua concepção do Poder Popular no contexto da formulação de uma nova aliança de forças sociais e da proposta de um programa alternativo. Para o MIR, o marco da aliança operário-camponesa se fazia insuficiente e estreita para conter os novos agentes sociais: “Há que falar”, assinalou Miguel Enríquez em novembro de 1972 ‘de aliança do proletariado industrial e agrário com os pobres do campo e da cidade (…) os pobres da cidade do campo são uma camada extensa (…) desempregados, semi-empregados, trabalhadores por conta própria, etc, os sem casa’. Os Comandos Comunais são concebidos dentro de seu discurso, isto é, o discurso oficial do MIR, como o espaço de articulação e de formalização da nova aliança, que sob a direção do proletariado devia inscrever sua ação em um quadro de programa alternativo ao da UP, cujos rudimentos se encontravam no ‘O Caderno do Povo’. O Poder Popular devia, de acordo com o MIR, estruturar-se como “poder independente do Governo atual, como um poder autônomo”. Em janeiro de 73, Miguel Enríquez sustenta que as organizações de base surgidas outubro de 72 são o antecedente do poder dual ‘e que, sem temores de nenhum tipo’ – haviam de – ‘caminhar, em essência, rumo à dualidade de poderes’. O Secretário Geral do MIR aludiu em sua intervenção à experiência revolucionária russa, contrastando-a com o caso chileno da conjuntura de outubro de 72, manifestando que ‘Santiago não era Petrogrado, nem o ano de 72 tinha muito a ver com 1917, mas algo tinham em comum. Não havia aqui uma crise geral do sistema no qual as tarefas que os bolcheviques então se colocaram estivessem na ordem do dia, mas sim as linhas essenciais do desenvolvimento da luta de classes, nos períodos fundamentalmente definidos, tinham sim um fio condutor geral’.
[…]
Os dissensos residiram na concepção do Poder Popular e de seu status no contexto de uma estratégia para o socialismo. Para os socialistas, cujo discurso estava atravessado pela tensão de ser partido de governo e ao mesmo tempo partido imerso nos novos movimentos populares, o Poder Popular não devia ser antagônico ao governo, mas complementar, e também ser um elemento de radicalização do processo revolucionário. Já o MIR, fora da UP, de seu programa e estratégia, podia proclamar sem ambivalências nem equívocos as concepções leninistas. O Poder Popular nascente constituía para o MIR o germe de uma situação de dualidade de poderes, cujo desenvolvimento conduziria à quebra da institucionalidade existente, à formação de um novo governo baseado nos órgãos do Poder Popular, à construção de um novo Estado. Para o Presidente Allende, uma nova Constituição Política devia canalizar e integrar as novas instituições surgidas da práxis social e fazê-las complementares com as instituições da democracia representativa.” [17]
Essas duas estratégias opostas no processo chileno [18] definem com precisão as polêmicas ainda existentes em torno do Poder Popular. Sabemos qual entendimento prevaleceu: às vésperas do golpe, pressionado pelos militares (estes pressionados, por sua vez, pela palavra de ordem “criar, criar milícia popular”, que proliferava nas manifestações de massas), Salvador Allende empreende o desarmamento popular, buscando uma conciliação com a suposta maioria “constitucionalista” das Forças Armadas. Assim, quando Pinochet, nomeado pelo próprio Allende, dirigiu sua feroz contrarrevolução para cima das massas e do governo, a classe trabalhadora e seus aliados históricos foram deixados, literalmente, de mãos vazias.
Compreendemos, então, que a estratégia do Poder Popular não pode descuidar nunca de sua preparação para o assalto final, a luta no terreno da insurreição. Mas, ainda assim, vemos no processo chileno uma fonte de lições e inspiração para os revolucionários ocidentais: lições sobre a amplitude potencial do desenvolvimento das formas de organização de massas da classe trabalhadora, ainda sob a ditadura da burguesia. Um estudo minucioso desta experiência – que, infelizmente, demanda um esforço muito maior do que seria possível no espaço deste artigo – tem muito a ensinar ao proletariado brasileiro, em sua luta pelo poder.
Conclusão
Em sua luta pela emancipação, o proletariado conta apenas com duas armas: sua organização e a consciência de sua própria experiência histórica. Essa experiência já vem de longa data: desde as derrotas de 1848, passando pelo assalto comunal ao céu de 1871 e a revolução soviética de 1917, até o Poder Popular chileno dos anos 70. Uma infinidade de lições podem ser extraídas dessas experiências, em seus sucessos e fracassos. No espaço deste artigo, busquei sintetizar algumas dessas lições, notadamente:
1 – A necessidade estratégica de uma perspectiva revolucionária, sem a qual o proletariado está teoricamente desarmado para os níveis mais extremos da luta de classes (conforme exposto por Marx, Engels e Lênin);
2 – As particularidades táticas da revolução proletária nas sociedades onde o poder burguês já se estabeleceu, conforme as formulações de Engels e Gramsci e a experiência prática da luta de classes no Chile dos anos 70.
O que nos leva, invariavelmente, à seguinte compreensão:
Em cada luta concreta, invariavelmente, a classe trabalhadora e as massas exploradas e oprimidas do povo se organizam de distintas formas: nas ocupações rurais e urbanas; nos quilombos e tribos em resistência contra o agronegócio; nos sindicatos e comissões de empresa; em conselhos comunitários; e em uma série de formas novas de organização de massas, que invariavelmente o curso da luta de classes produzirá, e que não poderão ser previstas de antemão, ou muito menos “criadas” por pura vontade dos revolucionários. [19] Cabe aos revolucionários apenas, uma vez surgidas essas formas de organização de massas, auxiliar em sua organização consciente, generalizando-as e unificando-as sob um mesmo programa, uma mesma compreensão de suas tarefas históricas. Sem essa luta ideológica dos revolucionários, bem como sem a preparação prolongada das próprias forças do proletariado no sentido de um poder oposto ao Estado burguês, a revolução socialista restaria concebida à maneira do aventureirismo, como um mero “assalto” ao poder – um momento tático necessário de nossa estratégica, mas que pode apenas ser o desfecho de uma prolongada guerra de posições entres as trincheiras da organização proletária.
Não pretendo, com isso, esgotar o tema – apenas contribuir à fundamentação teórica de uma perspectiva revolucionária particular que, em minha visão, é a única em nossa realidade capaz de elevar o proletariado efetivamente à condição de classe dominante.
Participar em cada luta de massas, intervindo através de uma agitação e propaganda revolucionária coordenada, capaz de lançar luz sobre cada aspecto da vida social, elucidando as tarefas históricas do proletariado e os caminhos para sua emancipação – eis a tarefa histórica dos comunistas brasileiros.
[1] Um exemplo mais prático da utilização desta palavra de ordem pode ser encontrado em meu artigo “Por que não defendemos as ‘Diretas Já’?”:
https://18.118.106.12/2017/07/19/por-que-nao-defendemos-as-diretas-ja/
[2] É importante destacar que esta brochura é, com frequência, criticada pelos “marxistas” acadêmicos por sua “concepção instrumental” do Estado, e por uma suposta visão limitada do problema da autonomia relativa do Estado burguês. Mas a verdade é que esse senhores, que desconhecem por completo a obra de Lênin, perdem de vista a imensa complexidade da apreciação do bolchevique sobre o problema do Estado em situações de desenvolvimento pacífico da luta de classes. Para tanto, basta ver a apreciação do problema do direito burguês em Lênin, em artigos seus como “Explicação da lei sobre multas”, ou “Tribunais de fábrica”, em que, mesmo em um regime autocrático, o autor não negligencia em momento alguns os efeitos da luta das classes exploradas sobre a superestrutura jurídica e política, jamais concebida como um simples instrumento imediatamente afinado aos interesses das classes dominantes. A questão com esses senhores é que, indispostos a investigar a obra completa de Lênin (e, na verdade, repletos de preconceitos com a política bolchevique), buscam ver em “O Estado e a Revolução” uma “Teoria Geral do Estado” a seu gosto manualesco. Perdem de vista que a obra, antes de tudo, aborda o problema do Estado em sua situação limite, ou seja: ou problema do Estado em face da revolução; o problema da destruição de um Estado e constituição de um novo. Como diria Engels, em sua carta de 21 de setembro de 1890 a Joseph Bloch: “O que falta para estes cavalheiros é a dialética. Eles simplesmente olham aqui a causa e ali o efeito. Esta é abstração vazia e estas oposições polares metafísicas só existem no mundo real durante crises”. É justamente nas crises revolucionárias, como notava também Pachukanis, que o caráter de classe do Estado burguês formalmente autônomo se revela em toda sua transparência, muitas vezes às custas da própria legalidade burguesa. Para uma apreciação desta questão, vide meu artigo “O ‘anarquismo jurídico’: Lenin e Pachukanis versus Ingo Elbe”:
ttps://18.118.106.12/2018/08/22/o-anarquismo-juridico-lenin-e-pachukanis-versus-ingo-elbe/
Para os artigos supracitados de Lênin, e a carta de Engels:
https://18.118.106.12/2019/06/28/tribunais-de-fabrica/
https://18.118.106.12/2019/05/10/lenin-legalizacao-e-luta-da-classe-operaria/
https://www.marxists.org/portugues/marx/1890/09/22.htm
[3] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/09.htm
[4] https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap11.htm
[5] Sobre as distorções operadas pelos social-democratas oportunistas em torno deste documento, vide:
O “testamento” falsificado de Engels: uma lenda dos oportunistas
[6] https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/introducao.htm
[7] Como destacava Lênin:
“Acusar os marxistas de blanquismo porque tratam a insurreição como uma arte! Poderá haver deturpação mais gritante da verdade, quando nenhum marxista nega que foi precisamente Marx quem se pronunciou da forma mais determinada, precisa e indiscutível sobre isto, chamando à insurreição precisamente uma arte, dizendo que se deve tratar a insurreição como uma arte, que é necessário conquistar um primeiro êxito e ir de êxito em êxito, sem interromper a ofensiva contra o inimigo, aproveitando a sua confusão, etc, etc?
Para ter êxito, a insurreição deve apoiar-se não numa conjura, não num partido, mas na classe avançada. Isto em primeiro lugar. A insurreição deve apoiar-se no ascenso revolucionário do povo. Isto em segundo lugar. A insurreição deve apoiar-se naquele ponto de viragem na história da revolução em crescimento em que a atividade das fileiras avançadas do povo seja maior, em que sejam mais fortes as vacilações nas fileiras dos inimigos e nas fileiras dos amigos fracos, hesitantes e indecisos da revolução. Isto em terceiro lugar. Estas são as três condições da colocação da questão da insurreição que distinguem o marxismo do blanquismo.
Mas uma vez que existem estas condições, negarmo-nos a tratar a insurreição como uma arte significa trair o marxismo e trair a revolução.”
www.lavrapalavra.com/2017/09/27/o-marxismo-e-a-insurreicao/
[8] “Disto decorre que o princípio teórico-prático da hegemonia possui também um alcance gnosiológico; e, portanto, é nesse campo que se deve buscar a contribuição teórica máxima de Ilitch [Lênin] à filosofia da práxis [como Gramsci se refere ao marxismo]. Ilitch teria feito progredir efetivamente a filosofia como filosofia na medida em que fez progredir a doutrina e a prática política. A realização de um aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato do conhecimento, um fato filosófico. […]
Em outro local, assinalei a importância filosófica do conceito e da realidade da hegemonia, devido a Ilitch. A hegemonia realizada significa a crítica real de uma filosofia, sua real dialética.” [Livro 1 dos “Cadernos do Cárcere”].
[9] Para uma melhor exposição do leninismo de Gramsci, vide meu artigo “Gramsci contra o marxismo cultural”, em especial quanto aos leitores leninistas de Gramsci lá citados: https://18.118.106.12/2015/11/09/gramsci-contra-o-marxismo-cultural/
[10] Vide a leitura leninista de Gramsci feita pelo trotskista Chris Harman:
https://www.marxists.org/portugues/harman/1977/06/gramsci.htm
[11] https://www.marxists.org/portugues/tematica/1933/03/22.htm
[12] https://www.marxists.org/portugues/harman/1977/06/gramsci.htm
[13] https://18.118.106.12/2019/05/01/sobre-a-frente-unica-dos-trabalhadores/
[14] https://docs.google.com/file/d/0B9OkSrCIvhFlS2R2LXdZUExITEhtMG5FN1BialZGQ3NERjRr/edit
[15] https://18.118.106.12/2017/07/24/estabelecer-o-poder-popular-para-servir-as-massas/
[16] https://www.youtube.com/watch?v=LoXNBJ2X4Ck&t=2840s
[17] https://18.118.106.12/2015/09/11/chile-poder-popular-e-contra-revolucao/?relatedposts_hit=1&relatedposts_origin=9673&relatedposts_position=2
[18] https://18.118.106.12/2017/11/28/duas-estrategias-no-processo-chileno/#_ftnref14
[19] “Comecemos pelo começo. Quais são as exigências fundamentais que qualquer marxista deve apresentar ao exame da questão das formas de luta? Em primeiro lugar, o marxismo distingue-se de todas as formas primitivas de socialismo pelo fato de ele não amarrar o movimento a qualquer forma determinada e única de luta. Ele reconhece as mais diferentes formas de luta, e além disso não as «inventa», mas apenas generaliza, organiza, dá consciência àquelas formas de luta das classes revolucionárias que surgem por si no curso do movimento. Absolutamente hostil a todas as fórmulas abstratas, a todas as receitas doutrinárias, o marxismo exige uma atitude atenta em relação à luta de massas em curso, a qual, com o desenvolvimento do movimento, com o crescimento da consciência das massas, com a agudização das crises econômicas e políticas, gera métodos sempre novos e cada vez mais diversos de defesa e de ataque. Por isso o marxismo não renuncia absolutamente a nenhumas formas de luta. O marxismo não se limita em nenhum caso às formas de luta possíveis e existentes apenas num dado momento, reconhecendo a inevitabilidade de novas formas de luta, desconhecidas dos participantes do período dado, com a modificação da conjuntura social dada. O marxismo neste aspecto aprende, se assim nos podemos exprimir, com a prática das massas, está longe da pretensão de ensinar às massas formas de luta inventadas por «sistematizadores» de gabinete. Nós sabemos — disse, por exemplo, Kautsky ao analisar as formas da revolução social — que a crise futura nos trará novas formas de luta que nós não podemos prever agora.
Em segundo lugar, o marxismo exige um exame absolutamente histórico da questão das formas de luta. Colocar esta questão fora da situação histórica concreta significa não compreender o á-bê-cê do materialismo dialético. Em diferentes momentos da evolução econômica, dependendo das diferentes condições políticas, nacionais-culturais, de vida, etc., diferentes formas de luta passam para primeiro plano, tornam-se as principais formas de luta, e, em ligação com isto, modificam-se também as formas secundárias, acessórias, de luta. Tentar responder por sim ou não à questão da utilização de um determinado meio de luta, sem examinar detalhadamente a situação concreta do movimento dado no grau dado do seu desenvolvimento, significa abandonar completamente o terreno do marxismo. […]
As formas de luta na revolução russa distinguem-se pela sua gigantesca variedade em comparação com as revoluções burguesas da Europa. Kautsky previu parcialmente isto ao dizer em 1902 que a revolução futura (ele acrescentou: talvez com excepção da Rússia) seria não tanto uma luta do povo contra o governo como uma luta entre duas partes do povo. Na Rússia vemos, indubitavelmente, um desenvolvimento mais amplo desta segunda luta do que nas revoluções burguesas do Ocidente. Os inimigos da nossa revolução entre o povo são pouco numerosos, mas com a agudização da luta eles organizam-se cada vez mais e recebem o apoio das camadas reacionárias da burguesia. É por isso perfeitamente natural e inevitável que em tal época, na época das greves políticas de todo o povo, a insurreição não possa manifestar-se na velha forma de atos isolados, limitados por um intervalo de tempo muito curto e por uma área muito pequena. É perfeitamente natural e inevitável que a insurreição assuma as formas mais elevadas e complexas de uma guerra civil prolongada e que abarque todo o país, isto é, de uma luta armada entre duas partes do povo. Não se pode conceber essa guerra senão como uma série de algumas grandes batalhas, separadas por intervalos de tempo relativamente grandes, e uma quantidade de pequenas escaramuças no decurso destes intervalos. Uma vez que é assim — e é indubitavelmente assim -, a social-democracia tem necessariamente de colocar como sua tarefa criar organizações que sejam capazes em maior medida de dirigir as massas tanto nestas grandes batalhas como, tanto quanto possível, nestas pequenas escaramuças. A social-democracia, na época da luta de classes que se agudizou até à guerra civil, tem de colocar como sua tarefa não só participar mas também desempenhar um papel dirigente nesta guerra civil. A social-democracia tem de educar e preparar as suas organizações para que elas atuem realmente como parte beligerante que não perde nem uma só ocasião de causar dano às forças do inimigo.”
Lênin, em “A Guerra de Guerrilhas”:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/09/30.htm
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